terça-feira, 31 de julho de 2007

ENTRE OS CARRINHOS E O PRIMEIRO CARRO

Houve um tempo, fugaz, que a grana começou a ficar mais alta, porque morava-se com a mãe ainda, aos vinte e quatro, e pela primeira e até agora única vez na vida acumulava-se dois empregos, de repórter na revista e redator no jornal. Acordava-se cedo, no máximo às sete e dez ou quinze, e o repórter saía logo da Senador Vergueiro pra Praia, por onde caminhava até a redação da Bloch na Rua do Russel, na Glória. Primeiro no mesmo andar, com todo o resto da redação da editora, depois embaixo, em frente ao arquivo fotográfico, ao lado de uma sala de figurinos o repórter conheceu a rotina idílica de uma revista mensal até, no máximo, duas da tarde, quando já deveria estar dentro do 740, perto de cruzar a baía. Do fechamento do jornal saía lá pelas onze da noite pra dali a vinte, às vezes trinta minutos sentir a mesma felicidade espontânea, visceral, de ver o ônibus certo surgir fazendo a curva. Durante seis, sete meses foi assim, até que o repórter largou tudo pelo nome do Jornal do Brasil, pra ganhar menos e trabalhar até mais, tendo acumulado o suficiente pra comprar o primeiro carro, do qual ainda serão contadas algumas histórias por aqui. Um carro que não era bem carro, como diziam, sacaneando, os amigos, e também era mais que isso, e que se tremia todo, sacolejando as peças, quando chegava perto da velocidade atingida por alguns dos carrinhos em miniatura, pequenos, da matéria abaixo.

Revista Incrível, edição 47, de setembro de 1996

Durante o ano são disputadas oito provas pelo campeonato brasileiro e oito pelos regionais, sempre aos domingos, o dia sagrado para os amantes da velocidade, seja ela desenvolvida por Williams, Ferraris, Penskes ou por inocentes, mas nem tanto, carrinhos de controle remoto.

