domingo, 15 de abril de 2007

BRASILEÑOS

A chegada

O avião era esse Antonov aí de cima, de fabricação soviética. Como vocês podem reparar, no lugar daquelas turbinas que costumam ficar embaixo das asas, havia hélices, por mais que hoje me pareça absurda a possibilidade de algum dia ter entrado num avião movido a hélices.
Mas naquele dia ainda faltavam mais ou menos umas quarenta e oito horas para eu começar a sentir medo de avião com a intensidade de agora, então encarei aquela viagem, de Havana a Caio Largo, com certa calma.

Não, certa calma é o cacete. Eu estava surpreendentemente relaxado, senão como me manteria em pé, no corredor da experiente aeronave, durante a aterrissagem?
Isso mesmo. Um avião soviético movido a hélice, construído talvez em algum ano perdido entre as décadas de cinqüenta e sessenta (ou setenta, na melhor das hipóteses), e pilotado por um comandante cubano que fumou charuto ao longo do vôo, aterrissa no Caribe comigo dentro, tranqüilo e em pé.

É tudo verdade. Quer dizer, a história do charuto nos foi contada pelo comissário de bordo, sujeito espirituoso que passou boa parte do vôo a distribuir uma bandeja com umas balas tipo Juquinha em cima, dizendo Uísque, Caviar, Vinho, Champanhe, cada vez que apontava para uma delas.

Mas então aterrissamos, e não fui só eu quem fez isso em pé. O nobre guevarista, meu amigo, comigo conversava também de pé. Ele que, como eu, não é lá muito chegado aos aviões. Pois naquela situação, a dialogar sobre nossas primeiras impressões acerca das peculiaridades do regime de Fidel Castro, ou a discutir se a melhor cerveja cubana era a Mayabe, a Bucanero ou a Cristal, não lembro ao certo, fomos surpreendidos pelo primeiro quique da aeronave comunista no solo. E chegamos ao nosso destino, eu e ele, rindo muito de tudo aquilo, provavelmente de nervoso.


O grupo

Comigo viajavam, além do nobre guevarista, o alquimista de origem germânica, desbravador das bocas-de-fumo cubanas, cuja capacidade de engolir pimenta, comprovada em noite histórica no Lamas de Mérida, ainda viria a assombrar todo El Mérrico; e o boleiro calvo, matemático de renome, rei dos cálculos incompreensíveis e dos campos de pelada, mais talentoso até do que eu no futebol, apesar dos meus precisos lançamentos de quarenta metros, do meu drible curto e da minha potente canhota de média distância.

Conosco, na excursão à paradisíaca ilha das iguanas, um grupo formado por quatro mulheres compatíveis com nossas idades (três italianas e uma uruguaia), espalhadas entre outras pessoas um pouco mais velhas, entre elas a mãe da uruguaia e um coroa bonacha, italiano de Nápoles, que dizia ser o advogado de Diego Armando Maradona.

Agora uma pausa para a descrição das quatro mulheres compatíveis com a nossa idade, sem vulgaridades, lógico, que o blog aqui é de respeito.

A uruguaia era daquelas baixinhas interessantes de cabelo curto. Nada de absurdo, mas bonitinha de rosto, magra na medida certa e aparentemente gente boa. Enfim, comível, se tivesse dado pelo menos uma centelha de mole a qualquer um de nós, o que infelizmente não aconteceu. Mas vamos logo às italianas. O que dizer da mais bonita das três? Que ela poderia ser apresentadora daqueles programas de futebol transmitidos pela RAI aos domingos? Hum, não sei se todos compreenderiam... Então tentarei descrevê-la da maneira mais resumida possível, para fugir dos clichês.

A mais bonita das italianas tinha cabelo castanho, olhos verdes, pele mais para branca do que morena e um corpo que não atrapalhava em nada tudo isso, e mais não digo sobre ela, porque a hora agora é de falar da segunda italiana mais bonita.

Alta, magra, cabelos pretos, curtos, pele branca, olhos de Betty Boop e boca de Angelina Jolie. Ok, estou exagerando um pouco, mas a moça tinha lá seu charme, a ponto de despertar os instintos conquistadores do nobre guevarista, cuja técnica de abordagem, em inglês, ainda iria render declaração histórica.

