sexta-feira, 30 de novembro de 2007

FORRÓVIÁRIO

O trem usava um chapéu gigante de caipira bem na locomotiva. Em cada vagão, um autêntico trio de forró animava os passageiros no trajeto entre Campina Grande e as Itacoatiaras do Ingá, localidade na Paraíba detentora de uns buracos numas pedras que, dizem lá eles, foram feitos por dinossauros ou extraterrestres, não lembro bem. Aliás, eu só lembro do nome do lugar porque ele junta dois bairros da mui necessária cidade de Niterói.

Mas enfim, os vagões estavam lotados, todos. Num deles, entre três casais animados, um grupo de estudantes e uma família arretada, viajávamos eu e Lacerda, o merda, fotógrafo de talento ímpar, grande companheiro de viagem e que sempre me respondia de imediato, ao ouvir minha babaquice: Edmundo, o imundo. E o pior é que fizemos isso da última vez que nos vimos, sei lá quando.

Estávamos ali, eu e ele, com o objetivo de produzir uma matéria para a revista Domingo, do Jornal do Brasil. A pauta era o Maior São João do Mundo, esse aí do lado, de Campina Grande, e naquele ano a festa já havia nos proporcionado, entre outras atrações, uma hilária corrida de jegues e uma tocante quadrilha noturna de crianças na periferia da cidade, ao som de Coração Bobo, do Alceu Valença, além dos almoços filados no quiosque do magnânimo Batata, ao lado de Paulo César Grande, Cláudia Mauro e Castrinho.

Faltava o trem forróviário, e lá estávamos nós. O forró comia solto, mas é claro que eu não dancei. Enquanto Lacerda fazia umas fotos pelo vagão, fiquei no meu canto, observando. Até que um sujeito muito parecido com Genival Lacerda começou a repetir umas palavras incompreensíveis na minha direção, a uma velocidade que faria qualquer locutor de jóquei parecer grogue.

Fiz o que meu manual pessoal de etiqueta manda nessas ocasiões. Respondi sorrindo e soltando um éééé de vez em quando, pra fingir que estava entendendo alguma coisa. O cara parou de falar e me virou as costas, mas uns dois minutos depois voltou à tona, dessa vez falando um pouco mais rápido.

Repeti meu procedimento e ele novamente se calou e retornou para onde estava virado, para retomar seu ímpeto de falar comigo ainda uma terceira vez, e uma quarta, em menos de seis minutos, quando já era nítido que o nobre cidadão campinense estava irritado com alguma coisa. Ou melhor, estava irritado comigo.

Sem entender nada daquela saraivada de ruídos ininteligíveis direcionados a minha pessoa, fui salvo finalmente quando consegui compreender duas palavras no meio do bombardeio. E as palavras eram Sobrinho e Peixeira. Imediatamente, iluminado talvez pelo meu anjo da guarda, entendi que o clone de Genival Lacerda quis, por algum motivo, me informar que o sobrinho dele estava naquele vagão, munido de uma peixeira pra qualquer eventualidade. Não havia dúvidas. Era preciso estabelecer contato.

Tirei do bolso então meu crachá de prestador de serviço do Jornal do Brasil, cujo valor na época equivalia ao de um estagiário, e expliquei o que eu estava fazendo naquele trem. Para minha surpresa, ele compreendeu perfeitamente meu português. E até conseguiu se comunicar melhor, a ponto de me informar que estava muito chateado porque achava que eu estava cutucando as pernas dele pelas costas.

É lógico que eu não estava, mas reconheço que ele pode ter passado a achar isso ainda mais, depois que eu fiquei rindo e falando éééé em todas as vezes em que ele se virou pra reclamar. Precisei de algum tempo para convencê-lo da minha inocência e nem sei se consegui. Só sei que ele aceitou minha sugestão de paz, apesar do ligeiro tom de desconfiança no seu olhar.

Até hoje não sei quem estava cutucando o coroa, ou se alguém cutucou mesmo. Por via das dúvidas, na chegada às Itacoatiaras do Ingá, chamei o valente nordestino para, juntos, tirarmos uma foto. Nos abraçamos, fiz o clássico sinal de jóia, polegar pra cima, e o Lacerda só bateu o flash, pra não ter que justificar no jornal a foto minha abraçada com uma nativo anônimo da terra. E assim perdi a oportunidade de guardar um registro histórico, do dia em que quase me vi obrigado a enfrentar um sertanejo com uma peixeira na mão.

A matéria tá aí embaixo, claro que sem essa história.

Jornal do Brasil, Revista Domingo, edição 1.104, de 29 de junho de 1997


"Tive alguma dificuldade nas curvas, mas o Rochedo mostrou que é da moléstia".

