terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O REI DA PISTA

Dom Chevalier é o rei da noite. Entre amigos, solta o corpo com desenvoltura ao som da cobertura em festa. Encostado na parede, de um ponto privilegiado, observo sua performance. O resto da pista dança em rodas, ou em casais. Ele, não. Baila sozinho, livre, a circular por todos os grupos com a leveza e a graça de seus movimentos.

Flutua de lá pra cá, alternando os ritmos com a agilidade de um sapateador de musical americano. Uma hora dança de banda, tipo ula-ula, outra privilegia movimentos mais conservadores, como o um-pra-lá-um-pra-cá. Só falta dançar cossaco.

De vez em quando valoriza os braços, jogando-os pro alto alternadamente, como um autêntico gringo folião. Até que avista um cavanhaque familiar, no exato momento em que o DJ bota aquela música animada cujo refrão é Freeeeeeedom. Isso mesmo. George Michael.

Imediatamente, Dom Chevalier vem na minha direção e grita: Olha lá o Galinha dançando música de viado! Vou sacanear!

Dito isso, sai na direção do cavanhaque conhecido, que dança numa roda de amigos, e posta-se atrás dele. Enlaça a cintura à sua frente e começa a rebolar e a fazer cara de chacrete.

O cavanhaque não protesta. Está em festa de amigos, então prefere não criar confusão. Dá um riso sem graça e se afasta rapidamente daquela dança estranha. E Dom Chevalier volta à minha direção com um discreto sorriso de playmobil no rosto.

Então Deus, em sua infinita generosidade, me concedeu uma dádiva. Porque eu e Dom Chevalier, ao mesmo tempo e sem explicações para isso, olhamos repentinamente para a direção oposta à pista de dança, onde outro cavaquanhe, o original, conversava tranqüilamente com umas duas ou três pessoas. E entre todas as pessoas daquela festa, entre todos os seres do universo, coube a mim dizer ao meu amigo, em primeira mão, que aquele sujeito em quem ele se roçara todo ao som de George Michael, não. Aquele sujeito não era o Galinha.

A matéria abaixo é pra mostrar que eu já fui em boate gay, sim, sem qualquer problema, até porque ela estava vazia, às escuras, sem música nem ninguém dançando.

Revista Istoé Gente, edição 249, de 17 de maio de 2004

“O Calvin Klein elogiou minha boate me dando um beijo na boca. Fui pego de surpresa”.

Vera Fischer de vez em quando vai. Luana Piovani e Ana Paula Arósio idem. Estilistas de renome internacional, como Calvin Klein, Jean Paul Gaultier e Valentino, também mostraram suas caras por lá. Destinada aos gays, a boate Le Boy, em Copacabana, na zona sul carioca, expandiu seu público e tem atraído cada vez mais famosos, principalmente mulheres. Há quem compare o local a boates históricas, como a Hippopotamus, badalada nos anos 80 no Rio de Janeiro, e o Studio 54, point de Nova York na década de 70. Mas Gilles Lascar, dono da Le Boy, aponta as diferenças. “Minha casa é 100% gay e nenhum desses lugares fez a revolução que a Le Boy fez no mundo gay”, diz o francês de 49 anos, que mora no Rio há 16 e abriu a boate há 12. Ser gay assumido é, segundo o próprio Gilles, o segredo de seu sucesso. “Sei o que o gay gosta”, diz o parisiense, que há dois anos abriu a Le Girl, destinada às lésbicas, ao lado de sua primeira boate. “É raro alguém conseguir manter uma casa por 12 anos”, diz o empresário Rick Amaral, que transformou o antigo Hippopotamus herdado do pai, Ricardo Amaral, na atual Baronetti.
Gilles repudia o rótulo GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) por não crer no termo simpatizante. “Um hétero pode até ir uma vez por ano na minha boate. Mas se ele se diz simpatizante e vai sempre, pra mim é gay.” A teoria não vale para os famosos. “Eles têm a cabeça mais aberta e se garantem”, diz. É por isso que a casa de Gilles tem histórias como a vez em que todos na pista pararam de dançar para aplaudir Vera Fischer, que se divertia no mezanino vip. Já Luana Piovani arrastou o amigo Caetano Veloso ao local na hora em que o Brasil jogava contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 2002. “Ele me disse que tinha deixado de assistir ao jogo com a família e que estava gostando, mas não voltou mais”, lembra o francês, que depois de trabalhar como soldador, aos 18 anos, foi diretor comercial de uma firma até abrir um clube de encontros para solteiros.
Outra que se divertiu na boate foi Wanessa Camargo. Na mesma noite, a cantora circulou pela Le Boy, Le Girl e ainda deu uma canja no karaogay do local. Ela foi uma das raras pessoas que apareceu protegida por seguranças, como um herdeiro de estúdios de Hollywood, que, segundo Gilles, vai à Le Boy duas vezes por ano. Geralmente astros internacionais, como o ator inglês Ruppert Everet, que esteve lá no Réveillon de 2003, circulam livremente. “Eles gostam daqui exatamente porque não são incomodados”, diz Gilles, que em março desse ano teve uma prova do quanto a casa agrada às celebridades. “O Calvin Klein elogiou minha boate me dando um beijo na boca. Fui pego de surpresa”, lembra o empresário.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

MEDO

Imagine que você está em pé, lavando louça, e vê uma formiga de tamanho médio andando bem perto da pia. Pois era exatamente do tamanho dessa formiga que um navio, provavelmente um petroleiro, era avistado por mim de dentro do helicóptero que me levava até a plataforma P-26 da Petrobras, na Bacia de Campos. Em volta, até onde a vista alcançava, só mar. E céu.

De Macaé até a P-26, foram quase duas horas de viagem pra dentro do Oceano Atlântico, na direção América do Sul-África. Antes de embarcar, já havíamos assistido a uma curta palestra a respeito de viagens até a Bacia de Campos, então lá no alto, olhando o petroleiro do tamanho de uma formiga, eu já sabia que o helicóptero não podia voar baixo em mar aberto porque os ventos podiam derrubá-lo.

Já sabia também que só pilotos da Petrobras tinham autorização para levar gente às plataformas. Porque, se me lembro bem da palestra, pilotar em alto mar não era pra qualquer um. Exigia um treinamento árduo, específico. Aterrissar em plataforma, então, era das situações mais complicadas de toda a aviação, incluindo aí os foguetes da Nasa.

Estava de posse de todas essas informações e ainda tenho medo de avião. Não há decolagem em que eu não reprise na mente o filme da minha vida. E ali, sobrevoando o mar aberto e prestes a pousar num gigantesco depósito de combustível flutuante, não sentia medo algum.

E não era questão de controlar o medo, de às vezes ficar em pânico e continuar calado, como costumo fazer em aviões. Naquele helicóptero, tanto na ida como na volta da viagem de cento e oitenta quilômetros, não tive medo, nem nas vezes em que, acometido por lapsos de lucidez, olhava pra baixo e tentava imaginar o tamanho da merda que seria ficar por ali, entre a P-26 e Macaé, a boiar no salva-vidas amarelo amarrado à minha cintura.

Até hoje me dá um sensação de incredulidade quando olho essa fotografia aí do lado, que abriu a matéria e foi tirada pelo legendário Leandro Pimentel, cuja fama alcançou os confins do Recôncavo Baiano, onde ele fez história. O cara bateu a foto do meu lado, no helicóptero, então olho a imagem daquela estrutura vista do alto, com uma chama permanente no pico de sua torre principal, e custo a acreditar que eu estava exatamente ali, no local de onde a fotografia foi tirada.

Quer dizer, até acredito que não só estava naquele ângulo como aterrissei no minúsculo heliponto a uns quinhentos metros da torre incandescente. A matéria aí embaixo está aí para provar isso. O difícil é imaginar como eu pude simplesmente não ter medo em momento algum, porque não ter medo numa situação dessas, sinceramente, não faz o menor sentido. Pra mim continua um mistério. Talvez tenha sido o salva-vidas amarelo amarrado à cintura. Quem sabe?

A matéria abaixo foi cortada. Incluí apenas um dos três perfis que o texto apresentava, pra não ficar muito grande.

Revista Istoé Gente, edição 76, de 15 de janeiro de 2001

"Nos camarotes, procuramos juntar os roncadores".


A química Raquel Pereira, 30 anos, e o auxiliar administrativo Sérgio Bissogue, 38, são casados e trabalham na mesma empresa. Mas Raquel não pode ir até a sala do marido. O motivo é simples: os dois trabalham em alto mar, a mais de 100 quilômetros da costa, só que em plataformas de extração de petróleo diferentes. Como eles, outros 5 mil profissionais levam a vida de uma maneira inusitada, nas 20 plataformas instaladas na Bacia de Campos.
Com uma produção média de 600 mil barris de petróleo por dia e 10 milhões de metros cúbicos diários de gás natural, a Bacia de Campos já superou os índices de países como a Síria, o Qatar e o Gabão, todos integrantes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Trabalhar nela, porém, não é tarefa para qualquer um. Não existe privacidade. Na P-26, por exemplo, a plataforma que fica a 180 quilômetros da costa de Macaé, no estado do Rio, cada quarto de oito metros quadrados é dividido por quatro pessoas.
Muitos não se adaptam. "Além de ficar longe da família, o funcionário é obrigado a conviver com os colegas o tempo inteiro", diz o engenheiro eletrônico Humberto Romanus, 43, um dos três coordenadores que se revezam no comando da P-26. Instalada sobre um piso de 77,7m por 74,8m, a plataforma trabalha numa profundidade de 990 metros, tem capacidade para produzir 100 mil barris de petróleo por dia e pode abrigar até 135 pessoas nos seus 33 camarotes. Três turbogeradores, com 7,2 megawats de potência cada, que poderiam iluminar uma cidade de 10 mil habitantes, mantêm em funcionamento os equipamentos da plataforma. Para amenizar a solidão de quem trabalha nela, a P-26 tem duas salas de televisão, um auditório, também usado como cinema, duas salas de jogos, uma de musculação e uma quadra de esportes. Em volta de tudo isso, só o mar.

O chefe da tropa de elite. Sair de casa para trabalhar deixou de ser uma rotina tranqüila na vida do engenheiro Humberto Romanus há 17 anos, desde o momento em que ele pegou no batente nas plataformas da Petrobras. Casado com a farmacêutica Maria Elisa, 41, e pai de Eduardo, 9, e Luciana, 6, Humberto aproveita ao máximo o período de 21 dias que tem com a família, pois sabe que a saída de Curitiba, onde mora, para os 15 dias de plantão à frente da P-26, na Bacia de Campos, costumam ser problemáticos. "Uma vez meus filhos esconderam a chave de casa e não queriam me deixar sair", conta.
A mulher Maria Elisa já está conformada com a vida profissional atribulada do marido. "Durante um ano inteiro de trabalho, ela só me ligou uma vez, para me avisar que o pai dela tinha morrido", conta o engenheiro, que revela o segredo da harmonia conjugal. "Quando temos desgaste, já está na hora de eu sair. Quando volto, é aquela festa".
Festa é tudo o que Humberto não tem quando está em serviço. Como coordenador, o engenheiro faz parte do grupo de sobreaviso, uma espécie de tropa de elite formada por oito funcionários, que administra os vários setores da plataforma e trabalha 15 dias para cada 21 de folga. Os outros funcionários de lá trabalham a cada 15 dias.
Em situações anormais, é esse grupo que atua e organiza uma eventual fuga de funcionários, caso esta seja necessária em alguma situação extrema nas instalações da embarcação, que não inclui tempestades marítimas. "As condições do mar não oferecem perigo. Nossa unidade está projetada para agüentar a pior situação em 100 anos", diz Romanus.
Dentro da plataforma, o turno de trabalho é de 12 horas. Humberto é o único com um quarto individual, que fica ao lado de seu escritório. As vantagens param por aí. O coordenador passa de sete a oito horas dentro do quarto. O resto do tempo é para o trabalho e uma ou outra escapulida até a sala de musculação.
No papel de administrador da plataforma, o engenheiro tem de resolver qualquer problema entre seus comandados. "Em qualquer ambiente de trabalho pode haver divergências entre as pessoas. A diferença é que aqui, se você discutir com alguém, vai continuar tendo de conviver com esse alguém", diz. Como medida básica de prevenção, Humberto cita uma estratégia simples, mas que evita muitos problemas. "Nos camarotes, procuramos juntar os roncadores".

