sexta-feira, 4 de maio de 2007

LANCHONETES

Eu já tinha me hospedado num hotel bacana no alto de Itatiaia, tinha admirado a histórica arquitetura de Tiradentes e acampado em condições miseráveis na Serra do Cipó, e já tinha mamado uma garrafa de Brahma às oito da matina, crente que eram duas da tarde, em Montalvânia, na divisa do sertão mineiro com o sertão baiano, quando a caravana da categoria Expedition do Rally dos Sertões fez uma parada estratégica em Nova Holanda.

Percorríamos o trajeto entre Janaúba, em Minas, e Ibotirama, na Bahia, e os organizadores da Expedition, categoria composta por uma galera endinheirada que fazia um trajeto paralelo ao do rally de competição, sem tanta pressa, resolveram parar para esperar uns dois ou três retardatários de nosso comboio. Estávamos atravessando a caatinga nordestina, num daqueles cenários dignos de Globo Repórter, então todo cuidado era recomendável para evitar que alguém se perdesse por ali.

Não sou lá a pessoa mais abalizada para afirmar isso, mas pelo que costumamos ver na televisão, no cinema e nos demais meios de comunicação, posso dizer que Nova Holanda é um típico povoado do sertão nordestino. Em dois mil e dois, a cidade era formada por uma rua maior e, no máximo, umas quatro vias paralelas, todas de terra batida e ladeadas por casas de alvenaria barata, baixas, pobres e praticamente do mesmo tamanho. Em volta, o que se via era a caatinga, plana até o infinito.

Vegetação típica do nordeste brasileiro, como dizem os livros de geografia desde os nossos onze ou doze anos de idade, a caatinga deve também possuir uma certa variedade de espécies em suas flora e fauna. Aposto que um estudioso da região poderia apontar muitos tipos diferentes de plantas e bichos característicos da terra de Lampião. Mas eu só consegui ver terra e galhos secos entre Montalvânia, em Minas, e São Raimundo Nonato, no Piauí, em dois dias de viagem.

Os galhos secos eram das plantas que formavam a vegetação dominante às margens da estrada. Eram baixas, mais ou menos de um metro e sessenta de altura, e pareciam ligeiramente inclinadas para o mesmo lado. Tinham também, todas elas, numerosas ramificações em suas copas secas, como os chifres dos alces mais respeitados da manada. Dispostas lado a lado ao longo de centenas de quilômetros, as representantes da tal vegetação típica da caatinga, cujos nomes devem ser conhecidos por muita gente, mas ainda não por mim, mal deixavam perceber qualquer outra coisa na aridez do sertão.*

Às vezes surgia um cacto ou uma pedra um pouco maior, mas no mais, da janela de nossos veículos quatro por quatro, só se viam elas, as plantas cheias de galhos secos entrelaçados. Elas e, nos acostamentos da rodovia de terra, as cruzes. Algumas toscas, de madeira, outras de ferro, postas sobre altares de ladrilhos ou tijolos, todos de uns sessenta centímetros de altura.
Sim, sepulturas, ou covas rasas, pra usar o termo mais exato, que surgiam mais ou menos a cada três minutos de viagem. Enterrar seus mortos na beira da estrada deve ser algum costume do sertanejo do Nordeste.

Aparentemente tranqüila, a pequena e pacata população de Nova Holanda já devia ter recebido algum programa de televisão ou equipe de cinema quando lá chegamos, porque alvoroço pela presença na cidade de uns vinte jipes, entre Land Rovers, Hiluxes e Pajeros, além de um caminhão da Volkswagen, sinceramente, eu não notei.

Também a caravana não ficou lá por muito tempo. Logo os organizadores da Expedition concluíram que não era necessário que todos os carros do comboio ficassem esperando os retardatários. Então tomaram duas decisões antes de ir embora: mandaram a F-1000 de resgate atrás dos atrasados e deixaram na cidade apenas um carro da organização, a Toyota Hilux na qual eu viajava, ao lado do dono do carro, chamado André, se não me falha a memória, e de outro sujeito da equipe do rally.

No troca-troca entre os carros, ao qual fomos submetidos desde o início da viagem, eu e o fotógrafo da revista, o grande Felipe Barra, já tínhamos nos separado desde a véspera. Ele seguiu viagem com o comboio e eu fiquei em Nova Holanda, no meio da caatinga.