"Senhores passageiros, acabamos de descer em Campina Grande. A todos vocês, obrigado pela preferência e um bom forró." A voz é do comandante do avião que aterrissa no Aeroporto João Suassuna, na maior cidade do interior paraibano, sede do "Maior São João do Mundo". Uma festa que este ano começou dia 30 de maio e só termina hoje, com um show de Zé Ramalho. Uma quadrilha de São João estrategicamente posicionada na saída do aeroporto dá as boas-vindas e anuncia: o forró já começou.
A festa de Campina Grande rivaliza com a de Caruaru, cidade pernambucana considerada a capital do forró. Nenhum campinense contesta o título da rival, mas que ninguém ouse dizer que a festa pernambucana é maior que a paraibana. E até que nesse ponto os conterrâneos de Zé Ramalho têm lá sua razão: não se tem notícia no país de uma área dedicada à festa junina tão grande quanto a que ocupa o Parque do Povo.
São 42 mil metros quadrados (quase seis campos do Maracanã), que recebem cerca de 100 mil pessoas nos dias mais arretados. Anualmente, Campina Grande atrai cerca de 450 mil turistas durante os festejos, uma população bem maior que os 350 mil moradores da cidade. Apesar do gigantismo da festa, o São João de Campina Grande mantém a tradição sertaneja em alta.
Um esforço que ficou ainda mais concentrado este ano, aniversário de 300 anos da cidade. "Nossa festa cresceu muito e acabou sofrendo influência baiana. No ano passado, as barracas foram feitas com toldos iguais aos usados em Salvador e o forró perdeu espaço para a axé music. Este ano é que a prefeitura resolveu trazer de volta o clima de festa junina, sem a interferência de fora", diz o cenógrafo José Sereco, responsável pela decoração da festa.
A campanha valeu a pena. O forró voltou a ditar o ritmo da festa. Seja no pé-de-serra – sua versão tradicional, com sanfona, zabumba e triângulo – seja na óxente music – que acrescenta instrumentos elétricos ao som de Luiz Gonzaga. Ouve-se desde Magníficos, banda paraibana que já vendeu mais de 400 mil discos no eixo Pernambuco-Paraíba, até Biliu de Campina, forrozeiro radical, que só grava discos independentes "pra gravadora não bulir" com seu trabalho. (veja O personagem).
Enquanto o palco principal do Parque do Povo recebe atrações mais famosas, como o campinense Genival Lacerda, quatro palhoças incrustadas no meio da arena oferecem cultura popular em estado bruto. É ali que os trios de forró se apresentam, junto a grupos de teatro de bonecos. Artistas anônimos, como o sanfoneiro Bil Carneiro, fazem até dois shows por dia. Menos conhecido como o criador de gado Severino Gonçalves de Souza, de 53 anos, Bil aproveita a ocasião para aumentar o orçamento com os R$ 200 que o trio divide por show. "Vivo na zona rural com os meus bois. Mas no São João a gente pega a sanfona e vamo simbora", diz o sanfoneiro, um dos 35 integrantes da Orquestra Sanfônica de Campina Grande, que toca até clássicos de Bach e Beethoven no instrumento de Sivuca.
O forró também trouxe de volta antigas atrações, como o Trem Forroviário, que estava desativado há seis anos. Essa locomotiva forrozeira – na verdade um trem da CBTU decorado com motivos juninos – carrega um trio de forró em cada um de seus cinco vagões e faz uma viagem de mais de duas horas entre a Estação Velha de Campina Grande e o município de Ingá. A passagem custa R$ 10. Uma ninharia para um arrasta-pé alimentado por comida típica e bebida à vontade. No meio do caminho, há uma parada de uma hora em Galante. Mas ninguém descansa. O forró continua comendo solto nessa típica localidade do interior nordestino.
Longe dali, no bairro do Centenário, em Campina Grande, a festa fica por conta das mais de 300 quadrilhas, que reúnem gente de todas as idades, como o casal Roque Francisco de Almeida, 88 anos, e Emília Felinto de Paula, 73, integrantes da quadrilha de idosos do bairro. "Nunca perdemos a alegria e a vontade de brincar", diz Roque. Domingo passado, eles participaram do Quadrilhão, que junta mais de 3 mil dançarinos. Parece desfile de escola de samba carioca com enredo sobre festa junina. Mas o ritmo é o forró.
Domingo passado também foi dia da atração mais inusitada da festa: a corrida de jegue, no Parque da Criança. Rochedo, Gaúcho e Chupeta disputaram a final, depois de eliminarem outros 12 concorrentes. Montada pelo professor de Educação Física Alexandre Farias, 1,90m e 105kg, a fêmea Chupeta, com pouco mais de 1,20m de altura, concluiu bravamente a prova, em terceiro lugar. Gaúcho chegou em segundo e o campeão foi Rochedo. "Tive alguma dificuldade nas curvas, mas o Rochedo mostrou que é da moléstia", comemorou a façanha, no melhor estilo paraibano, o dono do jegue vencedor, Francisco de Assis Alves, que recebeu como prêmio R$ 100 e uma sela nova. Amanhã Campina Grande volta à rotina. Mas Rochedo já está de olho no possível bicampeonato, no ano que vem, quando a cidade voltará a acender a fogueira do "Maior São João do Mundo".

O personagem. Ele mete o pau nas gravadoras e, mesmo tendo gravado apenas três discos independentes, faz o maior sucesso em Campina Grande e em outros pontos do Nordeste. Em meio à enxurrada de bandas de axé e óxente music, Biliu de Campina – como é mais conhecido o advogado Severino Xavier de Souza, 48 anos – é hoje um dos últimos seguidores de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Biliu faz questão de manter a autenticidade do forró clássico, sem guitarras ou teclados. A diferença é que, ao contrário dos mestres, que cantavam o lamento sertanejo do agreste, Biliu prefere os temas urbanos, mais atuais. "Eu prefiro cantar a safadeza que fazem com o pobre na cidade", diz o cantor de forró.
Mesmo sem gravar, Biliu vive da música. "Faço shows no período junino e sou vendedor de eletrodomésticos no resto do ano: vendo minha TV, o som, o rádio...", ironiza o artista, que ganha entre R$ 1 mil e R$ 2,5 mil por show. O ódio de Biliu às gravadoras não fica apenas na retórica, como prova o refrão da música ‘Matéria Paga’: O mãe, venda o galo e as galinhas/A cabra da tia Joana, a perua da Mariquinha/ O burro velho do meu pai e o porco do Francisco/ Depois me dê um dinheiro, que eu quero gravar um disco.
Apesar do discurso radical, Biliu de Campina espera lançar seu primeiro CD até o fim de 98. "Encontrei uma gravadora em São Paulo que não mexe no nosso trabalho." Aí tá arretado!