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

FORRÓVIÁRIO

O trem usava um chapéu gigante de caipira bem na locomotiva. Em cada vagão, um autêntico trio de forró animava os passageiros no trajeto entre Campina Grande e as Itacoatiaras do Ingá, localidade na Paraíba detentora de uns buracos numas pedras que, dizem lá eles, foram feitos por dinossauros ou extraterrestres, não lembro bem. Aliás, eu só lembro do nome do lugar porque ele junta dois bairros da mui necessária cidade de Niterói.

Mas enfim, os vagões estavam lotados, todos. Num deles, entre três casais animados, um grupo de estudantes e uma família arretada, viajávamos eu e Lacerda, o merda, fotógrafo de talento ímpar, grande companheiro de viagem e que sempre me respondia de imediato, ao ouvir minha babaquice: Edmundo, o imundo. E o pior é que fizemos isso da última vez que nos vimos, sei lá quando.

Estávamos ali, eu e ele, com o objetivo de produzir uma matéria para a revista Domingo, do Jornal do Brasil. A pauta era o Maior São João do Mundo, esse aí do lado, de Campina Grande, e naquele ano a festa já havia nos proporcionado, entre outras atrações, uma hilária corrida de jegues e uma tocante quadrilha noturna de crianças na periferia da cidade, ao som de Coração Bobo, do Alceu Valença, além dos almoços filados no quiosque do magnânimo Batata, ao lado de Paulo César Grande, Cláudia Mauro e Castrinho.

Faltava o trem forróviário, e lá estávamos nós. O forró comia solto, mas é claro que eu não dancei. Enquanto Lacerda fazia umas fotos pelo vagão, fiquei no meu canto, observando. Até que um sujeito muito parecido com Genival Lacerda começou a repetir umas palavras incompreensíveis na minha direção, a uma velocidade que faria qualquer locutor de jóquei parecer grogue.

Fiz o que meu manual pessoal de etiqueta manda nessas ocasiões. Respondi sorrindo e soltando um éééé de vez em quando, pra fingir que estava entendendo alguma coisa. O cara parou de falar e me virou as costas, mas uns dois minutos depois voltou à tona, dessa vez falando um pouco mais rápido.

Repeti meu procedimento e ele novamente se calou e retornou para onde estava virado, para retomar seu ímpeto de falar comigo ainda uma terceira vez, e uma quarta, em menos de seis minutos, quando já era nítido que o nobre cidadão campinense estava irritado com alguma coisa. Ou melhor, estava irritado comigo.

Sem entender nada daquela saraivada de ruídos ininteligíveis direcionados a minha pessoa, fui salvo finalmente quando consegui compreender duas palavras no meio do bombardeio. E as palavras eram Sobrinho e Peixeira. Imediatamente, iluminado talvez pelo meu anjo da guarda, entendi que o clone de Genival Lacerda quis, por algum motivo, me informar que o sobrinho dele estava naquele vagão, munido de uma peixeira pra qualquer eventualidade. Não havia dúvidas. Era preciso estabelecer contato.

Tirei do bolso então meu crachá de prestador de serviço do Jornal do Brasil, cujo valor na época equivalia ao de um estagiário, e expliquei o que eu estava fazendo naquele trem. Para minha surpresa, ele compreendeu perfeitamente meu português. E até conseguiu se comunicar melhor, a ponto de me informar que estava muito chateado porque achava que eu estava cutucando as pernas dele pelas costas.

É lógico que eu não estava, mas reconheço que ele pode ter passado a achar isso ainda mais, depois que eu fiquei rindo e falando éééé em todas as vezes em que ele se virou pra reclamar. Precisei de algum tempo para convencê-lo da minha inocência e nem sei se consegui. Só sei que ele aceitou minha sugestão de paz, apesar do ligeiro tom de desconfiança no seu olhar.

Até hoje não sei quem estava cutucando o coroa, ou se alguém cutucou mesmo. Por via das dúvidas, na chegada às Itacoatiaras do Ingá, chamei o valente nordestino para, juntos, tirarmos uma foto. Nos abraçamos, fiz o clássico sinal de jóia, polegar pra cima, e o Lacerda só bateu o flash, pra não ter que justificar no jornal a foto minha abraçada com uma nativo anônimo da terra. E assim perdi a oportunidade de guardar um registro histórico, do dia em que quase me vi obrigado a enfrentar um sertanejo com uma peixeira na mão.

A matéria tá aí embaixo, claro que sem essa história.

Jornal do Brasil, Revista Domingo, edição 1.104, de 29 de junho de 1997


"Tive alguma dificuldade nas curvas, mas o Rochedo mostrou que é da moléstia".

"Senhores passageiros, acabamos de descer em Campina Grande. A todos vocês, obrigado pela preferência e um bom forró." A voz é do comandante do avião que aterrissa no Aeroporto João Suassuna, na maior cidade do interior paraibano, sede do "Maior São João do Mundo". Uma festa que este ano começou dia 30 de maio e só termina hoje, com um show de Zé Ramalho. Uma quadrilha de São João estrategicamente posicionada na saída do aeroporto dá as boas-vindas e anuncia: o forró já começou.
A festa de Campina Grande rivaliza com a de Caruaru, cidade pernambucana considerada a capital do forró. Nenhum campinense contesta o título da rival, mas que ninguém ouse dizer que a festa pernambucana é maior que a paraibana. E até que nesse ponto os conterrâneos de Zé Ramalho têm lá sua razão: não se tem notícia no país de uma área dedicada à festa junina tão grande quanto a que ocupa o Parque do Povo.
São 42 mil metros quadrados (quase seis campos do Maracanã), que recebem cerca de 100 mil pessoas nos dias mais arretados. Anualmente, Campina Grande atrai cerca de 450 mil turistas durante os festejos, uma população bem maior que os 350 mil moradores da cidade. Apesar do gigantismo da festa, o São João de Campina Grande mantém a tradição sertaneja em alta.
Um esforço que ficou ainda mais concentrado este ano, aniversário de 300 anos da cidade. "Nossa festa cresceu muito e acabou sofrendo influência baiana. No ano passado, as barracas foram feitas com toldos iguais aos usados em Salvador e o forró perdeu espaço para a axé music. Este ano é que a prefeitura resolveu trazer de volta o clima de festa junina, sem a interferência de fora", diz o cenógrafo José Sereco, responsável pela decoração da festa.
A campanha valeu a pena. O forró voltou a ditar o ritmo da festa. Seja no pé-de-serra – sua versão tradicional, com sanfona, zabumba e triângulo – seja na óxente music – que acrescenta instrumentos elétricos ao som de Luiz Gonzaga. Ouve-se desde Magníficos, banda paraibana que já vendeu mais de 400 mil discos no eixo Pernambuco-Paraíba, até Biliu de Campina, forrozeiro radical, que só grava discos independentes "pra gravadora não bulir" com seu trabalho. (veja O personagem).
Enquanto o palco principal do Parque do Povo recebe atrações mais famosas, como o campinense Genival Lacerda, quatro palhoças incrustadas no meio da arena oferecem cultura popular em estado bruto. É ali que os trios de forró se apresentam, junto a grupos de teatro de bonecos. Artistas anônimos, como o sanfoneiro Bil Carneiro, fazem até dois shows por dia. Menos conhecido como o criador de gado Severino Gonçalves de Souza, de 53 anos, Bil aproveita a ocasião para aumentar o orçamento com os R$ 200 que o trio divide por show. "Vivo na zona rural com os meus bois. Mas no São João a gente pega a sanfona e vamo simbora", diz o sanfoneiro, um dos 35 integrantes da Orquestra Sanfônica de Campina Grande, que toca até clássicos de Bach e Beethoven no instrumento de Sivuca.
O forró também trouxe de volta antigas atrações, como o Trem Forroviário, que estava desativado há seis anos. Essa locomotiva forrozeira – na verdade um trem da CBTU decorado com motivos juninos – carrega um trio de forró em cada um de seus cinco vagões e faz uma viagem de mais de duas horas entre a Estação Velha de Campina Grande e o município de Ingá. A passagem custa R$ 10. Uma ninharia para um arrasta-pé alimentado por comida típica e bebida à vontade. No meio do caminho, há uma parada de uma hora em Galante. Mas ninguém descansa. O forró continua comendo solto nessa típica localidade do interior nordestino.
Longe dali, no bairro do Centenário, em Campina Grande, a festa fica por conta das mais de 300 quadrilhas, que reúnem gente de todas as idades, como o casal Roque Francisco de Almeida, 88 anos, e Emília Felinto de Paula, 73, integrantes da quadrilha de idosos do bairro. "Nunca perdemos a alegria e a vontade de brincar", diz Roque. Domingo passado, eles participaram do Quadrilhão, que junta mais de 3 mil dançarinos. Parece desfile de escola de samba carioca com enredo sobre festa junina. Mas o ritmo é o forró.
Domingo passado também foi dia da atração mais inusitada da festa: a corrida de jegue, no Parque da Criança. Rochedo, Gaúcho e Chupeta disputaram a final, depois de eliminarem outros 12 concorrentes. Montada pelo professor de Educação Física Alexandre Farias, 1,90m e 105kg, a fêmea Chupeta, com pouco mais de 1,20m de altura, concluiu bravamente a prova, em terceiro lugar. Gaúcho chegou em segundo e o campeão foi Rochedo. "Tive alguma dificuldade nas curvas, mas o Rochedo mostrou que é da moléstia", comemorou a façanha, no melhor estilo paraibano, o dono do jegue vencedor, Francisco de Assis Alves, que recebeu como prêmio R$ 100 e uma sela nova. Amanhã Campina Grande volta à rotina. Mas Rochedo já está de olho no possível bicampeonato, no ano que vem, quando a cidade voltará a acender a fogueira do "Maior São João do Mundo".

O personagem. Ele mete o pau nas gravadoras e, mesmo tendo gravado apenas três discos independentes, faz o maior sucesso em Campina Grande e em outros pontos do Nordeste. Em meio à enxurrada de bandas de axé e óxente music, Biliu de Campina – como é mais conhecido o advogado Severino Xavier de Souza, 48 anos – é hoje um dos últimos seguidores de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Biliu faz questão de manter a autenticidade do forró clássico, sem guitarras ou teclados. A diferença é que, ao contrário dos mestres, que cantavam o lamento sertanejo do agreste, Biliu prefere os temas urbanos, mais atuais. "Eu prefiro cantar a safadeza que fazem com o pobre na cidade", diz o cantor de forró.
Mesmo sem gravar, Biliu vive da música. "Faço shows no período junino e sou vendedor de eletrodomésticos no resto do ano: vendo minha TV, o som, o rádio...", ironiza o artista, que ganha entre R$ 1 mil e R$ 2,5 mil por show. O ódio de Biliu às gravadoras não fica apenas na retórica, como prova o refrão da música ‘Matéria Paga’: O mãe, venda o galo e as galinhas/A cabra da tia Joana, a perua da Mariquinha/ O burro velho do meu pai e o porco do Francisco/ Depois me dê um dinheiro, que eu quero gravar um disco.
Apesar do discurso radical, Biliu de Campina espera lançar seu primeiro CD até o fim de 98. "Encontrei uma gravadora em São Paulo que não mexe no nosso trabalho." Aí tá arretado!

sábado, 27 de outubro de 2007

O CHORO DO COMEDIANTE

Paulo Silvino eu acho que todo mundo sabe quem é. Aquele cara engraçado dos programas humorísticos, do Planeta dos Homens ao Zorra Total, cuja marca registrada é a combinação do sorriso trincado com um constante subir e descer das sobrancelhas, geralmente lançadas na direção de alguma figurante de biquini.

