sábado, 27 de outubro de 2007

O CHORO DO COMEDIANTE

Paulo Silvino eu acho que todo mundo sabe quem é. Aquele cara engraçado dos programas humorísticos, do Planeta dos Homens ao Zorra Total, cuja marca registrada é a combinação do sorriso trincado com um constante subir e descer das sobrancelhas, geralmente lançadas na direção de alguma figurante de biquini.

É a careta característica do cara, e ele a usou algumas vezes enquanto me recebia em sua casa. A matéria era uma boa notícia derivada de uma tragédia. O filho do Paulo, Flávio Silvino, se preparava para voltar a atuar em novelas depois de ter ficado uns 90 dias em coma. Num cruzamento da Região dos Lagos, o Voyage dele foi atingido em cheio, na porta do motorista, pelo pára-choque de um carro-forte. E o cara sobreviveu. Não é pouca coisa.

Paulo Silvino parecia já plenamente recuperado do baque. Recebeu a mim e ao fotógrafo da revista contando piada, fazendo as caretas habituais, e manteve o bom humor durante as entrevistas dele e do filho. Contou com detalhes o drama do acidente e da recuperação do Flávio e não deixou de brincar nem com a gente nem com o filho. Mas num único momento, que deve ter durado no máximo uns cinco segundos, deu pra ter ao menos uma idéia de tudo o que ele havia passado nos últimos seis anos, desde o acidente.

Estávamos todos na sala do apartamento dele, eu, o fotógrafo e o Flávio. O Paulo estava de pé e contava a história que abre a matéria aí embaixo, tranqüilo, como se relatasse qualquer fato corriqueiro. Quando chegou na parte em que o filho chorou ao ouvir a voz da mãe no telefone, o cara não se conteve. A voz mudou, ficou mais aguda (experimente tentar falar na hora em que o choro chega), ele parou de falar, as bochechas amoleceram, ele apertou as duas mãos atrás da cabeça e jogou levemente as costas para trás, como se estivesse se alongando. Depois deu uma forte fungada seguida de um suspiro, andou um pouco até o fim da sala, uns seis passos, e voltou esfregando os óculos, já recomposto.

Dali seguimos com a entrevista, fomos a um parque de diversões pra fazer umas fotos, voltamos à casa do Paulo Silvino e ele sempre bem-humorado, às vezes sério, outras engraçado, mas sem perder o controle jamais, só aquela vez na sala, até nos despedirmos.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 23, de 10 de janeiro de 2000


Após sair do coma, o ator passou três meses sem conseguir se mexer. Como um recém-nascido, reaprendeu todos os movimentos. Começou se arrastando, passou a engatinhar e só ficou de pé após oito meses.