Não seria uma estadia longa no povoado. Na verdade, se permaneci lá durante quarenta minutos até a chegada dos retardatários, foi muito. Mesmo assim, consegui honrar minha profissão e, tal como Amaral Netto em seus melhores dias, entrevistei um legítimo representante do povo sertanejo, um brasileiro. Era um coroa, de bigode branco e boné da BR Distribuidora, e estava sentado num comprido degrau de cimento, com os pés no barro do sertão e as costas encostadas na parede do que parecia ser a sua casa. Havia uma bela sombra ali, então foi fácil fingir um motivo pra sentar perto dele e iniciar a entrevista.

Tinha pouco tempo, logo os retardatários chegariam. Precisava de uma primeira pergunta que arrancasse o máximo do entrevistado, que o fizesse dissertar, de uma só tacada, sobre as peculiaridades da terra, a rotina da população local e a experiência de morar num dos lugares mais pobres do planeta. Olhei em volta para a cidade quase deserta e, com a rapidez de raciocínio dos grandes repórteres, mandei a pergunta que me daria tudo isso e muito mais:

Aqui é sempre assim?

Por razões até hoje inexplicáveis pra mim, o velho nordestino não começou a falar com eloqüência sobre sua cidade nem sobre sua vida. Sorriu apenas, de leve, e no meio do seu sorriso, com os olhos no chão, disse só uma frase:

Isso aqui é o fim do mundo.

Que bela declaração, hein? Resignada e ao mesmo tempo dramática, capaz de ilustrar com precisão a sofrida vida do povo nordestino. Na televisão, seria uma festa. Mas eu precisava de um pouco mais. Apelei, então, para a maior paixão do brasileiro, e como o Brasil tinha acabado de levantar o Penta no Japão (e na Coréia), lancei minha segunda pergunta:

O pessoal daqui acompanhou a Copa?

Ah, sim, todo mundo viu o jogo na venda de seu fulano, respondeu o coroa.
(aqui um pedido de desculpas. Por mais que eu tente, não consigo me lembrar do nome desse ilustre comerciante nordestino que emprestou aos seus vizinhos a única televisão da cidade e permitiu, com esse gesto, que Nova Holanda acompanhasse o Brasil na Copa do Mundo. O nome estava no meu bloco de apuração, mas esse já foi jogado fora há quase cinco anos)

E quando o Brasil ganhou? A festa foi grande?, continuei.

Ah, os meninos pegaram a caminhoneta do Juvêncio (desse eu me lembro, vá entender) e ficaram pra lá e pra cá aqui na rua, gritando Brasil, Penta, contou o velho sertanejo, apontando pra rua principal da cidade, onde ficava a casa dele.

E o senhor? Festejou muito?

Eu fiquei feliz, fiquei aqui olhando eles...foi bom.

A entrevista não durou muito depois disso. Logo os retardatários chegaram, mas ainda tive tempo de arrancar umas respostas já esperadas, com perguntas previsíveis, inclusive a informação mais conhecida sobre o sertão nordestino, de que lá falta água. Parece óbvio. E é. Só que o idiota aqui, antes da entrevista com o coroa de boné, já tinha conseguido cometer uma gafe absurda na lanchonete de Nova Holanda. Porque cheguei na cidade com fome, após umas três horas de viagem, e resolvi conferir o que Nova Holanda tinha a me oferecer em termos de comida.

A lanchonete em questão tinha o chão de cimento, um luxo para a localidade, paredes completamente vazias e um pequeno balcão, atrás do qual estava o dono do estabelecimento, sujeito tranqüilo, meio coroa e também de bigode. Em cima do balcão, havia apenas um daqueles recipientes de vidro onde costumam ser guardados os salgadinhos em casas do gênero. Dentro dele, tinha um pedaço de queijo minas, e mais nada.

Logo fui informado de que minha única opção ali seria um sanduíche de queijo minas. Aceitei. O dono do estabelecimento pegou então um pão num saco de papel e partiu ao meio. Cortou depois uma fatia de queijo, das grossas, e enfiou dentro do pão. Paguei algo em torno de cinqüenta centavos pelo queijo frio e comi ali mesmo, em pé, porque não havia nem sombra de cadeiras ou mesas na lanchonete.

Até que tava gostoso. Matei minha fome e, antes de ir embora, cometi a tal gafe. Virei para o dono da lanchonete e perguntei, como se estivesse em qualquer outro lugar que não fosse o sertão nordestino:

Amigo, onde tem uma torneira pra lavar a mão?