É a careta característica do cara, e ele a usou algumas vezes enquanto me recebia em sua casa. A matéria era uma boa notícia derivada de uma tragédia. O filho do Paulo, Flávio Silvino, se preparava para voltar a atuar em novelas depois de ter ficado uns 90 dias em coma. Num cruzamento da Região dos Lagos, o Voyage dele foi atingido em cheio, na porta do motorista, pelo pára-choque de um carro-forte. E o cara sobreviveu. Não é pouca coisa.

Paulo Silvino parecia já plenamente recuperado do baque. Recebeu a mim e ao fotógrafo da revista contando piada, fazendo as caretas habituais, e manteve o bom humor durante as entrevistas dele e do filho. Contou com detalhes o drama do acidente e da recuperação do Flávio e não deixou de brincar nem com a gente nem com o filho. Mas num único momento, que deve ter durado no máximo uns cinco segundos, deu pra ter ao menos uma idéia de tudo o que ele havia passado nos últimos seis anos, desde o acidente.

Estávamos todos na sala do apartamento dele, eu, o fotógrafo e o Flávio. O Paulo estava de pé e contava a história que abre a matéria aí embaixo, tranqüilo, como se relatasse qualquer fato corriqueiro. Quando chegou na parte em que o filho chorou ao ouvir a voz da mãe no telefone, o cara não se conteve. A voz mudou, ficou mais aguda (experimente tentar falar na hora em que o choro chega), ele parou de falar, as bochechas amoleceram, ele apertou as duas mãos atrás da cabeça e jogou levemente as costas para trás, como se estivesse se alongando. Depois deu uma forte fungada seguida de um suspiro, andou um pouco até o fim da sala, uns seis passos, e voltou esfregando os óculos, já recomposto.

Dali seguimos com a entrevista, fomos a um parque de diversões pra fazer umas fotos, voltamos à casa do Paulo Silvino e ele sempre bem-humorado, às vezes sério, outras engraçado, mas sem perder o controle jamais, só aquela vez na sala, até nos despedirmos.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 23, de 10 de janeiro de 2000


Após sair do coma, o ator passou três meses sem conseguir se mexer. Como um recém-nascido, reaprendeu todos os movimentos. Começou se arrastando, passou a engatinhar e só ficou de pé após oito meses.

O dia 13 de fevereiro de 1994 ficará para sempre na memória da família Silvino. Naquele Sábado de Carnaval, o ator Flávio Silvino, então com 23 anos, tinha acabado de receber a visita de uma fã em sua casa. Depois que a menina saiu, o comediante Paulo Silvino fez uma piada e o filho riu. Meia hora depois, Paulo, que falava atônito pelo telefone com Diva, a mãe de Flávio, botou o gancho no ouvido do filho. Ao ouvir a voz da mãe, Flávio Silvino começou a chorar. Naquele momento, o ator saía definitivamente do coma em que mergulhara no dia 2 de novembro de 1993, quando o Voyage que dirigia foi atingido por um carro-forte na estrada de Araruama, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Hoje, depois de uma recuperação que surpreendeu a todos os médicos que o trataram, Flávio se prepara para voltar à televisão, interpretando um personagem escrito especialmente para ele pelo autor Manoel Carlos, 66 anos.
A volta do ator está prevista para junho, quando deverá estrear a nova novela das oito, Laços de Família, no lugar de Terra Nostra. Na trama, ele será Paulo, um jovem que, como ele, luta para superar as seqüelas de um acidente de carro. Com o personagem, Manoel Carlos cumpre o que havia prometido a Flávio, que ligara para o autor no início de 1999 pedindo uma chance para voltar. "Ele me disse que escreveria um papel para mim", conta o ator, que deve começar a gravar em maio. "Só agora vi que não era brincadeira".
Na verdade, Manoel Carlos pensava em criar o personagem desde a novela História de Amor, que foi ao ar em 1995. A idéia voltou em Por Amor, de 1998, mas foi adiada novamente. "Não queria que soasse forçado", explica o autor. Na trama, o pai de Paulo será interpretado por Tony Ramos, que, assim como Paulo Silvino, ajuda o filho em todas as etapas de recuperação. "Agora consegui o pai ideal para ele", diz Manoel Carlos.
Para saber exatamente o que Flávio pode fazer, Manoel Carlos escalou a pesquisadora Gabriela Miranda, 25 anos, que desde o dia 15 de dezembro tem acompanhado o dia-a-dia do ator. Ela já presenciou suas sessões de fisioterapia, entrevistou seus médicos, almoçou e jantou com Flávio, saiu com ele para restaurantes e shoppings e até passou o Natal no apartamento da família Silvino, na Barra da Tijuca. "A Gabriela é meu carrapato, meu fiscal e meu encosto", brinca o ator. O bom humor de Flávio impressionou Gabriela. "Ele está muito melhor do que todos esperam", diz ela.
Mesmo que a fala de Flávio ainda esteja um pouco comprometida e os movimentos, lentos, os médicos classificam sua recuperação como surpreendente. Após sair do coma, o ator passou três meses sem conseguir se mexer. Como um recém-nascido, reaprendeu todos os movimentos. Começou se arrastando, passou a engatinhar e só ficou de pé após oito meses. Utilizou uma prancha especial, na qual ficava amarrado para voltar a se acostumar com a posição vertical. "Em casos como esse, o paciente pode até desmaiar se ficar em pé depois de tanto tempo deitado", explica sua fisioterapeuta, Maria Madalena Glinardello.
Nos primeiros oito meses, a fisioterapeuta passava 17 horas por dia com seu paciente. Depois de ficar em pé, o ator levou um ano e quatro meses para caminhar sozinho, sem o auxílio das muletas. Hoje, o tratamento consiste em duas horas e meia de fisioterapia, três vezes por semana, e outras duas horas com a fonoaudióloga Marise Müller, também três dias por semana. Madalena garante que Flávio Silvino é o mesmo de antes do acidente. "Ele é totalmente normal, só que um pouco mais lento", afirma. Segundo ela, Flávio foi atingido na área piramidal do cérebro, que responde pelas lesões motoras. A área responsável pela memória não foi atingida. O ator se lembra de tudo, à exceção do acidente e do que aconteceu nos seis meses anteriores. Nesse caso, o esquecimento é atribuído ao choque emocional.
Embalado pelo sucesso nas novelas Vamp, de 1991, e Deus nos Acuda, de 1992, na Rede Globo, Flávio tinha lançado um disco de músicas românticas, pela Sony Music, na época do acidente. O ator – que promovia o disco em shows pelo País – voltava do sítio da família em Cabo Frio, junto com o irmão João Paulo, que dormia no banco do carona. Num cruzamento, o carro-forte da empresa Brink’s atingiu o Voyage. João Paulo, hoje com 17 anos, nada sofreu, mas Flávio teve traumatismo crânio-encefálico e perda do tecido muscular do braço esquerdo. Levado para a Casa de Caridade de Araruama, o ator foi operado pelo cirurgião Luís Carlos Pereira Silva, que durante três dias drenou o edema no cérebro. Isso salvou a vida de Flávio, logo depois transferido para a Clínica Santa Helena, em Cabo Frio, já que não havia Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Araruama.
A transferência, três dias após o acidente, foi o maior risco corrido pelo ator desde a batida. "Mas desde que aconteceu o que não devia ter acontecido, que foi o acidente, tudo passou a dar certo", lembra Paulo Silvino. O comediante não se esquece de um motorista anônimo que brigou para que seu filho fosse socorrido, quando policiais militares, achando que o ator estivesse morto, não queriam retirá-lo das ferragens. O drama do filho fez com que Paulo Silvino escrevesse a peça Brains. O texto foi escrito em 1994, logo após Flávio ter saído do coma. O comediante está em busca de patrocínio para encená-la este ano.
Na época atuando na Escolinha do Professor Raimundo, na Globo, Paulo Silvino tirou licença para acompanhar o filho. Seis meses depois da batida, o programa acabou e o comediante foi dispensado. O diretor de Produção Comercial da emissora, Ari Nogueira, ofereceu a Paulo a continuidade do pagamento do tratamento de seu filho. O comediante conseguiu convencer a direção da emissora a ajudá-lo de outra maneira, contratando Flávio como funcionário. "Não queria meu filho ligado à Globo por um tratamento de saúde." Hoje, o comediante garante que a emissora fez um bom negócio ao contratar Flávio, mesmo quando ele ainda estava em coma. "O investimento deles vai ter retorno." A opinião de Paulo é endossada por Manoel Carlos. "Flávio era um dos campeões de cartas na Globo. Ele é um ator talentoso, bonito e inteligente, que quer voltar a ser útil", diz o autor. A idéia de Manoel Carlos é fazer de Flávio um exemplo para pessoas que viveram o mesmo drama.
Independente da expectativa pela volta do filho à televisão, Paulo Silvino sempre agradece a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, na época diretor-geral da Globo, pela contratação do filho. "Deus salvou a vida do Flávio e a conta foi paga pela Globo e pelo doutor Roberto Marinho", diz o comediante. Aos 60 anos, Paulo Silvino participa do humorístico Zorra Total, enquanto luta para receber R$ 46 mil referentes ao pagamento por 155 episódios que escreveu para a Escolinha do Barulho, na Rede Record.
A volta ao trabalho pode contribuir para que o ator se recupere ainda mais. "Nesses casos, depende do paciente, e o Flávio tem extrapolado as expectativas", diz a fisioterapeuta. O trunfo de Flávio é sua juventude. De acordo com a especialista, há teses, não comprovadas, que sustentam que algumas funções cerebrais começam a se desenvolver na fase adulta. Madalena acha possível que seu paciente, hoje com 28 anos, esteja sendo beneficiado por isso. Há dois anos, somente seu pai conseguia compreender o que ele falava. Hoje, suas palavras são pronunciadas perfeitamente, apenas com um pouco de lentidão. Em julho, ele recuperou os movimentos do braço esquerdo, único membro de seu corpo que ainda estava parcialmente imóvel. Hoje, o ator faz tudo sozinho, desde lavar a louça até fazer a barba. Não consegue, ainda, surfar _ o que fazia com freqüência antes do acidente – ou dirigir. À praia, vai raramente, prefere ficar na piscina do condomínio. Usa bengala quando tem que subir escadas ou em lugares movimentados, como shoppings.
Segundo o neurologista Paulo Niemeyer Filho, que cuidou de Flávio, a fisioterapia tira proveito das áreas do cérebro que estão funcionando bem, num sistema de compensação. "Num traumatismo como o do Flávio, formam-se pontos de lesões no cérebro. A fisioterapia trabalha para que as áreas não afetadas funcionem melhor e compensem as regiões lesadas", explica o médico.
Na recuperação, Flávio contou com o amigo Marcelo Faustini, 28 anos, ator da Globo. Ele o acompanhou em todas as etapas do tratamento e empurrava sua cadeira de rodas quando passeavam. "Sua volta será muito importante", diz Faustini. "Ele mostrará a todos como está bem". Outro estímulo foi o namoro com a advogada Adreane Drumond, 26 anos, iniciado em junho. Sempre que não está trabalhando, Didi, como é chamada pelo namorado, fica ao lado de Flávio. "No dia em que conheci a Didi, percebi que minha vida começava de novo", diz o ator. A advogada se derreta: "Nosso relacionamento é maravilhoso". Os dois foram apresentados pela mão de Flávio, a secretária e ex-bailarina Diva Plácido, 50 anos, amiga de Adreane. "Sempre acreditei na recuperação do meu filho, e agora ainda mais", afirma Diva.
Flávio não quer se limitar às novelas. O ator também quer editar o livro Vida, que escreveu com a ajuda de Marise Müller. São 27 textos ditados à fonoaudióloga. Todos foram escritos logo após recupera a fala e os primeiros movimentos. "Tinha necessidade de expor tudo o que eu estava sentindo", diz Flávio. "E ainda tenho. Quero voltar para não parar mais."

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

90 ANOS EM 2.578 CARACTERES

A pauta era das melhores possíveis. Entrevista marcada com Mário Lago na casa dele, o que equivalia a sair da mesmice da redação para passar uma ou duas horas conversando com um sujeito que, entre outras coisas, escreveu Amélia, em parceria com um cara chamado Ataulfo Alves.