O dia 13 de fevereiro de 1994 ficará para sempre na memória da família Silvino. Naquele Sábado de Carnaval, o ator Flávio Silvino, então com 23 anos, tinha acabado de receber a visita de uma fã em sua casa. Depois que a menina saiu, o comediante Paulo Silvino fez uma piada e o filho riu. Meia hora depois, Paulo, que falava atônito pelo telefone com Diva, a mãe de Flávio, botou o gancho no ouvido do filho. Ao ouvir a voz da mãe, Flávio Silvino começou a chorar. Naquele momento, o ator saía definitivamente do coma em que mergulhara no dia 2 de novembro de 1993, quando o Voyage que dirigia foi atingido por um carro-forte na estrada de Araruama, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Hoje, depois de uma recuperação que surpreendeu a todos os médicos que o trataram, Flávio se prepara para voltar à televisão, interpretando um personagem escrito especialmente para ele pelo autor Manoel Carlos, 66 anos.
A volta do ator está prevista para junho, quando deverá estrear a nova novela das oito, Laços de Família, no lugar de Terra Nostra. Na trama, ele será Paulo, um jovem que, como ele, luta para superar as seqüelas de um acidente de carro. Com o personagem, Manoel Carlos cumpre o que havia prometido a Flávio, que ligara para o autor no início de 1999 pedindo uma chance para voltar. "Ele me disse que escreveria um papel para mim", conta o ator, que deve começar a gravar em maio. "Só agora vi que não era brincadeira".
Na verdade, Manoel Carlos pensava em criar o personagem desde a novela História de Amor, que foi ao ar em 1995. A idéia voltou em Por Amor, de 1998, mas foi adiada novamente. "Não queria que soasse forçado", explica o autor. Na trama, o pai de Paulo será interpretado por Tony Ramos, que, assim como Paulo Silvino, ajuda o filho em todas as etapas de recuperação. "Agora consegui o pai ideal para ele", diz Manoel Carlos.
Para saber exatamente o que Flávio pode fazer, Manoel Carlos escalou a pesquisadora Gabriela Miranda, 25 anos, que desde o dia 15 de dezembro tem acompanhado o dia-a-dia do ator. Ela já presenciou suas sessões de fisioterapia, entrevistou seus médicos, almoçou e jantou com Flávio, saiu com ele para restaurantes e shoppings e até passou o Natal no apartamento da família Silvino, na Barra da Tijuca. "A Gabriela é meu carrapato, meu fiscal e meu encosto", brinca o ator. O bom humor de Flávio impressionou Gabriela. "Ele está muito melhor do que todos esperam", diz ela.
Mesmo que a fala de Flávio ainda esteja um pouco comprometida e os movimentos, lentos, os médicos classificam sua recuperação como surpreendente. Após sair do coma, o ator passou três meses sem conseguir se mexer. Como um recém-nascido, reaprendeu todos os movimentos. Começou se arrastando, passou a engatinhar e só ficou de pé após oito meses. Utilizou uma prancha especial, na qual ficava amarrado para voltar a se acostumar com a posição vertical. "Em casos como esse, o paciente pode até desmaiar se ficar em pé depois de tanto tempo deitado", explica sua fisioterapeuta, Maria Madalena Glinardello.
Nos primeiros oito meses, a fisioterapeuta passava 17 horas por dia com seu paciente. Depois de ficar em pé, o ator levou um ano e quatro meses para caminhar sozinho, sem o auxílio das muletas. Hoje, o tratamento consiste em duas horas e meia de fisioterapia, três vezes por semana, e outras duas horas com a fonoaudióloga Marise Müller, também três dias por semana. Madalena garante que Flávio Silvino é o mesmo de antes do acidente. "Ele é totalmente normal, só que um pouco mais lento", afirma. Segundo ela, Flávio foi atingido na área piramidal do cérebro, que responde pelas lesões motoras. A área responsável pela memória não foi atingida. O ator se lembra de tudo, à exceção do acidente e do que aconteceu nos seis meses anteriores. Nesse caso, o esquecimento é atribuído ao choque emocional.
Embalado pelo sucesso nas novelas Vamp, de 1991, e Deus nos Acuda, de 1992, na Rede Globo, Flávio tinha lançado um disco de músicas românticas, pela Sony Music, na época do acidente. O ator – que promovia o disco em shows pelo País – voltava do sítio da família em Cabo Frio, junto com o irmão João Paulo, que dormia no banco do carona. Num cruzamento, o carro-forte da empresa Brink’s atingiu o Voyage. João Paulo, hoje com 17 anos, nada sofreu, mas Flávio teve traumatismo crânio-encefálico e perda do tecido muscular do braço esquerdo. Levado para a Casa de Caridade de Araruama, o ator foi operado pelo cirurgião Luís Carlos Pereira Silva, que durante três dias drenou o edema no cérebro. Isso salvou a vida de Flávio, logo depois transferido para a Clínica Santa Helena, em Cabo Frio, já que não havia Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Araruama.