Carros perfeitamente ajustados e prontos para atingir velocidades extraordinárias, tensão nos boxes e, entre os pilotos, uma alta dose de adrenalina. Os ingredientes são típicos de qualquer corrida de automóveis. Mas, nesse caso específico, a diferença (talvez a única) é o tamanho das máquinas. O chamado Automodelismo de Rádio Controlado pode ser disputado com carros elétricos ou de combustão. Os primeiros são divididos  nas categorias de escalas 1/12 e 1/10, mas sofrem com o preconceito de quem encara a modalidade com a seriedade que todo esporte merece. Para esse tipo de aficionado, os carros elétricos não passam de brinquedos, isso se comparados com os supermodelos movidos à combustão, mais precisamente com o modelo 1/8, um "carrinho" com cerca de 60 centímetros de comprimento que chega a atingir a velocidade de 120 m/h.
O brilho do 1/8 acaba ofuscando as outras categorias movidas a combustão - nas escalas 1/10, 1/5 e 1/4 - e faz com que o carro, uma miniatura dos veículos que disputam o Campeonato Mundial de Marcas - aquele das famosas 24 Horas de Le Mans -, seja considerado o Fórmula-1 do automodelismo. A comparação não chega a ser nenhum exagero, já que praticamente todas as peças de um carro de verdade estão presentes no 1/8. O trabalho de ajuste de uma miniatura dessas para a corrida, incluindo a regulagem das barras estabilizadoras traseira e dianteira, do caster, da pressão do óleo e da cambagem, entre outros acertos, não difere muito do que é feito nas competições de automobilismo. Os minicarros têm duas marchas, com câmbio automático, e tração nas quatro rodas.
Os modelos 1/4 e 1/8 podem ser movidos a gasolina, mas o combustível utilizado no automodelismo é uma mistura de álcool metílico, óleo sintético e nitrometano. Uma corrida de 1/8, por exemplo, dura 30 minutos e, como na Fórmula-1, a eficiência nos pit stops é fundamental para decidir uma prova. Em vez do batalhão mobilizado pelas equipes durante as corridas dos carros de verdade, somente um mecânico tem autorização para reabastecer e, se necessário, trocar os pneus de um modelo.
O tanque de um veículo desses comporta 125 mil de combustível, suficiente para cinco minutos de corrida. A regra internacional do automodelismo prevê que cada bateria seja disputada por um máximo de dez carros. Outra semelhança entre as pequenas e grandes provas de automobilismo é a comunicação por rádio entre o mecânico, nos boxes, e o piloto, que fica numa torre com cerca de quatro metros de altura para visualizar toda a pista.
Por falar em pista, o Brasil está muito bem servido nesse quesito. No Rio de Janeiro, as provas pelos campeonatos brasileiro e carioca são disputadas nas pistas da Barra da Tijuca, situada em uma área da Prefeitura, no Trevo das Palmeiras, e de Guaratiba, localizada em um sítio particular, o Rodeo Drive. Esta última é considerada uma das melhores pistas do mundo. Já em São Paulo, as baterias costumam ser realizadas no Parque Municipal do Tatuapé.
Mesmo com boas pistas para a prática do automodelismo, o Brasil ainda engatinha em termos de quantidade de praticantes do esporte. Para o diretor da Associação de Automodelismo de Rádio Controlado (AARC) do Rio de Janeiro e atual campeão brasileiro da categoria 1/8, Sérgio D'Ângelo, o Boca, a falta de infra-estrutura e de patrocínio dificulta a divulgação do esporte. "Com a pista da Barra, que começou a ser usada em 94, houve uma abertura maior, mas ainda falta infra-estrutura. Nossa luta é para divulgar e tornar o automodelismo acessível a um número cada vez maior de pessoas", diz.
Sérgio é um exemplo típico dos poucos abnegados pelos minicarros de corrida espalhados pelo país. Remanescente da época heróica de meados da década de 70, quando as provas eram disputadas no estacionamento do Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio, ou na pista de kart do Playcenter, em São Paulo, ele orgulha-se de ser praticante de automodelismo desde os 7 anos de idade, quando participava de campeonatos do velho Autorama da Estrela.
De lá para cá, muita coisa mudou. A pista de Guaratiba foi inaugurada em 1981 e, no ano seguinte, já era organizado o primeiro campeonato brasileiro, inicialmente concentrado no Rio e em São Paulo. A partir de 1984 começaram a ser fundadas as associações de automodelismo pelo Brasil, e pilotos de Vitória (ES), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS), entre outras cidades, também passaram a competir nos nacionais.
A situação do esporte no país melhorou, mas as competições ainda são marcadas pelo amadorismo, principalmente porque muitos encaram o automodelismo como hobby. Em países como Itália, França, Holanda e Alemanha, o esporte mobiliza milhares de praticantes, que formam um ávido público consumidor de peças, equipamentos e até de publicações exclusivamente voltadas para o assunto. Talvez por isso a melhor colocação do Brasil nos campeonatos mundiais de 1/8 tenha sido a 9a posição por equipes, na Suécia, em 93, com Sérgio Boca, Francisco Carillo e Leonardo Leite, que ficou em 22o lugar no mesmo campeonato.
Pilotos como Boca e Carillo, da equipe Crear, utilizam os carros da marca holandesa Serpent, com motores Mega, combinação usada pela maioria dos pilotos de ponta e que detém o título mundial. "No exterior o negócio é levado mais a sério. Representantes de uma marca podem muito bem observar um bom piloto que não tenha um carro competitivo e oferecer seus modelos para que ele tenha um desempenho melhor e, conseqüentemente, promova a marca. A coisa é mais profissional", conta Gilberto Plínio de Souza, mecânico da Crear e da Pocape, esta última a equipe de seu filho, Vinícius, de 16 anos, atual líder do campeonato brasileiro.
Os mundiais são disputados de dois em dois anos e organizados pela Ifmar (International Federation of Model Auto-Racing), que por sua vez é subdividida em quatro federações representantes dos pilotos de todo o mundo. São elas a Roar (Estados Unidos e Canadá), Efra (Europa), Femca (Ásia) e Famar (América do Sul, México e África). O mundial de 97 será em Toluca (México). Como de costume, foi disputado este anho um pré-mundial no local do campeonato, em que os brasileiros Francisco Carillo, Alex Chammas, Sérgio Boca e Gustavo Clivellaro, o Gaúcho, ficaram em 14o, 15o, 16o e 17o lugares, respectivamente.
As corridas de automodelismo seguem um ritual praticamente inalterado. Uma pré-largada com todos os carros substitui a chamada volta de apresentação da Fórmula-1 para aquecer os pneus. Antes de cada prova costumam ser jogados cerca de 10 quilos de açúcar na pista, que já tem um asfalto mais fino do que o normal, para aumentar sua aderência. Um sensor acoplado ao carro garante a exatidão na cronometragem das provas, que, também a exemplo do que acontece nas Fórmula-1, é feita por computador. Não falta nem mesmo o ronco dos motores que entusiasma qualquer amante do automobilismo, pois o barulho ensurdecedor dos carrinhos movidos a combustão não fica nada a dever ao de seus similares em tamanho natural.
A temporada de 1/8 também segue o calendário da Fórmula-1, começando em março e geralmente terminando em novembro. Durante o ano são disputadas oito provas pelo campeonato brasileiro e oito pelos regionais, sempre aos domingos, o dia sagrado para os amantes da velocidade, seja ela desenvolvida por Williams, Ferraris, Penskes ou por inocentes, mas nem tanto, carrinhos de controle remoto.