Falta a terceira italiana? Então eu digo, com todo o respeito à moça, que a terceira italiana, assim como nós, malandros cariocas,  não era lá essas coisas, mas completava o número ideal de mulheres para ficarmos animados, pelo menos até nos depararmos com o barco destinado a nos levar de Caio Largo à espetacular ilha das iguanas.


El Capitán Caniggia
Já cientes que apenas uma embarcação transportaria todo o nosso grupo, nos deparamos com duas ancoradas no cais. Uma de um velhinho raquítico, vestido com uma surrada bermuda jeans, e outra de um sujeito mais novo, vestido de sunga e camiseta sem manga.

E agora chego ao grande dilema deste texto: Como descrever o sujeito mais novo sem parecer homossexual? Bom, para não me alongar muito, diria que se a Globo resolvesse filmar a história desse sujeito nos anos 80, o papel dele caberia ao Carlos Alberto Ricceli. Se as filmagens ocorressem nos dias de hoje, talvez Rodrigo Santoro pudesse interpretar o jovem marinheiro, mas teria de tingir os cabelos de louro, porque era louro o cara, e como tinha cabelos compridos, recebeu da gente o apelido de Capitán Caniggia (A quem não entendeu, recomendo uma rápida pesquisa sobre a atuação do Brasil na Copa de Noventa, na Itália, mais precisamente sobre uma certa derrota, contra a Argentina, e não se fala mais nisso).

Unindo nossas preces, eu, o nobre guevarista, o boleiro calvo e o alquimista de origem germânica oramos para sairmos numa calma viagem pilotada pelo velhinho raquítico. Deus, porém, não estava do nosso lado dessa vez, e partimos todos, nós quatro, as três italianas, a uruguaia e o resto do grupo, na embarcação pilotada por Capitán Caniggia, com o auxílio de seu fiel parceiro Lothar, cuja semelhança com o ajudante do Mandrake nos fez pensar em mais este criativo apelido durante a viagem.

Desânimo. Sim, nós, os cariocas malandros, cheios de esperança em relação às quatro moças, nos deixamos abater pela presença daquele cubano de mierda, sobretudo porque, na certa acostumado com aquela situação, el Capitán Caniggia circulava cheio de desenvoltura pelo barco, deixando todo o trabalho para Lothar enquanto ciscava entre as moças, o filho da puta.


A ilha
Mas tínhamos raça, amor à camisa, e por isso não desistimos. Na carona do nobre guevarista, o mais desenvolto de nós quatro, entabulamos um início de conversação com as italianas, e ficamos quase íntimos das duas menos bonitas entre elas, a ponto de sermos informados, quando já estávamos na incrível ilha das iguanas, que a italiana mais bonita tinha preferido ficar mais um tempo no barco ancorado, porque, segundo as outras duas, estava meio enjoada.

Não, não sei se ela e o Capitán Caniggia..., não sei disso e nem me interessei em saber, nem quando, após meia hora desfrutando das maravilhas da belíssima ilha das iguanas, ainda não tínhamos dado pela presença daquele cubano de mierda entre nós.

Falemos, então, das tais maravilhas desta estupenda ilha das iguanas. A começar pelo óbvio: as iguanas.

Eram muitas e, sem contar o rabo, tinham o tamanho médio de um fox terrier. Algumas aparentavam mesmo um certo complexo de cachorro. Andavam atrás da gente por algum tempo, mendigavam migalhas de qualquer bolacha e paravam também, quando interrompíamos nossa caminhada. No geral, eram amistosas, e simpáticas. Uma, por exemplo, seduziu de tal maneira o advogado de Maradona que por mais de uma vez, durante nossa estadia na ilha, chegamos a flagrar o ilustre homem da Lei, ao som da onipresente música cubana, a bailar feliz com sua amiguinha verde-oliva uma espécie de iê-iê-iê cucaracha.

Eram realmente das maiores maravilhas daquela ilha caribenha, as iguanas, porque, no resto, esse negócio de praia paradisíaca no caribe, com mar transparente e areia branca, não era bem algo tão espetacular assim para nós, cariocas espertos, moradores da cidade mais bonita do planeta.