A transferência, três dias após o acidente, foi o maior risco corrido pelo ator desde a batida. "Mas desde que aconteceu o que não devia ter acontecido, que foi o acidente, tudo passou a dar certo", lembra Paulo Silvino. O comediante não se esquece de um motorista anônimo que brigou para que seu filho fosse socorrido, quando policiais militares, achando que o ator estivesse morto, não queriam retirá-lo das ferragens. O drama do filho fez com que Paulo Silvino escrevesse a peça Brains. O texto foi escrito em 1994, logo após Flávio ter saído do coma. O comediante está em busca de patrocínio para encená-la este ano.
Na época atuando na Escolinha do Professor Raimundo, na Globo, Paulo Silvino tirou licença para acompanhar o filho. Seis meses depois da batida, o programa acabou e o comediante foi dispensado. O diretor de Produção Comercial da emissora, Ari Nogueira, ofereceu a Paulo a continuidade do pagamento do tratamento de seu filho. O comediante conseguiu convencer a direção da emissora a ajudá-lo de outra maneira, contratando Flávio como funcionário. "Não queria meu filho ligado à Globo por um tratamento de saúde." Hoje, o comediante garante que a emissora fez um bom negócio ao contratar Flávio, mesmo quando ele ainda estava em coma. "O investimento deles vai ter retorno." A opinião de Paulo é endossada por Manoel Carlos. "Flávio era um dos campeões de cartas na Globo. Ele é um ator talentoso, bonito e inteligente, que quer voltar a ser útil", diz o autor. A idéia de Manoel Carlos é fazer de Flávio um exemplo para pessoas que viveram o mesmo drama.
Independente da expectativa pela volta do filho à televisão, Paulo Silvino sempre agradece a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, na época diretor-geral da Globo, pela contratação do filho. "Deus salvou a vida do Flávio e a conta foi paga pela Globo e pelo doutor Roberto Marinho", diz o comediante. Aos 60 anos, Paulo Silvino participa do humorístico Zorra Total, enquanto luta para receber R$ 46 mil referentes ao pagamento por 155 episódios que escreveu para a Escolinha do Barulho, na Rede Record.
A volta ao trabalho pode contribuir para que o ator se recupere ainda mais. "Nesses casos, depende do paciente, e o Flávio tem extrapolado as expectativas", diz a fisioterapeuta. O trunfo de Flávio é sua juventude. De acordo com a especialista, há teses, não comprovadas, que sustentam que algumas funções cerebrais começam a se desenvolver na fase adulta. Madalena acha possível que seu paciente, hoje com 28 anos, esteja sendo beneficiado por isso. Há dois anos, somente seu pai conseguia compreender o que ele falava. Hoje, suas palavras são pronunciadas perfeitamente, apenas com um pouco de lentidão. Em julho, ele recuperou os movimentos do braço esquerdo, único membro de seu corpo que ainda estava parcialmente imóvel. Hoje, o ator faz tudo sozinho, desde lavar a louça até fazer a barba. Não consegue, ainda, surfar _ o que fazia com freqüência antes do acidente – ou dirigir. À praia, vai raramente, prefere ficar na piscina do condomínio. Usa bengala quando tem que subir escadas ou em lugares movimentados, como shoppings.
Segundo o neurologista Paulo Niemeyer Filho, que cuidou de Flávio, a fisioterapia tira proveito das áreas do cérebro que estão funcionando bem, num sistema de compensação. "Num traumatismo como o do Flávio, formam-se pontos de lesões no cérebro. A fisioterapia trabalha para que as áreas não afetadas funcionem melhor e compensem as regiões lesadas", explica o médico.
Na recuperação, Flávio contou com o amigo Marcelo Faustini, 28 anos, ator da Globo. Ele o acompanhou em todas as etapas do tratamento e empurrava sua cadeira de rodas quando passeavam. "Sua volta será muito importante", diz Faustini. "Ele mostrará a todos como está bem". Outro estímulo foi o namoro com a advogada Adreane Drumond, 26 anos, iniciado em junho. Sempre que não está trabalhando, Didi, como é chamada pelo namorado, fica ao lado de Flávio. "No dia em que conheci a Didi, percebi que minha vida começava de novo", diz o ator. A advogada se derreta: "Nosso relacionamento é maravilhoso". Os dois foram apresentados pela mão de Flávio, a secretária e ex-bailarina Diva Plácido, 50 anos, amiga de Adreane. "Sempre acreditei na recuperação do meu filho, e agora ainda mais", afirma Diva.
Flávio não quer se limitar às novelas. O ator também quer editar o livro Vida, que escreveu com a ajuda de Marise Müller. São 27 textos ditados à fonoaudióloga. Todos foram escritos logo após recupera a fala e os primeiros movimentos. "Tinha necessidade de expor tudo o que eu estava sentindo", diz Flávio. "E ainda tenho. Quero voltar para não parar mais."