terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O REI DA PISTA

Dom Chevalier é o rei da noite. Entre amigos, solta o corpo com desenvoltura ao som da cobertura em festa. Encostado na parede, de um ponto privilegiado, observo sua performance. O resto da pista dança em rodas, ou em casais. Ele, não. Baila sozinho, livre, a circular por todos os grupos com a leveza e a graça de seus movimentos.

Flutua de lá pra cá, alternando os ritmos com a agilidade de um sapateador de musical americano. Uma hora dança de banda, tipo ula-ula, outra privilegia movimentos mais conservadores, como o um-pra-lá-um-pra-cá. Só falta dançar cossaco.

De vez em quando valoriza os braços, jogando-os pro alto alternadamente, como um autêntico gringo folião. Até que avista um cavanhaque familiar, no exato momento em que o DJ bota aquela música animada cujo refrão é Freeeeeeedom. Isso mesmo. George Michael.

Imediatamente, Dom Chevalier vem na minha direção e grita: Olha lá o Galinha dançando música de viado! Vou sacanear!

Dito isso, sai na direção do cavanhaque conhecido, que dança numa roda de amigos, e posta-se atrás dele. Enlaça a cintura à sua frente e começa a rebolar e a fazer cara de chacrete.

O cavanhaque não protesta. Está em festa de amigos, então prefere não criar confusão. Dá um riso sem graça e se afasta rapidamente daquela dança estranha. E Dom Chevalier volta à minha direção com um discreto sorriso de playmobil no rosto.

Então Deus, em sua infinita generosidade, me concedeu uma dádiva. Porque eu e Dom Chevalier, ao mesmo tempo e sem explicações para isso, olhamos repentinamente para a direção oposta à pista de dança, onde outro cavaquanhe, o original, conversava tranqüilamente com umas duas ou três pessoas. E entre todas as pessoas daquela festa, entre todos os seres do universo, coube a mim dizer ao meu amigo, em primeira mão, que aquele sujeito em quem ele se roçara todo ao som de George Michael, não. Aquele sujeito não era o Galinha.

A matéria abaixo é pra mostrar que eu já fui em boate gay, sim, sem qualquer problema, até porque ela estava vazia, às escuras, sem música nem ninguém dançando.

Revista Istoé Gente, edição 249, de 17 de maio de 2004

“O Calvin Klein elogiou minha boate me dando um beijo na boca. Fui pego de surpresa”.

Vera Fischer de vez em quando vai. Luana Piovani e Ana Paula Arósio idem. Estilistas de renome internacional, como Calvin Klein, Jean Paul Gaultier e Valentino, também mostraram suas caras por lá. Destinada aos gays, a boate Le Boy, em Copacabana, na zona sul carioca, expandiu seu público e tem atraído cada vez mais famosos, principalmente mulheres. Há quem compare o local a boates históricas, como a Hippopotamus, badalada nos anos 80 no Rio de Janeiro, e o Studio 54, point de Nova York na década de 70. Mas Gilles Lascar, dono da Le Boy, aponta as diferenças. “Minha casa é 100% gay e nenhum desses lugares fez a revolução que a Le Boy fez no mundo gay”, diz o francês de 49 anos, que mora no Rio há 16 e abriu a boate há 12. Ser gay assumido é, segundo o próprio Gilles, o segredo de seu sucesso. “Sei o que o gay gosta”, diz o parisiense, que há dois anos abriu a Le Girl, destinada às lésbicas, ao lado de sua primeira boate. “É raro alguém conseguir manter uma casa por 12 anos”, diz o empresário Rick Amaral, que transformou o antigo Hippopotamus herdado do pai, Ricardo Amaral, na atual Baronetti.
Gilles repudia o rótulo GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) por não crer no termo simpatizante. “Um hétero pode até ir uma vez por ano na minha boate. Mas se ele se diz simpatizante e vai sempre, pra mim é gay.” A teoria não vale para os famosos. “Eles têm a cabeça mais aberta e se garantem”, diz. É por isso que a casa de Gilles tem histórias como a vez em que todos na pista pararam de dançar para aplaudir Vera Fischer, que se divertia no mezanino vip. Já Luana Piovani arrastou o amigo Caetano Veloso ao local na hora em que o Brasil jogava contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 2002. “Ele me disse que tinha deixado de assistir ao jogo com a família e que estava gostando, mas não voltou mais”, lembra o francês, que depois de trabalhar como soldador, aos 18 anos, foi diretor comercial de uma firma até abrir um clube de encontros para solteiros.
Outra que se divertiu na boate foi Wanessa Camargo. Na mesma noite, a cantora circulou pela Le Boy, Le Girl e ainda deu uma canja no karaogay do local. Ela foi uma das raras pessoas que apareceu protegida por seguranças, como um herdeiro de estúdios de Hollywood, que, segundo Gilles, vai à Le Boy duas vezes por ano. Geralmente astros internacionais, como o ator inglês Ruppert Everet, que esteve lá no Réveillon de 2003, circulam livremente. “Eles gostam daqui exatamente porque não são incomodados”, diz Gilles, que em março desse ano teve uma prova do quanto a casa agrada às celebridades. “O Calvin Klein elogiou minha boate me dando um beijo na boca. Fui pego de surpresa”, lembra o empresário.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