O gancho da matéria era a proximidade dos 90 anos dele e o motivo da entrevista ter sido marcada foi o interesse da editora em divulgar o relançamento de um dos livros do Mário, um sobre o tempo em que ele passou preso depois do golpe de 64. A editora do livro ofereceu a entrevista à revista, minha chefe aceitou e lá fui eu fazer o meu trabalho.

Só tinha um problema. Trabalhava na época numa revista de celebridades e o espaço destinado a gente como Mário Lago nessas publicações sempre foi curto. Natural, são as leis do tal mercado. No ranking dos personagens mais importantes para as revistas de celebridades, um coroa de quase 90 não tem a menor chance contra a super modelo brasileira, ou a eterna apresentadora infantil, ou o galã da vez, ou a atriz que está arrebentando na novela das oito, ou o músico de roupas estranhas que acaba de ser visto junto com a atriz que está arrebentando na novela das oito etc...etc...etc...

Diante disso, fui ao apartamento de Mário Lago ciente de que teria de resumir em no máximo duas páginas a entrevista com um sujeito que, como diria o Gérson em seus melhores comentários após alguma pelada no Maraca, escreveu umas trezentas mil músicas ou novelas pro rádio, atuou em cinco milhões de filmes, novelas ou minisséries, no cinema, no rádio e na TV, publicou uns duzentos livros e ainda participou ativamente da vida política do país desde a época de Getúlio Vargas.

Ganhei ainda a missão de relacionar meu entrevistado com o protagonista do filme Copacabana, da Carla Camurati, que fazia um certo sucesso na época. Como Mário Lago morou a maior parte de sua vida em Copacabana, a exemplo do personagem do Marco Nanini, que também estava para chegar aos 90 no filme, alguém na revista (talvez até eu mesmo, não me lembro) teve a idéia de fazer essa matéria diferente. Pena que o próprio Mário derrubou a pauta ao responder a primeira pergunta da entrevista.

O jeito então foi improvisar, e para isso só havia uma saída viável: resumir os quase 90 anos de vida do cara num texto de menos de 3 mil caracteres. No fim das contas, até que gostei do resultado, principalmente pela declaração do entrevistado que encerra a matéria.

Uns dez meses mais tarde, quando Mário Lago morreu, já aos 90 anos, as frases foram reproduzidas em tudo quanto é lugar, da Veja ao Jornal Nacional. Os obituários mais detalhados diziam que elas foram proferidas numa última entrevista dele, para o Jornal do Brasil. Não duvido, até porque ele também deve ter falado a mesma coisa para outros jornalistas antes de mim. Afinal de contas, o cara já estava acostumado a dar entrevista há pelo menos sessenta anos quando fui entrevistá-lo. Era mais do que natural que ele, já meio de saco cheio, aproveitasse algumas frases já ditas anteriormente, e ainda bem que ele falou isso pra mim também. Melhor pra matéria aí embaixo, que por contingências da edição teve de ser espremida em 2.578 caracteres.


Revista Istoé Gente, edição 103, de 23 de julho de 2001

"Não sou saudosista. Fiz um contrato de existência pacífica com o tempo. Nem ele me persegue, nem vou atrás dele. Um dia a gente se encontra".(Foto: Leandro Pimentel)

Da mesma forma que o personagem vivido por Marco Nanini no filme Copacabana, de Carla Camurati, o ator, compositor, autor e ex-militante de esquerda Mário Lago está prestes a completar 90 anos, mora no bairro mais famoso do Rio de Janeiro e tem muita história para contar. A diferença entre os dois, no entanto, é apontada pelo próprio Mário. "Morei em Copacabana a maior parte da minha vida, mas não freqüentei o bairro", diz, no conforto da sala de seu apartamento no Posto Seis, uma das áreas mais prestigiadas de Copacabana.
Uma rápida olhadela pela sala – onde fotos de peças do ator dividem o espaço com um desenho feito pelo colega comunista Oscar Niemeyer, a bandeira do Fluminense e registros familiares – revela que, se não tem muito o que falar sobre o lugar onde mora, Mário Lago, 89 anos, tem assunto de sobra para municiar qualquer conversa. Se o tema for política, o autor de Reminiscências do Sol Quadrado – livro sobre o tempo que passou preso em 1964, relançado este mês – tem na bagagem sete prisões, a primeira delas em 1932, num comício do Partido Comunista.
Nessa época, o tempo de Mário era dividido entre a política e a boemia. "Depois de cumprir minhas tarefas, ia para o meu cabaré", diz ele, lembrando o hábito criticado por companheiros como Diógenes Arruda, antigo secretário nacional do PCB. "Ele dizia que meu perfume parecia o de uma marafona. Respondia que era um militante, mas minha axila continuava pequeno-burguesa".
A boemia, aliada ao ofício de autor de teatro de revista nos anos 30, transformou o comunista em compositor de sucessos imortais como Amélia. "Os sambistas me procuravam porque as revistas eram as grandes divulgadoras das músicas", conta o parceiro de Ataulfo Alves, que aprendeu a ser boêmio com o pai, o maestro Antônio Lago. "De madrugada, saía da cama para comer o jantar que minha mãe preparava quando ele chegava do espetáculo. Me habituei à ceia".
Há 14 anos sem fumar, o ator encara com bom humor o enfisema pulmonar adquirido nas noites em que consumia até três maços seguidos. "Antes da entrevista, tive de usar o balão de oxigênio. Daqui a pouco acaba o gás", brincou, depois de uma hora de conversa com Gente. Hoje, Mário Lago não sai de casa para quase nada. Passa o dia de bermuda – não quis vestir calça comprida nem para posar para as fotos. Seu tempo é dividido entre a leitura de quase todos os jornais, jogos de futebol na televisão e a redação de seu nono livro, Meu Tempo de Moleque, sobre "as molecagens que fiz durante a vida", explica o escritor que, apesar do trabalho no livro, admite sem constrangimento: "Ultimamente estou vegetando".
Bem diferente da época em que passava o dia na Rádio Nacional, escrevendo e atuando nas novelas, militava na política e ainda curtia a noite. "Exigi demais do meu corpo. Nem sei por que ainda falo e tenho memória". Da vida de boêmio, o patriarca de cinco filhos, nove netos e dois bisnetos conservou o hábito de dormir tarde, depois de 1h, e a alegria de viver. "Não sou saudosista. Fiz um contrato de existência pacífica com o tempo. Nem ele me persegue, nem vou atrás dele. Um dia a gente se encontra".

terça-feira, 31 de julho de 2007

ENTRE OS CARRINHOS E O PRIMEIRO CARRO

Houve um tempo, fugaz, que a grana começou a ficar mais alta, porque morava-se com a mãe ainda, aos vinte e quatro, e pela primeira e até agora única vez na vida acumulava-se dois empregos, de repórter na revista e redator no jornal. Acordava-se cedo, no máximo às sete e dez ou quinze, e o repórter saía logo da Senador Vergueiro pra Praia, por onde caminhava até a redação da Bloch na Rua do Russel, na Glória. Primeiro no mesmo andar, com todo o resto da redação da editora, depois embaixo, em frente ao arquivo fotográfico, ao lado de uma sala de figurinos o repórter conheceu a rotina idílica de uma revista mensal até, no máximo, duas da tarde, quando já deveria estar dentro do 740, perto de cruzar a baía. Do fechamento do jornal saía lá pelas onze da noite pra dali a vinte, às vezes trinta minutos sentir a mesma felicidade espontânea, visceral, de ver o ônibus certo surgir fazendo a curva. Durante seis, sete meses foi assim, até que o repórter largou tudo pelo nome do Jornal do Brasil, pra ganhar menos e trabalhar até mais, tendo acumulado o suficiente pra comprar o primeiro carro, do qual ainda serão contadas algumas histórias por aqui. Um carro que não era bem carro, como diziam, sacaneando, os amigos, e também era mais que isso, e que se tremia todo, sacolejando as peças, quando chegava perto da velocidade atingida por alguns dos carrinhos em miniatura, pequenos, da matéria abaixo.

Revista Incrível, edição 47, de setembro de 1996

Durante o ano são disputadas oito provas pelo campeonato brasileiro e oito pelos regionais, sempre aos domingos, o dia sagrado para os amantes da velocidade, seja ela desenvolvida por Williams, Ferraris, Penskes ou por inocentes, mas nem tanto, carrinhos de controle remoto.