O que pode ser citada como outra maravilha, por não haver praias perto das nossas casas com tal cortesia, era uma daquelas máquinas de tirar chope, instalada em cima do balcão do bar da inigualável ilha das iguanas.

Tudo bem, o chope era horrível, choco, mas era de graça e estava ali perto, ao nosso alcance, a qualquer hora, e por isso transformou-se na melhor iguaria da esplendorosa ilha das iguanas, muito superior, por exemplo, ao conjunto de espinhas em formato de posta de um peixe qualquer servido ao nosso grupo no almoço, enquanto El Capitán Caniggia, numa reaparição fugaz, degustava sozinho uma bela lagosta, o filho da puta.


A primeira frase
Deixemos, porém, nosso rival caribenho de lado para dizer que, apesar da presença daquele cubano de mierda entre nós, procuramos nos divertir ao máximo na fenomenal ilha das iguanas, com a ajuda do fraco porém gratuito chope local, quase tão ruim quanto o pior chope do mundo, vendido por algo equivalente a um centavo de real no Malecón, em Havana.

O alquimista de origem germânica e o boleiro calvo, por exemplo, deram uma amostra do talento tupiniquim no frescobol, enquanto o nobre guevarista conseguia o telefone e o endereço da uruguaia em Montevidéu. Com a mãe dela, é verdade, de quem o nosso amigo se aproximara numa tática um tanto apelativa, mas, enfim, já era alguma coisa.

E foi com um papel amassado no bolso de seu short, contendo alguns números e o nome de uma rua qualquer da cidade do Peñarol ( e do Nacional também), que nosso amigo, junto comigo, com o alquimista de origem germânica e com o boleiro calvo, abriu batalha em duas frentes e voltou às italianas, às duas menos bonitas entre elas, quero dizer, porque a apresentadora da RAI ainda não tinha aparecido na maravilhosa ilha das iguanas.

Ao redor da dupla de milanesas, iniciamos uma bucólica caminhada pelas praias do Caribe e o boleiro calvo tomou a dianteira, ao arrastar a menos bonita das italianas para um mergulho na água transparente do mar. Ele que, logo em sua primeira tentativa de abandonar o português durante a viagem, já havia mostrado todo o seu conhecimento do esperanto.

E numa declaração das mais desnecessárias, diga-se de passagem, porque a garçonete daquele bar em Havana Velha, nossa primeira parada na capital cubana, sequer tinha perguntado ao nobre guevarista se ele queria camarão, e certamente não estava nem um pouco interessada em saber se o discípulo de Che podia ou não ingerir o saboroso crustáceo. Mesmo assim, o boleiro calvo fez questão de informá-la sobre a situação do amigo, e por isso soltou a frase com cinco palavras, cada uma delas em uma língua diferente. E a frase foi:

il não puede mangiar cameron.

Notem que il é ele em francês, não é não em português, mangiar (se estiver escrito corretamente) é comer em italiano, puede é pode em espanhol e cameron é camarão, numa língua qualquer ainda a ser criada.

Um portento, realmente, oração digna de figurar em livros de recordes, mas que em termos históricos, pasmem, ainda viria a ser superada durante a viagem, mais precisamente durante esta caminhada através do cinematográfico litoral caribenho, novamente com a presença do boleiro calvo, que voltou do mergulho no mar transparente demonstrando leve irritação, e reclamando que a tal da italiana não entendia nada do que ele falava.


A segunda frase
Enquanto eu e o alquimista de origem germânica mantínhamos nossa atitude contemplativa, em respeito aos esforços de nossos camaradas, o nobre guevarista tomou a dianteira e, com bravura inigualável, partiu à conquista da segunda italiana.

Abusou do inglês, recorreu ao portunhol e arriscou até alguns comentários em italiano num animado bate-papo à beira-mar, cujo conteúdo, pelo que entendi, enquanto acompanhava a caminhada do casal uns cinco metros na frente, não passou daquilo já esperado: o velho sete um, clássico, incrementado com informações banais sobre diversas cidades do planeta. Afinal de contas, a conversa era entre pessoas de países diferentes.