MEDO

Imagine que você está em pé, lavando louça, e vê uma formiga de tamanho médio andando bem perto da pia. Pois era exatamente do tamanho dessa formiga que um navio, provavelmente um petroleiro, era avistado por mim de dentro do helicóptero que me levava até a plataforma P-26 da Petrobras, na Bacia de Campos. Em volta, até onde a vista alcançava, só mar. E céu.

De Macaé até a P-26, foram quase duas horas de viagem pra dentro do Oceano Atlântico, na direção América do Sul-África. Antes de embarcar, já havíamos assistido a uma curta palestra a respeito de viagens até a Bacia de Campos, então lá no alto, olhando o petroleiro do tamanho de uma formiga, eu já sabia que o helicóptero não podia voar baixo em mar aberto porque os ventos podiam derrubá-lo.

Já sabia também que só pilotos da Petrobras tinham autorização para levar gente às plataformas. Porque, se me lembro bem da palestra, pilotar em alto mar não era pra qualquer um. Exigia um treinamento árduo, específico. Aterrissar em plataforma, então, era das situações mais complicadas de toda a aviação, incluindo aí os foguetes da Nasa.

Estava de posse de todas essas informações e ainda tenho medo de avião. Não há decolagem em que eu não reprise na mente o filme da minha vida. E ali, sobrevoando o mar aberto e prestes a pousar num gigantesco depósito de combustível flutuante, não sentia medo algum.

E não era questão de controlar o medo, de às vezes ficar em pânico e continuar calado, como costumo fazer em aviões. Naquele helicóptero, tanto na ida como na volta da viagem de cento e oitenta quilômetros, não tive medo, nem nas vezes em que, acometido por lapsos de lucidez, olhava pra baixo e tentava imaginar o tamanho da merda que seria ficar por ali, entre a P-26 e Macaé, a boiar no salva-vidas amarelo amarrado à minha cintura.

Até hoje me dá um sensação de incredulidade quando olho essa fotografia aí do lado, que abriu a matéria e foi tirada pelo legendário Leandro Pimentel, cuja fama alcançou os confins do Recôncavo Baiano, onde ele fez história. O cara bateu a foto do meu lado, no helicóptero, então olho a imagem daquela estrutura vista do alto, com uma chama permanente no pico de sua torre principal, e custo a acreditar que eu estava exatamente ali, no local de onde a fotografia foi tirada.

Quer dizer, até acredito que não só estava naquele ângulo como aterrissei no minúsculo heliponto a uns quinhentos metros da torre incandescente. A matéria aí embaixo está aí para provar isso. O difícil é imaginar como eu pude simplesmente não ter medo em momento algum, porque não ter medo numa situação dessas, sinceramente, não faz o menor sentido. Pra mim continua um mistério. Talvez tenha sido o salva-vidas amarelo amarrado à cintura. Quem sabe?

A matéria abaixo foi cortada. Incluí apenas um dos três perfis que o texto apresentava, pra não ficar muito grande.

Revista Istoé Gente, edição 76, de 15 de janeiro de 2001

"Nos camarotes, procuramos juntar os roncadores".