Carros perfeitamente ajustados e prontos para atingir velocidades extraordinárias, tensão nos boxes e, entre os pilotos, uma alta dose de adrenalina. Os ingredientes são típicos de qualquer corrida de automóveis. Mas, nesse caso específico, a diferença (talvez a única) é o tamanho das máquinas. O chamado Automodelismo de Rádio Controlado pode ser disputado com carros elétricos ou de combustão. Os primeiros são divididos  nas categorias de escalas 1/12 e 1/10, mas sofrem com o preconceito de quem encara a modalidade com a seriedade que todo esporte merece. Para esse tipo de aficionado, os carros elétricos não passam de brinquedos, isso se comparados com os supermodelos movidos à combustão, mais precisamente com o modelo 1/8, um "carrinho" com cerca de 60 centímetros de comprimento que chega a atingir a velocidade de 120 m/h.
O brilho do 1/8 acaba ofuscando as outras categorias movidas a combustão - nas escalas 1/10, 1/5 e 1/4 - e faz com que o carro, uma miniatura dos veículos que disputam o Campeonato Mundial de Marcas - aquele das famosas 24 Horas de Le Mans -, seja considerado o Fórmula-1 do automodelismo. A comparação não chega a ser nenhum exagero, já que praticamente todas as peças de um carro de verdade estão presentes no 1/8. O trabalho de ajuste de uma miniatura dessas para a corrida, incluindo a regulagem das barras estabilizadoras traseira e dianteira, do caster, da pressão do óleo e da cambagem, entre outros acertos, não difere muito do que é feito nas competições de automobilismo. Os minicarros têm duas marchas, com câmbio automático, e tração nas quatro rodas.
Os modelos 1/4 e 1/8 podem ser movidos a gasolina, mas o combustível utilizado no automodelismo é uma mistura de álcool metílico, óleo sintético e nitrometano. Uma corrida de 1/8, por exemplo, dura 30 minutos e, como na Fórmula-1, a eficiência nos pit stops é fundamental para decidir uma prova. Em vez do batalhão mobilizado pelas equipes durante as corridas dos carros de verdade, somente um mecânico tem autorização para reabastecer e, se necessário, trocar os pneus de um modelo.
O tanque de um veículo desses comporta 125 mil de combustível, suficiente para cinco minutos de corrida. A regra internacional do automodelismo prevê que cada bateria seja disputada por um máximo de dez carros. Outra semelhança entre as pequenas e grandes provas de automobilismo é a comunicação por rádio entre o mecânico, nos boxes, e o piloto, que fica numa torre com cerca de quatro metros de altura para visualizar toda a pista.
Por falar em pista, o Brasil está muito bem servido nesse quesito. No Rio de Janeiro, as provas pelos campeonatos brasileiro e carioca são disputadas nas pistas da Barra da Tijuca, situada em uma área da Prefeitura, no Trevo das Palmeiras, e de Guaratiba, localizada em um sítio particular, o Rodeo Drive. Esta última é considerada uma das melhores pistas do mundo. Já em São Paulo, as baterias costumam ser realizadas no Parque Municipal do Tatuapé.
Mesmo com boas pistas para a prática do automodelismo, o Brasil ainda engatinha em termos de quantidade de praticantes do esporte. Para o diretor da Associação de Automodelismo de Rádio Controlado (AARC) do Rio de Janeiro e atual campeão brasileiro da categoria 1/8, Sérgio D'Ângelo, o Boca, a falta de infra-estrutura e de patrocínio dificulta a divulgação do esporte. "Com a pista da Barra, que começou a ser usada em 94, houve uma abertura maior, mas ainda falta infra-estrutura. Nossa luta é para divulgar e tornar o automodelismo acessível a um número cada vez maior de pessoas", diz.
Sérgio é um exemplo típico dos poucos abnegados pelos minicarros de corrida espalhados pelo país. Remanescente da época heróica de meados da década de 70, quando as provas eram disputadas no estacionamento do Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio, ou na pista de kart do Playcenter, em São Paulo, ele orgulha-se de ser praticante de automodelismo desde os 7 anos de idade, quando participava de campeonatos do velho Autorama da Estrela.
De lá para cá, muita coisa mudou. A pista de Guaratiba foi inaugurada em 1981 e, no ano seguinte, já era organizado o primeiro campeonato brasileiro, inicialmente concentrado no Rio e em São Paulo. A partir de 1984 começaram a ser fundadas as associações de automodelismo pelo Brasil, e pilotos de Vitória (ES), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS), entre outras cidades, também passaram a competir nos nacionais.
A situação do esporte no país melhorou, mas as competições ainda são marcadas pelo amadorismo, principalmente porque muitos encaram o automodelismo como hobby. Em países como Itália, França, Holanda e Alemanha, o esporte mobiliza milhares de praticantes, que formam um ávido público consumidor de peças, equipamentos e até de publicações exclusivamente voltadas para o assunto. Talvez por isso a melhor colocação do Brasil nos campeonatos mundiais de 1/8 tenha sido a 9a posição por equipes, na Suécia, em 93, com Sérgio Boca, Francisco Carillo e Leonardo Leite, que ficou em 22o lugar no mesmo campeonato.
Pilotos como Boca e Carillo, da equipe Crear, utilizam os carros da marca holandesa Serpent, com motores Mega, combinação usada pela maioria dos pilotos de ponta e que detém o título mundial. "No exterior o negócio é levado mais a sério. Representantes de uma marca podem muito bem observar um bom piloto que não tenha um carro competitivo e oferecer seus modelos para que ele tenha um desempenho melhor e, conseqüentemente, promova a marca. A coisa é mais profissional", conta Gilberto Plínio de Souza, mecânico da Crear e da Pocape, esta última a equipe de seu filho, Vinícius, de 16 anos, atual líder do campeonato brasileiro.
Os mundiais são disputados de dois em dois anos e organizados pela Ifmar (International Federation of Model Auto-Racing), que por sua vez é subdividida em quatro federações representantes dos pilotos de todo o mundo. São elas a Roar (Estados Unidos e Canadá), Efra (Europa), Femca (Ásia) e Famar (América do Sul, México e África). O mundial de 97 será em Toluca (México). Como de costume, foi disputado este anho um pré-mundial no local do campeonato, em que os brasileiros Francisco Carillo, Alex Chammas, Sérgio Boca e Gustavo Clivellaro, o Gaúcho, ficaram em 14o, 15o, 16o e 17o lugares, respectivamente.
As corridas de automodelismo seguem um ritual praticamente inalterado. Uma pré-largada com todos os carros substitui a chamada volta de apresentação da Fórmula-1 para aquecer os pneus. Antes de cada prova costumam ser jogados cerca de 10 quilos de açúcar na pista, que já tem um asfalto mais fino do que o normal, para aumentar sua aderência. Um sensor acoplado ao carro garante a exatidão na cronometragem das provas, que, também a exemplo do que acontece nas Fórmula-1, é feita por computador. Não falta nem mesmo o ronco dos motores que entusiasma qualquer amante do automobilismo, pois o barulho ensurdecedor dos carrinhos movidos a combustão não fica nada a dever ao de seus similares em tamanho natural.
A temporada de 1/8 também segue o calendário da Fórmula-1, começando em março e geralmente terminando em novembro. Durante o ano são disputadas oito provas pelo campeonato brasileiro e oito pelos regionais, sempre aos domingos, o dia sagrado para os amantes da velocidade, seja ela desenvolvida por Williams, Ferraris, Penskes ou por inocentes, mas nem tanto, carrinhos de controle remoto.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

SOBRE MARISCOS E PROMESSAS

Aqui já foram mostrados textos da finada revista Incrível, do icônico Jornal do Brasil e da Istoé Gente, revista que concentra a maioria disparada da produção deste repórter que começou sua trajetória do outro lado da Baía de Guanabara, viajando muito, mas muito mais de barca do que pela ponte. E como o velho e bom jornal O Fluminense, mais centenário até do que o JB, não poderia deixar de ser lembrado logo neste início de blog, segue a matéria abaixo, um clássico do jornalismo local repetido em centenas, milhares de pautas, no qual as autoridades prometem, projetam, e o povo espera.

Jornal O Fluminense, edição de terça-feira, 20 de setembro de 1994

"O melhor é continuar nosso trabalho. Se tudo der certo, ótimo. Se não, paciência".

Foto: Luiz Ackermann


A Secretaria Estadual de Agricultura, Abastecimento e Pesca espera começar ainda esse mês a construção do Centro de Beneficiamento Comunitário de Mexilhão, em Jurujuba. O centro é um projeto da Federação Instituto de Pesca do Rio (Fiperj) e vai ser responsável pelo tratamento do mexilhão pescado por todos os marisqueiros de Niterói e o conseqüente aumento da qualidade do produto. A associação Livre de Mariscultores de Jurujuba, por sua vez, espera que o projeto saia definitivamente do papel, depois de mais de três anos de espera.
O centro deverá ser construído numa área de 400 metros quadrados, ao lado do Colégio Fernando Magalhães. De acordo com o diretor da Fiperj, Marcos Bezerra de Menezes, o governo do Estado vai entrar com uma verba de R$ 108 mil para o material e a Prefeitura ficará responsável pelo restante da obra. O Fundo Life, da ONU, também participa do projeto, com a doação de US$ 30 mil para a compra de equipamentos. "Com o centro, vamos ter mais condições de combater os problemas paralelos causados pela extração e cultivo dos mexilhões, problemas esses de ordem ambiental, social e urbana", diz Marcos.
Na realidade, esse projeto é uma continuação do Parque Comunitário de Criação de Mexilhões, inaugurado em janeiro de 93 na Fortaleza de Santa Cruz. Esse parque diversificou a produção, que deixou de ser exclusivamente extrativista, e melhorou a qualidade do mexilhão, que já sai da Fortaleza com o certificado do Laboratório de Rações Alimentares (Lara) da UFF. A produção do Parque (900 kg de carne a cada quatro meses) ainda é pequena comparada aos 2000 kg diários pescados pelos marisqueiros de Jurujuba, mas o preço do mexilhão cultivado chega a ser até três vezes superior ao normal. "Até alguns restaurantes caros de Jurujuba, que não compravam o mexilhão daqui, estão adquirindo o produto do Parque, pela sua qualidade comprovada", conta Marcos.
No futuro centro de beneficiamento será feito o cozimento do mexilhão, além do desconchamento e do ensacamento. Atualmente, todas essas atividades são feitas precariamente, em mesas de madeira onde trabalham, em cada uma, de cinco a sete pescadores. A intenção da Fiperj é participar da administração e fiscalizar a produção nos dois primeiros anos e, depois, desse prazo, deixar tudo por conta dos pescadores. "Queremos fazer tudo dentro dos rigores técnicos, inclusive com o auxílio da UFF. Para isso, vamos participar da produção do centro nos dois primeiros anos", explica Marcos. Entre os equipamentos previstos para o novo centro estão panelões para o cozimento, mesas de aço inoxidável, balanças e refrigeradores para a conservação do produto.
Marcos avisou ainda que o centro vai atender a todos os marisqueiros de Niterói, não só de Jurujuba mas também da Boa Viagem, Praia das Flechas e Sandiz (Centro), por exemplo. Quanto ao cultivo na Fortaleza de Santa Cruz, considerada uma área mais propícia ao desenvolvimento do mexilhão por estar na boca da baía, sem tanta poluição, ele disse que esse tipo de atividade não vai afetar a pesca dos mariscos. "Ninguém vai deixar de ser marisqueiro. O que pretendemos é dar início a um processo de ordenamento da produção marisqueira. Os maiores produtores do mundo, como a Espanha, conciliam o cultivo com a atividade extrativista", explicou.
Mesmo com a promessa do governo do Estado de começar a construção do Centro de Beneficiamento de Mexilhão, a Associação de Maricultores de Jurujuba continua com motivos para reclamar da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Pesca. O presidente da Associação, Misael de Lima, 38 anos de idade e 20 de Jurujuba, diz que só vai acreditar no centro quando chegar o material para a construção. "Não dá mais para acreditar em papel assinado, pois já estamos na espera há três anos. O problema é que o tempo do Estado é um e o nosso é outro. Queremos soluções imediatas e o governo quer fazer um negócio a longo prazo", protesta.
A Associação de Jurujuba foi fundada há três anos e conta com cerca de 50 associados. Em todo o município, aproximadamente 300 famílias dependem da mitilicultura (cultivo e extração dos mexilhões) e a colônia de Jurujuba é responsável pela maior parte da produção - 2 mil quilos de carne por dia. "A demanda para o mexilhão existe, mas só falta o centro para que a qualidade dele melhore e tenhamos mais condições de disputar o mercado", diz Misael.
Apesar da insatisfação com a secretaria, os pescadores são gratos, em parte, ao trabalho desenvolvido pela Fiperj, desde a criação do Parque da Fortaleza de Santa Cruz. "Agradeço a eles pelo trabalho, que foi bom para o esclarecimento de coisas que antes não sabíamos, como o cultivo do mexilhão. O problema é que eles vieram com a idéia do centro, nós aceitamos e agora o projeto fica parado todo esse tempo", diz o diretor da associação, Heleno Nascimento, de 44 anos. "Se o Estado não fizer nada vamos sair pedindo e tentar fazer por conta própria. Precisamos desse projeto até para ter onde guardar a produção quando não conseguirmos vender", completa. Misael mantém sua desconfiança em relação à conclusão do centro. "O melhor é continuar nosso trabalho. Se tudo der certo, ótimo. Se não, paciência".

Barcos e mergulhos. Nem todos os marisqueiros do estado trabalham da mesma forma. Enquanto uns só extraem o mexilhão das pedras, exclusivamente para sua própria sobrevivência, outros possuem até compressores de mergulho e vão a até oito metros de profundidade para conseguir o produto. Os pescadores de Jurujuba não chegam a esse grau de desenvolvimento, mas estão entre os mais organizados.
Os marisqueiros estão dividido em categorias. Há, por exemplo, os lateiros, que só extraem o marisco das pedras para a própria subsistência e os guardam em latas. Eles são comuns na Boa Viagem e no Aterro do Flamengo, no Rio. A segunda categoria já extrapola a subsistência e chega a comercializar o produto, mas os marisqueiros não costumam ter barcos. Estes são comuns na Ilha da Boa Viagem e na Praia das Flexas, que também é reduto da terceira categoria. Esta já conta com pequenos barcos a remo, mas ainda não é tão desenvolvida como a colônia de Jurujuba (4a categoria), que chega a ir até as ilhas oceânicas para extrair o mexilhão.
Segundo Marcos, a quinta e mais desenvolvida categoria se encontra atrás da antiga Sandiz, no Centro de Niterói. "Eles mergulham até oito metros de profundidade para pegar mariscos". O diretor da Fiperj contou ainda que 90% da produção de mariscos do Rio são vendidos para São Paulo. Em Jurujuba, os pescadores costumam trabalhar no mar das 5h às 11h30, aproximadamente. Eles vão até as ilhas oceânicas (Cagarras, Maricá, Tijuca, Pimenta, Tucunduva) em até cinco barcos a motor, que chegam a levar de dois a quatro botes.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

PARA O ALTO E AVANTE!




Já disse a alguns amigos qual a minha definição de avião, um cilindro que transporta gente a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora. Diante dessa verdade inquestionável, ainda me admiro com quem diz, com a maior calma do mundo, que não tem medo de avião. Eu tenho.

Não deixo de viajar por causa disso, claro, mas viajo sempre com medo, e sem deixar de cumprir meus rituais. Nisso, aliás, sou extremamente rigoroso. Não quero saber se tem alguém me olhando, se estou viajando com o colega de trabalho que fica rindo da minha cara ou com a mulher que me olha como se eu fosse maluco. Faço sempre os trinta e dois sinais da cruz durante a viagem, metade no processo de decolagem e a outra metade durante a aterrissagem.