O nobre guevarista, então, dissertou com desenvoltura sobre as maravilhas e mazelas do Rio de Janeiro, sem deixar de mostrar toda a sua cultura geral em pertinentes comentários sobre as cidades italianas. E foi quando ele, num momento de extrema coragem, resolveu expor sua preferência por Roma entre as metrópoles da Grande Bota, a despeito de estar tentando alguma coisa com uma habitante de Milão, que eu prejudiquei meu amigo. Sim, é verdade, posso dizer que contribuí de alguma forma, ainda que inconscientemente, para o fracasso do insistente guevarista em sua empreitada. Porque ele, com a segurança dos grandes conquistadores, resolveu dizer à moça o quanto Roma fazia a cabeça dele, assim, nesses termos, mas em inglês, isso no exato momento em que eu levava à boca o horrível porém gratuito chope da inesquecível ilha das iguanas.

Se já não iria entender direito aquela frase sobre a capital de seu país, mesmo que ela tenha sido pronunciada num inglês perfeito, a segunda italiana só aumentou sua cara de O que está acontecendo? quando eu, ao ouvir a sincera declaração de meu parceiro de viagem, por algum motivo não consegui me conter e esguichei o chope cubano numa risada incontrolável, só porque a frase do nobre guevarista, dita após uma afirmação qualquer sobre Milão feita pela moça, foi essa aqui:

Yes, but Rome makes much more my head.


O grito
Sem se abater com o duro golpe da incompreensão de sua musa, o nobre guevarista manteve-se firme durante a viagem de volta da inesquecível ilha das iguanas. Ao frescor da brisa do mar do caribe, sob a responsabilidade de Lothar e del Capitán Caniggia, continuou na busca pela vitória, até ser interrompido por uma grata surpresa, que seria bem mais agradável se não tivéssemos acabado de ingerir, cada um de nós quatro, uns oito ou nove copos de chope, pelo menos.


Com o auxílio de um par de pés-de-patos, uma máscara e um snorkel, iríamos mergulhar em alto mar, no lindo azul do caribe, bêbados, com a lata cheia de álcool. E foi graças ao péssimo chope cubano, choco, morno e gratuito, que ficamos estupidamente animados com aquela situação. Antes de mergulhar, porém, tivemos de ouvir as recomendações de nosso guia turístico.

O discurso foi rápido e direcionado a todo o grupo, inclusive ao advogado de Maradona, a essa altura já devidamente paramentado para explorar as profundezas do oceano, e preparando-se para o mergulho com uma espécie de polichinelo sem sair do chão, talvez por causa dos pés-de-patos calçados.

No geral, o guia nos deu recomendações banais e somente uma ordem a ser cumprida.

Não toquem nos corais.

Concordamos, claro, e já iniciávamos nossa preparação para o mergulho quando, na frente de todo o grupo, o guia virou-se apenas para nós quatro, únicos brasileiros do barco, e, como se fôssemos delinqüentes juvenis, repetiu a ordem.

Brasileños, não toquem nos corais.

Nosso protesto foi bem humorado, porém veemente. Por que falar só com a gente? Por que o tratamento diferenciado aos brasileiros, perguntamos, entre risos nossos e do resto do barco, inclusive do responsável por nossa humilhação pública, cubano como El Capitán Caniggia, e também de mierda, como o comandante da embarcação.

Mas o momento era de diversão, então reprimimos a vontade de mandar o guia à puta caribenha que o parira e tratamos de mergulhar, para nos depararmos com um daqueles corais coloridos embaixo do barco.

Claro que eu, pelo menos, aproveitaria muito mais a possibilidade de estar diante de tal maravilha se tivesse um mínimo sequer de técnica de mergulho, e se estivesse sóbrio. Mas dei lá meu jeito, primeiro apenas enfiando a cara no espelho da água transparente com a máscara, e respirando com o snorkel.