A química Raquel Pereira, 30 anos, e o auxiliar administrativo Sérgio Bissogue, 38, são casados e trabalham na mesma empresa. Mas Raquel não pode ir até a sala do marido. O motivo é simples: os dois trabalham em alto mar, a mais de 100 quilômetros da costa, só que em plataformas de extração de petróleo diferentes. Como eles, outros 5 mil profissionais levam a vida de uma maneira inusitada, nas 20 plataformas instaladas na Bacia de Campos.
Com uma produção média de 600 mil barris de petróleo por dia e 10 milhões de metros cúbicos diários de gás natural, a Bacia de Campos já superou os índices de países como a Síria, o Qatar e o Gabão, todos integrantes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Trabalhar nela, porém, não é tarefa para qualquer um. Não existe privacidade. Na P-26, por exemplo, a plataforma que fica a 180 quilômetros da costa de Macaé, no estado do Rio, cada quarto de oito metros quadrados é dividido por quatro pessoas.
Muitos não se adaptam. "Além de ficar longe da família, o funcionário é obrigado a conviver com os colegas o tempo inteiro", diz o engenheiro eletrônico Humberto Romanus, 43, um dos três coordenadores que se revezam no comando da P-26. Instalada sobre um piso de 77,7m por 74,8m, a plataforma trabalha numa profundidade de 990 metros, tem capacidade para produzir 100 mil barris de petróleo por dia e pode abrigar até 135 pessoas nos seus 33 camarotes. Três turbogeradores, com 7,2 megawats de potência cada, que poderiam iluminar uma cidade de 10 mil habitantes, mantêm em funcionamento os equipamentos da plataforma. Para amenizar a solidão de quem trabalha nela, a P-26 tem duas salas de televisão, um auditório, também usado como cinema, duas salas de jogos, uma de musculação e uma quadra de esportes. Em volta de tudo isso, só o mar.

O chefe da tropa de elite. Sair de casa para trabalhar deixou de ser uma rotina tranqüila na vida do engenheiro Humberto Romanus há 17 anos, desde o momento em que ele pegou no batente nas plataformas da Petrobras. Casado com a farmacêutica Maria Elisa, 41, e pai de Eduardo, 9, e Luciana, 6, Humberto aproveita ao máximo o período de 21 dias que tem com a família, pois sabe que a saída de Curitiba, onde mora, para os 15 dias de plantão à frente da P-26, na Bacia de Campos, costumam ser problemáticos. "Uma vez meus filhos esconderam a chave de casa e não queriam me deixar sair", conta.
A mulher Maria Elisa já está conformada com a vida profissional atribulada do marido. "Durante um ano inteiro de trabalho, ela só me ligou uma vez, para me avisar que o pai dela tinha morrido", conta o engenheiro, que revela o segredo da harmonia conjugal. "Quando temos desgaste, já está na hora de eu sair. Quando volto, é aquela festa".
Festa é tudo o que Humberto não tem quando está em serviço. Como coordenador, o engenheiro faz parte do grupo de sobreaviso, uma espécie de tropa de elite formada por oito funcionários, que administra os vários setores da plataforma e trabalha 15 dias para cada 21 de folga. Os outros funcionários de lá trabalham a cada 15 dias.
Em situações anormais, é esse grupo que atua e organiza uma eventual fuga de funcionários, caso esta seja necessária em alguma situação extrema nas instalações da embarcação, que não inclui tempestades marítimas. "As condições do mar não oferecem perigo. Nossa unidade está projetada para agüentar a pior situação em 100 anos", diz Romanus.
Dentro da plataforma, o turno de trabalho é de 12 horas. Humberto é o único com um quarto individual, que fica ao lado de seu escritório. As vantagens param por aí. O coordenador passa de sete a oito horas dentro do quarto. O resto do tempo é para o trabalho e uma ou outra escapulida até a sala de musculação.
No papel de administrador da plataforma, o engenheiro tem de resolver qualquer problema entre seus comandados. "Em qualquer ambiente de trabalho pode haver divergências entre as pessoas. A diferença é que aqui, se você discutir com alguém, vai continuar tendo de conviver com esse alguém", diz. Como medida básica de prevenção, Humberto cita uma estratégia simples, mas que evita muitos problemas. "Nos camarotes, procuramos juntar os roncadores".