Também aperto o cinto de segurança, verifico o encosto da cadeira e prendo a mesa na poltrona da frente sempre que uma aeromoça ou o sistema de som do avião me mandam fazer isso, seja em que língua for. Se tem dado certo até hoje, por que eu iria parar, não é mesmo? Mas o engraçado é que nem sempre foi assim. Nas minhas primeiras vezes dentro de um cilindro com asas eu não fiz nada disso, talvez por empolgação ou por curiosidade, já que eu só fui entrar num avião pela primeira vez aos vinte e cinco anos de idade.

Foi numa viagem a trabalho do Rio de Janeiro para Campina Grande, na Paraíba, num daqueles vôos paradores da Varig, que antes de chegar ao seu destino aterrissou ainda em Salvador, Aracaju, Maceió e em Recife, onde trocamos de aeronave e seguimos rumo à terra do glorioso Treze.

Cinco decolagens, e eu sem medo algum. Me esforcei pra fingir naturalidade a viagem inteira, é verdade, mas medo, sinceramente, não senti, e olha que menos de um ano antes eu tinha participado da cobertura do Vôo 402 da Tam, aquele que vinha pro Rio e caiu em Congonhas antes, matando todo mundo dentro do avião e mais um pessoal em terra.

Confesso que às vezes olhava atentamente pra asa (porque eu sentei numa janela atrás da asa) tentando identificar o tal reverso, a peça responsável pela queda do Fokker 100, pelo menos de acordo com a cobertura jornalística da qual eu participara. Cheguei a me preocupar, de leve, com uma espécie de persiana na lâmina da asa, que abria e fechava à mercê do vento, até ser tranqüilizado pelo fato de que o avião estava no ar, em plena decolagem, seguindo seu trajeto normalmente.

Se a tal persiana fosse o reverso, nosso boeing 737-300 estaria no chão, em pedaços provavelmente, porque o reverso não podia abrir durante a decolagem. Entre as centenas de informações sobre a queda do Fokker 100 da Tam, foi essa a que ficou pra mim, tanto que não sei mais quantos morreram no acidente, nem no avião nem em terra, mas nunca mais me esqueci dessa sentença inquestionável da engenharia aérea: o reverso é para abrir na aterrissagem, não na decolagem.

Até hoje, quando estou prestes a entrar num avião ou mesmo quando já estou dentro dele, me vem à cabeça a frase

O reverso não pode abrir na decolagem.

Da mesma maneira que de vez em quando, do nada, me lembro de algum daqueles ensinamentos inesquecíveis da infância, tipo Antes de P e B vem o M, ou Embaixo é junto e Em cima é separado.

O medo na primeira viagem de avião, então, limitou-se a isso: breves lapsos de raciocínio sobre o funcionamento correto do reverso, que acabaram sendo ofuscados pela preocupação maior durante o tour aéreo pelas capitais nordestinas: identificar, do céu, os estádios de futebol das cidades onde aterrissei. Pena que o saldo tenha sido abaixo do esperado.

Vi a Fonte Nova em Salvador, mas nada do Rei Pelé em Maceió, ou do Arrudão no Recife. Ilha do Retiro e o estádio dos Aflitos, então, nem pensar. Em Aracaju avistei um campo de futebol aparentemente oficial, mas tão detonado e com umas arquibancadas tão pequenas que custo a crer que pudesse pertencer a clubes com a grandeza de um Confiança, de um Sergipe, ou mesmo de um Itabaiana.

Na segunda viagem de avião, a Cuba (parcialmente descrita no post abaixo), também não tive medo, pelo menos no início. Era minha primeira vez em solo estrangeiro, aos vinte e seis anos, e isso foi o suficiente para aplacar qualquer tipo de apreensão com o sucesso do vôo.

Então entrei tranqüilamente, sem receio algum, num Iliuch da companhia cubana de aviación, aeronave das mais peculiares já planejadas pela engenharia aérea soviética. Nosso Iliuch possuía quatro turbinas como boa parte dos aviões, mas com uma pequena diferença: todas ficavam na cauda da aeronave, nenhuma nas asas.

Não faço a menor idéia do que isso significa na parte mecânica do negócio, mas soa estranho. E se soa estranho pode muito bem causar algum tipo de receio, é até natural que cause. Só que em mim não causou, nem quando, já dentro do cilindro, o alquimista de origem germânica, possuidor de vasto conhecimento sobre aviões, quis ser engraçado e, referindo-se aos passageiros que passavam por nossas poltronas, soltou a frase:

Coitados, eles pensam que estão entrando num avião.

Cheguei a rir do comentário e permaneci assim, bem humorado, até a chegada a Havana, com direito a aplausos para o habilidoso comandante que conseguiu pousar aquele troço. Uns três dias depois, embarquei no Antonov citado no post abaixo ainda sem medo, até que, outros três dias após a visita à maravilhosa ilha das iguanas, uma imagem terrível iluminou minha mente, e nunca mais eu fiquei absolutamente tranqüilo dentro de um avião.

De novo no Iliuch, nos preparávamos para sair de Havana em direção a Cancún, no Mérrico. Eu, o nobre guevarista e o alquimista de origem germânica, porque o boleiro calvo, hipnotizado por algumas dezenas de uniformes de colegiais, deixou-se ficar em terras cubanas.

Não sentamos juntos dessa vez. Me lembro apenas que o nobre guevarista se encontrava na mesma posição de minha poltrona, umas três ou quatro fileiras à frente. Enquanto o avião fazia aquele trajeto angustiante em terra, de praxe antes das decolagens, mantive-me calmo. Até que na última curva surgiu a cena aterradora, no exato momento em que a aeronave soviética, ao som de suas quatro turbinas na traseira, posicionou-se para a arrancada final antes da subida aos céus.

Da pequena abertura de minha janela, avistei os restos de um avião aparentemente idêntico ao nosso, ou pelo menos pintado com as mesmas cores. Era um amontoado de ferro retorcido com uma única parte identificável: a barbatana da traseira, que pairava impávida no meio daquele cenário devastador, exibindo, para quem quisesse ver, o logotipo da companhia cubana de aviación.

Claro que aquele avião igual ao nosso tinha se espatifado ali mesmo, na pista ao lado da nossa, se bobear durante uma decolagem, e claro que esse foi o primeiro raciocínio a passar pela minha cabeça quando vi aquele monte de ferro com uma barbatana em cima. O segundo pensamento, lógico, foi uma pergunta.

Onde estava a porra do reverso?

Mesmo sem saber ao certo se a peça em questão ficava por lá, resolvi olhar fixamente pra asa (e até hoje olho, mas nunca consegui achar nada parecido com o reverso ali, a não ser as tais persianas). E ainda olhava para a asa quando as quatro turbinas na traseira do Iliuch quadruplicaram seus barulhos e avisaram, com esse sinal, que a aeronave já estava decolando.

Era preciso achar o reverso, sim, mas também era necessário algum apoio moral naquele momento, porque, porra, minha consciência tinha acabado de chegar, e ela me perguntava o que diabo eu estava fazendo dentro de um Iliuch soviético de uma companhia cubana, com quatro turbinas na traseira e em pleno processo de decolagem.

Olhei, então, para o nobre guevarista e vi uma careca empapada de suor, um rosto meio amarelado e um sorriso na minha direção que até então eu só tinha visto no cinema, em personagens que geralmente terminam os filmes dentro de uma camisa de força.

Ele nega até hoje, e diz que o meu rosto é que era a verdadeira imagem do pavor naquele momento. Não acredito, simplesmente porque, mesmo em pânico, consegui me controlar. Mantive-me quieto a viagem inteira, em silêncio, enquanto toda a minha vida passava pela minha cabeça como num filme.

Como não me lembro bem de como adquiri o hábito dos sinais da cruz, devo ter feito alguns nesse dia, mas de fora me comportei quase como uma dessas pessoas que, dentro do avião, agem como se estivessem na poltrona de casa, como se algum ser humano minimamente consciente pudesse se sentir em casa a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora.

Estava em pânico, sim, mas da maneira mais contida possível. E foi em absoluto silêncio e praticamente imóvel, com os braços fincados em seus homônimos da poltrona, que experimentei a agradável sensação da sobrevivência.

Quando o Iliuch e suas quatro turbinas na traseira pousaram em solo merricano, me senti um novo homem. Tinha enfrentado a morte e continuava ali, vivo, incólume, apenas com uma ligeira dor nos maxilares por causa do chiclete obrigatório das decolagens e aterrissagens (tinha esquecido de falar disso).

Saí revigorado daquele avião cubano, tão feliz que, já na passagem pela alfândega merricana, nem percebi o rosto esverdeado do alquimista de origem germânica, único entre nós a ser obrigado a abrir sua bagagem na frente de dois ou três sucessores do Sargento Garcia. Até achei engraçado quando uma bola de tênis saiu quicando da mochila de nosso amigo, provocando o riso dos policiais merricanos e encerrando prematuramente, de maneira muito bem humorada, a vistoria nas malas.

Só depois de sairmos do aeroporto, quando já estávamos no táxi, é que soubemos, eu e o nobre guevarista, que graças àquela bola o alquimista de origem germânica pôde passar pela alfândega merricana munido de um pequeno saco plástico alojado em uma de suas malas, embaixo de algumas meias, que continha umas quinze gramas da substância ilícita popularmente conhecida como maconha.

Mas não sei porque me alongo nesse episódio se o texto fala de aviões, medo e embate com a morte. Então voltemos ao tema principal desse relato para dizer que, desde essa viagem de Havana a Cancún, andar de avião passou a ser exatamente isso para mim: um embate com a morte, necessário, na minha opinião, a todo ser humano, principalmente a nós, machos, descendentes dos sujeitos que matavam mamute com tacape, dos caras que levavam óleo fervendo na nuca tentando invadir castelos e da galera que entrava num navio de madeira e partia pra dentro do oceano sem muita idéia do que ia encontrar pela frente.

A nós, homens do século vinte e um que não somos PMs no Rio nem fuzileiros navais no Iraque, cabe encontrar uma maneira digna de honrar a macheza de nossos ancestrais. Eu encontrei a minha. E se algum chato vier lembrar que, de acordo com as estatísticas, minhas chances de sobrevivência num vôo qualquer são muito maiores que as do soldado americano que desembarcou na Normandia, por exemplo, é só pedir que ele, o chato, vá lá no fim do século quinze, vire pra um marujo da caravela do Vasco da Gama (pra citar apenas o maior de todos os navegantes) e pergunte se ele não acha atitude de macho andar a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora dentro de um cilindro.

Eu acho. E por isso faço questão de enfrentar meu medo de avião sempre que pinta uma chance pra isso*, até porque, pra compensar, poucas sensações na vida são mais agradáveis do que a caminhada, após a aterrissagem, por dentro daqueles braços gigantes de metal que fazem a ligação do avião até o aeroporto.

E outra coisa, só pra finalizar. O homem das cavernas que matava mamute, o cavaleiro que invadia castelo e o marinheiro da caravela portuguesa costumavam andar armados, pelo menos nos momentos críticos. Eu enfrento a morte desarmado, munido apenas dos meus trinta e dois sinais da cruz, metade no processo de decolagem e a outra metade durante a aterrissagem.

*Aqui cabe um adendo. Já andei de helicóptero duas vezes, uma deles numa viagem de uma hora e pouco mar adentro, até uma plataforma de petróleo na Bacia de Campos. Já sobrevoei os Andes num avião do Loyd Aéreo Boliviano, e cheguei a dormir durante essa viagem, ajudado pelo fato de ter sido acordado às quatro e pouco da matina, em La Paz, pra pegar o avião. Aliás, só pude apreciar de cima a beleza dos picos nevados da cordilheira andina graças à prestativa aeromoça boliviana, mulata daquelas que fazem feijoada em quadra de escola de samba. Isso porque ela, com seu batom cor-de-abóbora, chegou a me cutucar pra me acordar e perguntar se eu queria suco de laranja.
Andei ainda no Antonov da ilha das iguanas, movido a hélice, mas espero que nunca, jamais, em tempo algum eu precise entrar num avião monomotor. Acho que nesse caso minha coragem sofreria um sério abalo.
Também disse no texto que enfrento meu medo de avião sempre que aparece uma oportunidade, mas, na verdade, se tiver opção de escolha não pego avião para lugares que ficam a menos de seis horas de carro do Rio. Arriscar a vida para ir somente a São Paulo, por exemplo, sem que haja conexão alguma lá para um lugar mais distante, já é um pouco demais, até porque adoro dirigir na Dutra.