Depois arriscando alguns mergulhos, de uns três metros de profundidade, no máximo, e uns cinco segundos de duração, eu acho. Deu pra guardar na memória a bela imagem do coral colorido, mas não me lembro de peixe algum, apesar de certamente ter visto vários. No fim das contas, acho que aproveitei bem a surpresa. Pelo menos posso dizer por aí que mergulhei no Caribe. Já é o suficiente, ainda mais pra quem, como eu, não acha nem um pouco legal se deparar com um tubarão em mar aberto, pra citar apenas uma das situações que deixa os amantes pelo mergulho mais excitados.

Satisfeito com minha performance, portanto, já me preparava para voltar ao barco quando ouvi o grito do nobre guevarista.

Sem que ninguém percebesse, nosso amigo tinha se afastado um pouco do grupo. Longe do barco, descobriu uma ramificação do coral estendida a menos de um metro da superfície, e não apenas tocou nela.

Certamente ainda ofendido pela petulância daquele guia de mierda, e também irritado com o jeito de galã de minissérie del Capitán Caniggia, como todos nós, o guevarista fincou os pés no sensível coral colorido e, emergindo do mar como Netuno, ou Iemanjá, depende da religião, soltou o grito de nossa vingança brasileira.

E o grito, berrado com a voz do Esqueleto do He-Man, foi:

Eeeeeeeeeeeiiiii! Eu sou o rei do Cariiiiibeeee!!

Imediatamente, eu, o alquimista de origem germânica e o boleiro calvo identificamos o momento histórico pelo qual estávamos passando. Tínhamos sido humilhados de maneira vergonhosa pelo guia cubano. Ao longo de todo o passeio, fomos obrigados a aturar o jeito calado sabe-tudo daquele Capitán Caniggia de mierda.

Pois aquela era a hora da vingança. Então nadamos em direção ao nosso amigo e subimos, todos, no coral que não podia ser tocado, para protagonizar uma autêntica festa brasileira no exterior. Sem show da Ivete Sangalo e apresentação do Eri Jonhson, sim, mas ainda assim uma confraternização verde-e-amarela em solo estrangeiro, para mostrar como nós, brasileños, agimos quando sofremos algum tipo de preconceito. Para mostrar que merecemos respeito, ora bolas. Afinal de contas, somos penta. Se bem que nessa época ainda éramos apenas tetra, porque a história, que agora acaba, com essa bela cena protagonizada por quatro cariocas espertos ligeiramente embriagados no Caribe, aconteceu no mês de dezembro do ano da graça de mil novecentos e noventa e oito.

Abaixo, a matéria que é mais uma prova da superioridade inquestionável da mistura de todas as raças que forma o brasileiro.

Revista Incrível, edição 46, de agosto de 1996

"O menor problema detectado pelos laboratórios americanos que testaram nosso produto seria suficiente para prejudicar seriamente nossa reputação".

Responda rápido: qual o país que produz o AZT mais barato do mundo e desenvolve projetos como a fabricação de tijolos mais leves e resistentes com a borra de tinta usada na fabricação do dinheiro? Quem respondeu Estados Unidos, Japão ou Alemanha está enganado. Esse país, por mais incrível que pareça, é do Terceiro Mundo e atende pelo nome de Brasil. Pouco considerados no meio científico, os brasileiros têm exibido surpreendente capacidade para revelar boas idéias. Diversos projetos desenvolvidos aqui mostram condições excelentes para competir nos grandes centros tecnológicos de todo o mundo, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores nacionais.
Um dos exemplos da capacidade de nossos cientistas foi dado há quatro anos pelo laboratório Microbiológica, do Rio de Janeiro, o terceiro no mundo a desenvolver o princípio ativo do AZT, principal medicamento usado no tratamento da Aids. Apesar da forte concorrência e de toda a pressão exercida pelo fabricante mundial do remédio, a Wellcome, dos Estados Unidos, o Zidovudina AZT produzido pelo Microbiológica foi aprovado pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária e é hoje o AZT mais barato do mundo. O frasco com 100 cápsulas do produto brasileiro custa 65 reais, enquanto o similar americano sai por 87 reais, isso depois de o laboratório dos EUA reduzir seu antigo preço (150 dólares), numa tentativa de não perder de vez o mercado do Brasil. A molécula do AZT também é produzida no Canadá.
Toda essa pressão só contribuiu para que os cientistas brasileiros se esforçassem ao máximo com o objetivo de atingir a perfeição na produção do medicamento. "Tivemos todo o cuidado no desenvolvimento da molécula do AZT e do próprio remédio, já que o menor problema detectado pelos laboratórios americanos que testaram nosso produto seria suficiente para prejudicar seriamente nossa reputação", conta Fernando Cruz, ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos sócios do Microbiológica. Outro sócio do laboratório, Jaime Rabi, que também foi professor da UFRJ, trabalhou 20 anos na síntese dos derivados nucleosídicos, o que permitiu o desenvolvimento do princípio ativo do AZT.