O cara esboçou um sorriso e disse só um Tem não. E eu percebi o tamanho da imbecilidade da minha pergunta. Meti um riso idiota na cara e saí logo dali, pra me sentar ao lado do coroa de boné da BR.

Não me lembro do nome da lanchonete de Nova Holanda, mas descobri um pra ela no restante da viagem, um ou dois dias depois. Passávamos pelo sertão do Piauí, e dessa vez a caravana não parou no meio do caminho. Atravessamos direto algumas cidades bem parecidas com Nova Holanda, até porque tinham em volta a mesma paisagem de terra e galhos secos da caatinga.
Numa dessas localidades, eu avistei a lanchonete. Era uma casa branca, e em cima da entrada estava lá escrito, com tinta azul:

Lanchonete Deus Dará

Os carros não pararam, tinham um prazo qualquer a cumprir para chegar em Crateús, no Ceará. Só tive tempo de perguntar o nome daquela cidade ao sujeito da organização que viajava no mesmo carro que eu, no banco do carona. Ele deu uma olhada no mapa e disse:

Vera Mendes

E assim eu fiquei sabendo que em Vera Mendes, no sertão do Piauí, tem uma lanchonete chamada Deus Dará. Ou pelo menos tinha, entre julho e agosto de dois mil e dois.

*Cheguei a pensar em tentar descrever a mudança da paisagem quando se sai do sertão mineiro, coberto de verde, para o nordestino, coberto de barro. Da janela do carro, é nítida a maneira como o verde começa a rarear, para dar lugar à caatinga. Mas outro cara já fez isso há tanto tempo, que eu prefiro deixar com ele essa missão. Mas vou logo avisando, não sei o que são manchas terciárias, ignoro completamente o significado da palavra cretácea, não faço idéia de onde fica a Pojuca e, por mais que eu me esforce, não consigo me lembrar de nenhuma bromélia rubra. Mas o cara era o cara, então Vai que é tua, Euclides!

Logo a partir de Camaçari, as formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com a precisão de um decalque. Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica – arbustos flexuosos entressachados de bromélias rubras – prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas. (Euclides da Cunha, Os Sertões, A terra)

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 158, de 12 de agosto de 2002










   










Criada no ano passado, a Expedition corre paralela à competição oficial do Rally dos Sertões. Nesse ano, os carros das duas categorias só se encontraram em três cidades: Diamantina e Janaúba, em Minas, e Fortaleza, o destino final de ambas. Enquanto os pilotos da prova oficial aceleravam a mais de 100 km/h na luta pelo melhor tempo, a turma da Expedition não tinha tanta pressa. (Foto: Felipe Barra)