Abaixo, segue uma matéria referente ao tema, assinada também pela Gabriela Garcia

Jornal do Brasil, edição de sexta-feira, 18 de setembro de 1998

"Estávamos a 130 metros, começando a recuperar a aeronave, quando o outro helicóptero surgiu embaixo do nosso. Batemos no rotor principal (hélice) dele, que destruiu nosso esqui".

Duas pessoas morreram num acidente envolvendo dois helicópteros, na tarde de ontem, no Aeroporto de Jacarepaguá. O choque aconteceu às 16h45, quando o helicóptero da Riana Táxi Aéreo - modelo Bell 407, de prefixo PT YLZ - chocou-se com a aeronave da Nacional Aero Táxi (NAT), modelo Robson 22, de prefixo PT YPS. O Bell 407 fazia um treinamento de pouso, enquanto o Robson 22 realizava um vôo de demonstração. Cada helicóptero estava com dois tripulantes. Os dois mortos, o comandante André de Almeida Santos, 21, e Guilherme Fortes Thedim Costa, estavam no Robson 22. De acordo com a NAT, Guilherme havia fretado o helicóptero, que saiu do hangar da empresa às 16h05.
O choque aconteceu quando o Bell 407 finalizava um pouso de auto-rotação - procedimento usado em emergências, em que o piloto simula uma pane de motor, deixa o helicóptero descer bruscamente e só recupera o motor a poucos metros do chão. "Estávamos a 130 metros, começando a recuperar a aeronave, quando o outro helicóptero surgiu embaixo do nosso. Batemos no rotor principal (hélice) dele, que destruiu nosso esqui", contou o comandante Paulo Roberto Ferreira dos Santos, de 40 anos. Ferreira pilota há 17 anos e estava dando instruções a outro piloto, Luís Cláudio Florentino Gomes, 32, num curso de reciclagem.
Segundo o comandante Ferreira, o helicóptero que realiza um pouso de emergência tem prioridade sobre qualquer outra aeronave. O comandante disse ainda que não foi informado pela torre de controle do aeroporto sobre a presença do Robson 22 da NAT. "Eu vi o helicóptero deles na minha frente quando comecei a voar. Depois, não vi mais. Acho que houve algum desencontro na torre. Existe uma fita gravada que pode provar que não fui avisado de nada".
Depois do choque, o comandante conseguiu manter o controle de seu helicóptero e pousou mesmo com o esqui pendurado, a 200 metros do local do acidente. "Procurei uma duna, onde o terreno é fofo, porque estava com os esquis de pouso avariados", contou.
O comandante João Carlos de Souza de Oliveira, um dos fundadores da NAT, disse que só a gravação da torre de controle poderá determinar quem tinha a prioridade de pouso. "Geralmente, a aeronave que está mais baixa e na frente, como era o caso do helicóptero da NAT, tem a prioridade. Mas temos de ouvir a fita para ter certeza disso", declarou.
João Carlos, que afirmou ter 15 anos de experiência na área de investigação de acidentes, acredita em duas possibilidades para o acidente. "Pode ter havido falha de comunicação da torre de controle ou falta de atenção de um dos pilotos". O dono da NAT, Elzo Freitas, preferiu não especular sobre o acidente. "Só sei que nossa aeronave era nova e passava por uma manutenção constante, e que nosso piloto era competente. O resto é especulação".
De acordo com o superintendente da Infraero responsável pelo aeroporto, Manoel Abreu, o desastre será investigado pela Divisão de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Dipaa), do Departamento de Aviação Civil (DAC). "O DAC tem um prazo de 30 dias para concluir as investigações", disse Manoel.
Mesmo com a investigação do DAC, João Carlos disse que a NAT também fará uma investigação por conta própria. "Fazemos esse tipo de procedimento com o objetivo de prevenir novos acidentes. Achar os culpados é obrigação da polícia". O delegado da 16a DP (Barra da Tijuca), Antônio Serrano, afirmou que vai esperar para ouvir a fita e todos os que estavam na torre, de modo a tirar qualquer dúvida sobre o acidente. "Antes disso, não podemos tirar qualquer conclusão", disse. Luís Cláudio Gomes, que pilota há 10 anos, disse que sofreu seu primeiro acidente ontem. O Bell 407 custa US$ 1,5 milhão e tem capacidade para sete pessoas. O Robson 22 pode transportar dois tripulantes.
O Aeroporto de Jacarepaguá já registrou outros dois acidentes este ano. Em 24 de março, um helicóptero modelo Hughes, prefixo PT-HGP, avaliado em US$ 800 mil, caiu próximo à pista, durante um "sobrevôo de manutenção" - teste da mecânica do aparelho -, sem ferir o piloto, Carlos Lemos Mouzo, e seu companheiro de viagem, o auxiliar de mecânico Luciano Domingos Carneiro. Problemas no motor da cauda, após 15 minutos da decolagem, causaram a queda.
No dia 2 de maio, o monomotor Corisco prefixo PT-RZN, pilotado por Carlos Raposo, quebrou a roda dianteira no momento em que pousava em Jacarepaguá. O avião ficou desgovernado, deslizou na pista e foi parar num matagal ao lado. Apesar da desastrada manobra, o piloto e seu acompanhante saíram ilesos.
Acidentes com helicópteros têm sido freqüentes no Estado do Rio. No dia 4 de janeiro, o dono do Hotel Glória, Eduardo Tapajós, 68 anos, morreu no helicóptero que o trazia de Angra dos Reis para o Rio de Janeiro, quando o aparelho caiu no mar, perto de Mangaratiba, na Costa Verde. Eduardo viajava acompanhado da mulher, Maria Clara Pereira dos Santos, 53, e do casal de namorados Márcio Artiaga, 27, e Letícia Mello, filha do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello. Com exceção de Eduardo, que ficou preso no cinto de segurança e afundou com o helicóptero, todos conseguiram sair e ficaram boiando por duas horas, até serem resgatados por uma lancha.
Um acidente na mesma região que mobilizou a atenção do país foi o de 12 de outubro de 1992, em que morreu o deputado federal Ulysses Guimarães. O helicóptero decolara com o deputado acompanhado de sua mulher, dona Mora; do empresário e ex-ministro da Indústria e Comércio Severo Gomes; e da mulher deste, Maria Henriqueta, rumo ao Rio de Janeiro. Ninguém sobreviveu.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

LANCHONETES

Eu já tinha me hospedado num hotel bacana no alto de Itatiaia, tinha admirado a histórica arquitetura de Tiradentes e acampado em condições miseráveis na Serra do Cipó, e já tinha mamado uma garrafa de Brahma às oito da matina, crente que eram duas da tarde, em Montalvânia, na divisa do sertão mineiro com o sertão baiano, quando a caravana da categoria Expedition do Rally dos Sertões fez uma parada estratégica em Nova Holanda.

Percorríamos o trajeto entre Janaúba, em Minas, e Ibotirama, na Bahia, e os organizadores da Expedition, categoria composta por uma galera endinheirada que fazia um trajeto paralelo ao do rally de competição, sem tanta pressa, resolveram parar para esperar uns dois ou três retardatários de nosso comboio. Estávamos atravessando a caatinga nordestina, num daqueles cenários dignos de Globo Repórter, então todo cuidado era recomendável para evitar que alguém se perdesse por ali.

Não sou lá a pessoa mais abalizada para afirmar isso, mas pelo que costumamos ver na televisão, no cinema e nos demais meios de comunicação, posso dizer que Nova Holanda é um típico povoado do sertão nordestino. Em dois mil e dois, a cidade era formada por uma rua maior e, no máximo, umas quatro vias paralelas, todas de terra batida e ladeadas por casas de alvenaria barata, baixas, pobres e praticamente do mesmo tamanho. Em volta, o que se via era a caatinga, plana até o infinito.

Vegetação típica do nordeste brasileiro, como dizem os livros de geografia desde os nossos onze ou doze anos de idade, a caatinga deve também possuir uma certa variedade de espécies em suas flora e fauna. Aposto que um estudioso da região poderia apontar muitos tipos diferentes de plantas e bichos característicos da terra de Lampião. Mas eu só consegui ver terra e galhos secos entre Montalvânia, em Minas, e São Raimundo Nonato, no Piauí, em dois dias de viagem.

Os galhos secos eram das plantas que formavam a vegetação dominante às margens da estrada. Eram baixas, mais ou menos de um metro e sessenta de altura, e pareciam ligeiramente inclinadas para o mesmo lado. Tinham também, todas elas, numerosas ramificações em suas copas secas, como os chifres dos alces mais respeitados da manada. Dispostas lado a lado ao longo de centenas de quilômetros, as representantes da tal vegetação típica da caatinga, cujos nomes devem ser conhecidos por muita gente, mas ainda não por mim, mal deixavam perceber qualquer outra coisa na aridez do sertão.*

Às vezes surgia um cacto ou uma pedra um pouco maior, mas no mais, da janela de nossos veículos quatro por quatro, só se viam elas, as plantas cheias de galhos secos entrelaçados. Elas e, nos acostamentos da rodovia de terra, as cruzes. Algumas toscas, de madeira, outras de ferro, postas sobre altares de ladrilhos ou tijolos, todos de uns sessenta centímetros de altura.
Sim, sepulturas, ou covas rasas, pra usar o termo mais exato, que surgiam mais ou menos a cada três minutos de viagem. Enterrar seus mortos na beira da estrada deve ser algum costume do sertanejo do Nordeste.

Aparentemente tranqüila, a pequena e pacata população de Nova Holanda já devia ter recebido algum programa de televisão ou equipe de cinema quando lá chegamos, porque alvoroço pela presença na cidade de uns vinte jipes, entre Land Rovers, Hiluxes e Pajeros, além de um caminhão da Volkswagen, sinceramente, eu não notei.

Também a caravana não ficou lá por muito tempo. Logo os organizadores da Expedition concluíram que não era necessário que todos os carros do comboio ficassem esperando os retardatários. Então tomaram duas decisões antes de ir embora: mandaram a F-1000 de resgate atrás dos atrasados e deixaram na cidade apenas um carro da organização, a Toyota Hilux na qual eu viajava, ao lado do dono do carro, chamado André, se não me falha a memória, e de outro sujeito da equipe do rally.

No troca-troca entre os carros, ao qual fomos submetidos desde o início da viagem, eu e o fotógrafo da revista, o grande Felipe Barra, já tínhamos nos separado desde a véspera. Ele seguiu viagem com o comboio e eu fiquei em Nova Holanda, no meio da caatinga.

Não seria uma estadia longa no povoado. Na verdade, se permaneci lá durante quarenta minutos até a chegada dos retardatários, foi muito. Mesmo assim, consegui honrar minha profissão e, tal como Amaral Netto em seus melhores dias, entrevistei um legítimo representante do povo sertanejo, um brasileiro. Era um coroa, de bigode branco e boné da BR Distribuidora, e estava sentado num comprido degrau de cimento, com os pés no barro do sertão e as costas encostadas na parede do que parecia ser a sua casa. Havia uma bela sombra ali, então foi fácil fingir um motivo pra sentar perto dele e iniciar a entrevista.

Tinha pouco tempo, logo os retardatários chegariam. Precisava de uma primeira pergunta que arrancasse o máximo do entrevistado, que o fizesse dissertar, de uma só tacada, sobre as peculiaridades da terra, a rotina da população local e a experiência de morar num dos lugares mais pobres do planeta. Olhei em volta para a cidade quase deserta e, com a rapidez de raciocínio dos grandes repórteres, mandei a pergunta que me daria tudo isso e muito mais:

Aqui é sempre assim?