Plástico biodegradável. Em tempos de aumento da consciência ecológica e de muita preocupação com o buraco na camada de ozônio, os cientistas brasileiros não se esquecem da necessidade de preservação do meio ambiente. É com essa mentalidade que o professor Celso Lellis Bueno Netto, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) de São Paulo, dirige há quatro anos sua equipe de pesquisadores que trabalha na criação do plástico biodegradável, que começou a ser produzido em caráter experimental pela Copersucar (Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo) em setembro de 94, e hoje já está sendo fabricado em escala piloto, que pode chegar a cinco toneladas por mês.
De acordo com um dos assistentes de pesquisa do projeto, José Gregório Gomes, o objetivo é usar a produção em escala piloto para gerar material para embalagem e verificar em quais situações o plástico ecológico se adapta bem. "A previsão inicial é de que essa produção continue por pelo menos dois anos, mas se o processo avançar rapidamente o plástico poderá começar a ser produzido industrialmente antes desse prazo", conta Gregório. A descoberta de Celso Lellis se transforma em gás carbônico e água num prazo máximo de 18 meses, enquanto o período necessário para a degradação dos plásticos comuns não é inferior a 60 anos. Com toda essa vantagem, o preço do plástico biodegradável acaba ficando mais caro. A previsão é de que a tonelada do novo produto custe cerca de 3 mil dólares, contra aproximadamente 1 mil dólares da mesma quantidade do seu velho e poluente antecessor.

Dinheiro como matéria-prima. As dificuldades enfrentadas pela ciência nacional muitas vezes acabam proporcionando idéias criativas, que dificilmente sairiam da cabeça fria de um sueco, ou de qualquer outro cientista de países onde a falta de dinheiro não é problema. Criatividade, aliás, é o que não falta no projeto do pesquisador Sérgio Neves, da Universidade Estadual Norte Fluminense (Uenf), que vem desenvolvendo a produção de tijolos mais leves e resistentes, utilizando a borra de tinta rejeitada pela Casa da Moeda. Segundo Sérgio, que trabalha no Laboratório de Materiais Avançados do Centro de Ciência e Tecnologia da Uenf, a borra de tinta adicionada ao barro, na proporção de até 10 por cento, não oferece qualquer risco de contaminação ambiental e permite a produção de tijolo, telha ou lajota de boa qualidade. A Casa da Moeda, no Rio, tem estocadas cerca de 30 mil toneladas de resíduos da borra usada na fabricação de papel-dinheiro. A Uenf espera repassar a tecnologia do novo produto inicialmente para as cerâmicas instaladas na região Norte Fluminense.

Coco reprodutor. Para comprovar toda essa criatividade tipicamente tropical nada melhor do que a experiência do veterinário José Ferreira Nunes. Como bom cearense, José escolheu o coco para ser a matéria-prima de suas pesquisas, e descobriu que a água da fruta funciona perfeitamente como um diluidor do sêmen, podendo ser empregada na inseminação artificial para conservar o espermatozóide vivo até o momento da fecundação. Ao desenvolver seu projeto, no laboratório da Universidade Estadual do Ceará, o veterinário constatou que o sêmen resiste por 60 horas com a água-de-coco numa temperatura a quatro graus centígrados. Nas soluções tradicionais, com a mesma temperatura, a resistência seria de no máximo 24 horas.

