segunda-feira, 27 de agosto de 2007

90 ANOS EM 2.578 CARACTERES

A pauta era das melhores possíveis. Entrevista marcada com Mário Lago na casa dele, o que equivalia a sair da mesmice da redação para passar uma ou duas horas conversando com um sujeito que, entre outras coisas, escreveu Amélia, em parceria com um cara chamado Ataulfo Alves.

O gancho da matéria era a proximidade dos 90 anos dele e o motivo da entrevista ter sido marcada foi o interesse da editora em divulgar o relançamento de um dos livros do Mário, um sobre o tempo em que ele passou preso depois do golpe de 64. A editora do livro ofereceu a entrevista à revista, minha chefe aceitou e lá fui eu fazer o meu trabalho.

Só tinha um problema. Trabalhava na época numa revista de celebridades e o espaço destinado a gente como Mário Lago nessas publicações sempre foi curto. Natural, são as leis do tal mercado. No ranking dos personagens mais importantes para as revistas de celebridades, um coroa de quase 90 não tem a menor chance contra a super modelo brasileira, ou a eterna apresentadora infantil, ou o galã da vez, ou a atriz que está arrebentando na novela das oito, ou o músico de roupas estranhas que acaba de ser visto junto com a atriz que está arrebentando na novela das oito etc...etc...etc...

Diante disso, fui ao apartamento de Mário Lago ciente de que teria de resumir em no máximo duas páginas a entrevista com um sujeito que, como diria o Gérson em seus melhores comentários após alguma pelada no Maraca, escreveu umas trezentas mil músicas ou novelas pro rádio, atuou em cinco milhões de filmes, novelas ou minisséries, no cinema, no rádio e na TV, publicou uns duzentos livros e ainda participou ativamente da vida política do país desde a época de Getúlio Vargas.

Ganhei ainda a missão de relacionar meu entrevistado com o protagonista do filme Copacabana, da Carla Camurati, que fazia um certo sucesso na época. Como Mário Lago morou a maior parte de sua vida em Copacabana, a exemplo do personagem do Marco Nanini, que também estava para chegar aos 90 no filme, alguém na revista (talvez até eu mesmo, não me lembro) teve a idéia de fazer essa matéria diferente. Pena que o próprio Mário derrubou a pauta ao responder a primeira pergunta da entrevista.

O jeito então foi improvisar, e para isso só havia uma saída viável: resumir os quase 90 anos de vida do cara num texto de menos de 3 mil caracteres. No fim das contas, até que gostei do resultado, principalmente pela declaração do entrevistado que encerra a matéria.

Uns dez meses mais tarde, quando Mário Lago morreu, já aos 90 anos, as frases foram reproduzidas em tudo quanto é lugar, da Veja ao Jornal Nacional. Os obituários mais detalhados diziam que elas foram proferidas numa última entrevista dele, para o Jornal do Brasil. Não duvido, até porque ele também deve ter falado a mesma coisa para outros jornalistas antes de mim. Afinal de contas, o cara já estava acostumado a dar entrevista há pelo menos sessenta anos quando fui entrevistá-lo. Era mais do que natural que ele, já meio de saco cheio, aproveitasse algumas frases já ditas anteriormente, e ainda bem que ele falou isso pra mim também. Melhor pra matéria aí embaixo, que por contingências da edição teve de ser espremida em 2.578 caracteres.


Revista Istoé Gente, edição 103, de 23 de julho de 2001

"Não sou saudosista. Fiz um contrato de existência pacífica com o tempo. Nem ele me persegue, nem vou atrás dele. Um dia a gente se encontra".(Foto: Leandro Pimentel)

Da mesma forma que o personagem vivido por Marco Nanini no filme Copacabana, de Carla Camurati, o ator, compositor, autor e ex-militante de esquerda Mário Lago está prestes a completar 90 anos, mora no bairro mais famoso do Rio de Janeiro e tem muita história para contar. A diferença entre os dois, no entanto, é apontada pelo próprio Mário. "Morei em Copacabana a maior parte da minha vida, mas não freqüentei o bairro", diz, no conforto da sala de seu apartamento no Posto Seis, uma das áreas mais prestigiadas de Copacabana.
Uma rápida olhadela pela sala – onde fotos de peças do ator dividem o espaço com um desenho feito pelo colega comunista Oscar Niemeyer, a bandeira do Fluminense e registros familiares – revela que, se não tem muito o que falar sobre o lugar onde mora, Mário Lago, 89 anos, tem assunto de sobra para municiar qualquer conversa. Se o tema for política, o autor de Reminiscências do Sol Quadrado – livro sobre o tempo que passou preso em 1964, relançado este mês – tem na bagagem sete prisões, a primeira delas em 1932, num comício do Partido Comunista.
Nessa época, o tempo de Mário era dividido entre a política e a boemia. "Depois de cumprir minhas tarefas, ia para o meu cabaré", diz ele, lembrando o hábito criticado por companheiros como Diógenes Arruda, antigo secretário nacional do PCB. "Ele dizia que meu perfume parecia o de uma marafona. Respondia que era um militante, mas minha axila continuava pequeno-burguesa".
A boemia, aliada ao ofício de autor de teatro de revista nos anos 30, transformou o comunista em compositor de sucessos imortais como Amélia. "Os sambistas me procuravam porque as revistas eram as grandes divulgadoras das músicas", conta o parceiro de Ataulfo Alves, que aprendeu a ser boêmio com o pai, o maestro Antônio Lago. "De madrugada, saía da cama para comer o jantar que minha mãe preparava quando ele chegava do espetáculo. Me habituei à ceia".
Há 14 anos sem fumar, o ator encara com bom humor o enfisema pulmonar adquirido nas noites em que consumia até três maços seguidos. "Antes da entrevista, tive de usar o balão de oxigênio. Daqui a pouco acaba o gás", brincou, depois de uma hora de conversa com Gente. Hoje, Mário Lago não sai de casa para quase nada. Passa o dia de bermuda – não quis vestir calça comprida nem para posar para as fotos. Seu tempo é dividido entre a leitura de quase todos os jornais, jogos de futebol na televisão e a redação de seu nono livro, Meu Tempo de Moleque, sobre "as molecagens que fiz durante a vida", explica o escritor que, apesar do trabalho no livro, admite sem constrangimento: "Ultimamente estou vegetando".
Bem diferente da época em que passava o dia na Rádio Nacional, escrevendo e atuando nas novelas, militava na política e ainda curtia a noite. "Exigi demais do meu corpo. Nem sei por que ainda falo e tenho memória". Da vida de boêmio, o patriarca de cinco filhos, nove netos e dois bisnetos conservou o hábito de dormir tarde, depois de 1h, e a alegria de viver. "Não sou saudosista. Fiz um contrato de existência pacífica com o tempo. Nem ele me persegue, nem vou atrás dele. Um dia a gente se encontra".