Por razões até hoje inexplicáveis pra mim, o velho nordestino não começou a falar com eloqüência sobre sua cidade nem sobre sua vida. Sorriu apenas, de leve, e no meio do seu sorriso, com os olhos no chão, disse só uma frase:

Isso aqui é o fim do mundo.

Que bela declaração, hein? Resignada e ao mesmo tempo dramática, capaz de ilustrar com precisão a sofrida vida do povo nordestino. Na televisão, seria uma festa. Mas eu precisava de um pouco mais. Apelei, então, para a maior paixão do brasileiro, e como o Brasil tinha acabado de levantar o Penta no Japão (e na Coréia), lancei minha segunda pergunta:

O pessoal daqui acompanhou a Copa?

Ah, sim, todo mundo viu o jogo na venda de seu fulano, respondeu o coroa.
(aqui um pedido de desculpas. Por mais que eu tente, não consigo me lembrar do nome desse ilustre comerciante nordestino que emprestou aos seus vizinhos a única televisão da cidade e permitiu, com esse gesto, que Nova Holanda acompanhasse o Brasil na Copa do Mundo. O nome estava no meu bloco de apuração, mas esse já foi jogado fora há quase cinco anos)

E quando o Brasil ganhou? A festa foi grande?, continuei.

Ah, os meninos pegaram a caminhoneta do Juvêncio (desse eu me lembro, vá entender) e ficaram pra lá e pra cá aqui na rua, gritando Brasil, Penta, contou o velho sertanejo, apontando pra rua principal da cidade, onde ficava a casa dele.

E o senhor? Festejou muito?

Eu fiquei feliz, fiquei aqui olhando eles...foi bom.

A entrevista não durou muito depois disso. Logo os retardatários chegaram, mas ainda tive tempo de arrancar umas respostas já esperadas, com perguntas previsíveis, inclusive a informação mais conhecida sobre o sertão nordestino, de que lá falta água. Parece óbvio. E é. Só que o idiota aqui, antes da entrevista com o coroa de boné, já tinha conseguido cometer uma gafe absurda na lanchonete de Nova Holanda. Porque cheguei na cidade com fome, após umas três horas de viagem, e resolvi conferir o que Nova Holanda tinha a me oferecer em termos de comida.

A lanchonete em questão tinha o chão de cimento, um luxo para a localidade, paredes completamente vazias e um pequeno balcão, atrás do qual estava o dono do estabelecimento, sujeito tranqüilo, meio coroa e também de bigode. Em cima do balcão, havia apenas um daqueles recipientes de vidro onde costumam ser guardados os salgadinhos em casas do gênero. Dentro dele, tinha um pedaço de queijo minas, e mais nada.

Logo fui informado de que minha única opção ali seria um sanduíche de queijo minas. Aceitei. O dono do estabelecimento pegou então um pão num saco de papel e partiu ao meio. Cortou depois uma fatia de queijo, das grossas, e enfiou dentro do pão. Paguei algo em torno de cinqüenta centavos pelo queijo frio e comi ali mesmo, em pé, porque não havia nem sombra de cadeiras ou mesas na lanchonete.

Até que tava gostoso. Matei minha fome e, antes de ir embora, cometi a tal gafe. Virei para o dono da lanchonete e perguntei, como se estivesse em qualquer outro lugar que não fosse o sertão nordestino:

Amigo, onde tem uma torneira pra lavar a mão?

O cara esboçou um sorriso e disse só um Tem não. E eu percebi o tamanho da imbecilidade da minha pergunta. Meti um riso idiota na cara e saí logo dali, pra me sentar ao lado do coroa de boné da BR.

Não me lembro do nome da lanchonete de Nova Holanda, mas descobri um pra ela no restante da viagem, um ou dois dias depois. Passávamos pelo sertão do Piauí, e dessa vez a caravana não parou no meio do caminho. Atravessamos direto algumas cidades bem parecidas com Nova Holanda, até porque tinham em volta a mesma paisagem de terra e galhos secos da caatinga.
Numa dessas localidades, eu avistei a lanchonete. Era uma casa branca, e em cima da entrada estava lá escrito, com tinta azul:

Lanchonete Deus Dará

Os carros não pararam, tinham um prazo qualquer a cumprir para chegar em Crateús, no Ceará. Só tive tempo de perguntar o nome daquela cidade ao sujeito da organização que viajava no mesmo carro que eu, no banco do carona. Ele deu uma olhada no mapa e disse:

Vera Mendes

E assim eu fiquei sabendo que em Vera Mendes, no sertão do Piauí, tem uma lanchonete chamada Deus Dará. Ou pelo menos tinha, entre julho e agosto de dois mil e dois.

*Cheguei a pensar em tentar descrever a mudança da paisagem quando se sai do sertão mineiro, coberto de verde, para o nordestino, coberto de barro. Da janela do carro, é nítida a maneira como o verde começa a rarear, para dar lugar à caatinga. Mas outro cara já fez isso há tanto tempo, que eu prefiro deixar com ele essa missão. Mas vou logo avisando, não sei o que são manchas terciárias, ignoro completamente o significado da palavra cretácea, não faço idéia de onde fica a Pojuca e, por mais que eu me esforce, não consigo me lembrar de nenhuma bromélia rubra. Mas o cara era o cara, então Vai que é tua, Euclides!

Logo a partir de Camaçari, as formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com a precisão de um decalque. Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica – arbustos flexuosos entressachados de bromélias rubras – prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas. (Euclides da Cunha, Os Sertões, A terra)

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 158, de 12 de agosto de 2002










   










Criada no ano passado, a Expedition corre paralela à competição oficial do Rally dos Sertões. Nesse ano, os carros das duas categorias só se encontraram em três cidades: Diamantina e Janaúba, em Minas, e Fortaleza, o destino final de ambas. Enquanto os pilotos da prova oficial aceleravam a mais de 100 km/h na luta pelo melhor tempo, a turma da Expedition não tinha tanta pressa. (Foto: Felipe Barra)

Em 1923, um aventureiro norueguês conhecido como Mister Jens saiu de sua terra para chegar às Ilhas Galápagos, no Equador, a bordo de um veleiro. Enfrentou seis meses de calmaria no mar, quase morreu, mas sobreviveu para manter acesa a paixão pelas viagens. Durante os anos 60, morava em Porto Alegre e gostava de levar o neto para percorrer o interior do Rio Grande do Sul numa velha Kombi, usada também como dormitório durante as aventuras. Mister Jens já morreu, mas seu espírito pareceu ter reencarnado entre os dias 24 de julho e 2 de agosto, numa Land Rover Defender 110 branca.
Dirigindo o carro batizado com o nome do avô, o empresário gaúcho Bob Wolheim, 40 anos, passou por estradas de terra cheias de buracos, trechos de asfalto quase intransitáveis e comeu muita poeira para percorrer os cerca de 4.400 km entre São Paulo e Fortaleza, no percurso da categoria Expedition do Rally dos Sertões de 2002. A viagem serviu para testar o carro comprado este ano, depois que ele e a mulher, a publicitária Fernanda Romano, 28, decidiram mudar de vida. "No Carnaval, alugamos um jipe e dirigimos 2 mil km por toda a Costa Rica. Na época estava lendo um livro da família Schummann (famosa por viver viajando pelo mundo) e percebi que, se quiséssemos, poderíamos ter uma vida semelhante", diz o empresário, que mora em São Paulo. O trabalho impediu Fernanda de acompanhar o marido, que testou o carro equipado com cama, geladeira e fogão de uma boca ao lado do sogro, Cássio Romano, 56.
Se a mudança radical de vida ainda é um projeto para o futuro, Bob parece já ter sido infectado pelo vírus do rally, presente na grande maioria dos cerca de 60 aventureiros da categoria Expedition deste ano. É o caso do fotógrafo Manolo Moran, 41, que participou do rally pela Segunda vez. "Acho que peguei esse vírus, porque não há chance de eu não voltar nos próximos anos", diz o atual piloto de um Troller, que até o ano passado nunca tinha tido um veículo 4X4. "Pensei em comprar um jipe velho com medo de ser assaltado, mas optei por um novo mesmo, e não me arrependi".
No caso do industrial alemão Christoph Gross, 38, e da mulher, Zuleica, 40, a participação no rally faz parte de uma mudança de vida iniciada há três anos, quando o casal saiu de São Paulo para morar em Penedo, na região serrana do Rio. Dono de uma fábrica de remédios e no Brasil desde os 10 anos, Christoph encarou como poucos o espírito da expedição. "Tirei o trabalho da cabeça, quero aproveitar essa oportunidade única de conhecer o Brasil por dentro".
Criada no ano passado, a Expedition corre paralela à competição oficial do Rally dos Sertões. Nesse ano, os carros das duas categorias só se encontraram em três cidades: Diamantina e Janaúba, em Minas, e Fortaleza, o destino final de ambas. Enquanto os pilotos da prova oficial aceleravam a mais de 100 km/h na luta pelo melhor tempo, a turma da Expedition não tinha tanta pressa. E assim pôde curtir as atrações de cidades históricas como Tiradentes e Diamantina, as belezas naturais de parques nacionais como o da Serra do Cipó, em Minas, ou o da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, e praias paradisíacas como a de Jericoacara, no Ceará.
Mas atravessar os sertões brasileiros sem competir não é só diversão. Na etapa entre Diamantina e Janaúba, os participantes da Expedition aceitaram atuar na equipe técnica da competição. Às 4h do domingo 28, estavam de pé para levar os veículos aos locais onde cada um deles ficou parado, com a missão de manter limpa a estrada à espera dos pilotos. Isso durante cerca de cinco horas, debaixo de sol e com a comida e a água levadas nos carros. O empresário paulista Christiano Freire, 29, que viajava com a mulher, Gal, 26, embrenhou-se no meio do mato para espantar alguns bois que ameaçavam entrar na pista. "O que me atraiu foi a aventura, e a chance de ver um país que nunca iria conhecer sozinho", afirma.
Como os colegas de expedição, Christiano pagou caro para atravessar o sertão brasileiro. Ao contrário de competições como o Rally Paris-Dakar, onde os pilotos e mecânicos não têm outra solução a não ser acampar no deserto, os expedicionários ficam em hotéis e comem em restaurantes. Acampamento mesmo só na Serra do Cipó, onde a pousada situada no parque nacional não tinha quarto para todos. Além das despesas de hospedagem e alimentação, todas a cargo dos expedicionários, a inscrição de cada carro custou R$ 4,4 mil.
O preço dava direito à comunicação através de rádio, planilhas para a navegação, indicando os caminhos corretos nas trilhas entre uma cidade e outra, auxílio mecânico e reboque até a cidade mais próxima, caso o carro não pudesse continuar no comboio. Mais um motivo para derrubar a tese de que a Expedition é uma brincadeira comparada à competição oficial do Rally dos Sertões. "Os pilotos do rally têm um monte de mecânicos à disposição. Nós temos de nos virar para resolver nossos problemas", disse o empresário Raphael Klein, 24, a bordo de uma Ford Ranger que no fim da viagem já estava com um amortecedor do velho Opala.
Percalços como esse, porém, não são nada perto do que a fotógrafa Luciana Mendonça, 29, já passou no Rally dos Sertões. Ao lado do pai, o empresário Roberto Mendonça, 60, ela participou da competição oficial do Rally em 1999 e 2000. A dupla se revezava no volante de uma Mitsubishi L 200 até que, no terceiro dia de competições em 2000, o carro capotou quando Roberto pilotava. Luciana conseguiu sair pela janela, mas o pai teve de esperar a ajuda do socorro. Ninguém ficou ferido, mas o trauma foi suficiente para que a fotógrafa optasse pela Expedition. "Depois do acidente perguntei se aquilo valia a pena. Hoje quero parar para curtir as coisas que o rally proporciona, e você não aproveita direito se estiver competindo", disse, antes de entrar no mesmo carro que capotara, agora usado com muito mais calma, para apreciar o sertão brasileiro.