Cardiologista eletrônico. A falta de estrutura comum em alguns setores acaba fazendo com que cientistas brasileiros desenvolvam projetos que, apesar de uma aparente simplicidade, nunca foram imaginados pelos grandes nomes da tecnologia mundial. Esse é o caso do software elaborado pelo Programa de Engenharia de Sistemas e Computação, da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, em conjunto com o Hospital da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O sistema tem como função diagnosticar um eventual infarto agudo do miocárdio, a doença cardiovascular que é a causa mais freqüente de mortalidade em todo o mundo. A partir da coleta de dados sobre o exame e a história clínica do paciente, além da análise do eletrocardiograma, o software emite o mesmo julgamento que seria feito por um cardiologista. A idéia pode parecer inútil para hospitais bem equipados e com um número suficiente de cardiologistas, mas certamente facilitaria o trabalho nas pequenas unidades de saúde espalhadas em locais de difícil acesso. "O sistema tira e interpreta um eletrocardiograma, e é comum um médico que está no posto de emergência, geralmente um clínico geral, não saber interpretar um eletro", diz a professora Ana Regina Rocha, que comanda a equipe da UFRJ no programa.
Os testes realizados desde 94 no hospital da UFBA, em Salvador, onde o projeto é coordenado pelo médico Álvaro Rabelo Jr., mostram que o software encaminha para internamento um número de pessoas apenas quatro por cento superior ao que realmente precisaria ser internado. "Esse número é muito baixo e ajudaria a reduzir a sobrecarga nos hospitais da rede pública, já que na dúvida, e sem o auxílio do software, a tendência entre os médicos que não sejam cardiologistas é internar qualquer paciente com suspeita de infarto", completa Ana Regina. Cada unidade do sistema - que inclui um microcomputador ligado via modem a uma central de referência, onde é instalado o sistema especialista e um software para tirar e interpretar o eletro - custaria aproximadamente 3 mil reais.

Software contra doenças. Outro projeto desenvolvido na UFRJ para auxiliar o trabalho na área de saúde é o software elaborado pela equipe do Programa de Engenharia Biomédica da Coppe, que auxilia no rastreamento de doenças em determinadas áreas. Com base nos dados coletados pelos agentes sanitários da Fundação Nacional de Saúde (FNS), o sistema elabora mapas digitalizados que mostram a situação de uma região em relação a qualquer doença. A grande novidade do projeto, coordenado pelo professor Flávio Fonseca Nobre, é que o software da UFRJ é um dos primeiros a ser totalmente desenvolvido aqui. "A maioria dos sistemas similares a esse, que costumam ser utilizados para planejamento urbano, é importada. Além disso, a idéia dos mapas não é inédita, mas ainda é pouco utilizada na área da saúde", diz Flávio. Apesar de depender do trabalho de pesquisa dos agentes sanitários e da análise dos especialistas em epidemiologia, o software seria útil à medida que reduziria o tempo entre a coleta de dados e a chamada visualização espaço temporal da doença. Um convênio assinado entre a UFRJ e a FNS servirá para testar a real eficácia do sistema, que será implantado no Sul do Tocantins com o objetivo de rastrear os casos de malária na região.

Supertinta. Entre todas as inovações tecnológicas, uma em especial tem todos os requisitos para reduzir as dores de cabeça de quem luta contra o tempo e as dificuldades financeiras para manter o patrimônio, seja este um carro ou uma casa de praia, em bom estado de conservação. Há pelo menos seis anos, o professor Luiz Roberto Miranda, do Programa de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da UFRJ, vem desenvolvendo uma tinta antiferrugem especial, contra qualquer tipo de corrosão. O que caracteriza a supertinta de Miranda é sua composição, que varia de acordo com o fator causador da corrosão. O pesquisador utiliza o produto que provoca a ferrugem para fabricar sua invenção. Dessa forma, a tinta usada para impedir a corrosão em uma casa de praia, causada pela maresia, será diferente daquela utilizada para o mesmo fim em uma área industrial. Os resultados dos testes realizados no laboratório de corrosão da UFRJ mostraram que o produto é eficiente. Resta agora que alguma empresa se interesse em comercializar a invenção de Miranda, para que mais uma novidade cem por cento brasileira passe a ficar disponível no mercado - nacional e internacional.