Em 1923, um aventureiro norueguês conhecido como Mister Jens saiu de sua terra para chegar às Ilhas Galápagos, no Equador, a bordo de um veleiro. Enfrentou seis meses de calmaria no mar, quase morreu, mas sobreviveu para manter acesa a paixão pelas viagens. Durante os anos 60, morava em Porto Alegre e gostava de levar o neto para percorrer o interior do Rio Grande do Sul numa velha Kombi, usada também como dormitório durante as aventuras. Mister Jens já morreu, mas seu espírito pareceu ter reencarnado entre os dias 24 de julho e 2 de agosto, numa Land Rover Defender 110 branca.
Dirigindo o carro batizado com o nome do avô, o empresário gaúcho Bob Wolheim, 40 anos, passou por estradas de terra cheias de buracos, trechos de asfalto quase intransitáveis e comeu muita poeira para percorrer os cerca de 4.400 km entre São Paulo e Fortaleza, no percurso da categoria Expedition do Rally dos Sertões de 2002. A viagem serviu para testar o carro comprado este ano, depois que ele e a mulher, a publicitária Fernanda Romano, 28, decidiram mudar de vida. "No Carnaval, alugamos um jipe e dirigimos 2 mil km por toda a Costa Rica. Na época estava lendo um livro da família Schummann (famosa por viver viajando pelo mundo) e percebi que, se quiséssemos, poderíamos ter uma vida semelhante", diz o empresário, que mora em São Paulo. O trabalho impediu Fernanda de acompanhar o marido, que testou o carro equipado com cama, geladeira e fogão de uma boca ao lado do sogro, Cássio Romano, 56.
Se a mudança radical de vida ainda é um projeto para o futuro, Bob parece já ter sido infectado pelo vírus do rally, presente na grande maioria dos cerca de 60 aventureiros da categoria Expedition deste ano. É o caso do fotógrafo Manolo Moran, 41, que participou do rally pela Segunda vez. "Acho que peguei esse vírus, porque não há chance de eu não voltar nos próximos anos", diz o atual piloto de um Troller, que até o ano passado nunca tinha tido um veículo 4X4. "Pensei em comprar um jipe velho com medo de ser assaltado, mas optei por um novo mesmo, e não me arrependi".
No caso do industrial alemão Christoph Gross, 38, e da mulher, Zuleica, 40, a participação no rally faz parte de uma mudança de vida iniciada há três anos, quando o casal saiu de São Paulo para morar em Penedo, na região serrana do Rio. Dono de uma fábrica de remédios e no Brasil desde os 10 anos, Christoph encarou como poucos o espírito da expedição. "Tirei o trabalho da cabeça, quero aproveitar essa oportunidade única de conhecer o Brasil por dentro".
Criada no ano passado, a Expedition corre paralela à competição oficial do Rally dos Sertões. Nesse ano, os carros das duas categorias só se encontraram em três cidades: Diamantina e Janaúba, em Minas, e Fortaleza, o destino final de ambas. Enquanto os pilotos da prova oficial aceleravam a mais de 100 km/h na luta pelo melhor tempo, a turma da Expedition não tinha tanta pressa. E assim pôde curtir as atrações de cidades históricas como Tiradentes e Diamantina, as belezas naturais de parques nacionais como o da Serra do Cipó, em Minas, ou o da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, e praias paradisíacas como a de Jericoacara, no Ceará.
Mas atravessar os sertões brasileiros sem competir não é só diversão. Na etapa entre Diamantina e Janaúba, os participantes da Expedition aceitaram atuar na equipe técnica da competição. Às 4h do domingo 28, estavam de pé para levar os veículos aos locais onde cada um deles ficou parado, com a missão de manter limpa a estrada à espera dos pilotos. Isso durante cerca de cinco horas, debaixo de sol e com a comida e a água levadas nos carros. O empresário paulista Christiano Freire, 29, que viajava com a mulher, Gal, 26, embrenhou-se no meio do mato para espantar alguns bois que ameaçavam entrar na pista. "O que me atraiu foi a aventura, e a chance de ver um país que nunca iria conhecer sozinho", afirma.
Como os colegas de expedição, Christiano pagou caro para atravessar o sertão brasileiro. Ao contrário de competições como o Rally Paris-Dakar, onde os pilotos e mecânicos não têm outra solução a não ser acampar no deserto, os expedicionários ficam em hotéis e comem em restaurantes. Acampamento mesmo só na Serra do Cipó, onde a pousada situada no parque nacional não tinha quarto para todos. Além das despesas de hospedagem e alimentação, todas a cargo dos expedicionários, a inscrição de cada carro custou R$ 4,4 mil.
O preço dava direito à comunicação através de rádio, planilhas para a navegação, indicando os caminhos corretos nas trilhas entre uma cidade e outra, auxílio mecânico e reboque até a cidade mais próxima, caso o carro não pudesse continuar no comboio. Mais um motivo para derrubar a tese de que a Expedition é uma brincadeira comparada à competição oficial do Rally dos Sertões. "Os pilotos do rally têm um monte de mecânicos à disposição. Nós temos de nos virar para resolver nossos problemas", disse o empresário Raphael Klein, 24, a bordo de uma Ford Ranger que no fim da viagem já estava com um amortecedor do velho Opala.
Percalços como esse, porém, não são nada perto do que a fotógrafa Luciana Mendonça, 29, já passou no Rally dos Sertões. Ao lado do pai, o empresário Roberto Mendonça, 60, ela participou da competição oficial do Rally em 1999 e 2000. A dupla se revezava no volante de uma Mitsubishi L 200 até que, no terceiro dia de competições em 2000, o carro capotou quando Roberto pilotava. Luciana conseguiu sair pela janela, mas o pai teve de esperar a ajuda do socorro. Ninguém ficou ferido, mas o trauma foi suficiente para que a fotógrafa optasse pela Expedition. "Depois do acidente perguntei se aquilo valia a pena. Hoje quero parar para curtir as coisas que o rally proporciona, e você não aproveita direito se estiver competindo", disse, antes de entrar no mesmo carro que capotara, agora usado com muito mais calma, para apreciar o sertão brasileiro.