domingo, 14 de dezembro de 2008

SÉTIMO DIA

A esperança tinha acabado havia uns bons vinte minutos. Com 2 a 0 contra e nenhum dos resultados necessários acontecendo, a tragédia era inevitável. Mas sair do estádio era impossível. Um anjo exterminador qualquer o impedia, o mantinha de pé, em cima da cadeira social, como muitos que também não conseguiam deixar o local, já meio vazio.

Nos minutos finais, esqueceu o jogo e decidiu observar só o xará em campo. Queria ver a reação dele com o apito final. Uma espécie de homenagem, já que, sem vontade de gritar porra nenhuma, mal acompanhou o Ah! É Edmundo! entoado perto do fim da partida. O time estava rebaixado, mas a homenagem era válida, porque era o último jogo da carreira do cara e porque o que ele fez em 1997 é para ser reverenciado em qualquer circunstância, não importa um Mundial perdido, muito menos uma Copa do Brasil. E com o rebaixamento consumado, Edmundo cobriu o rosto com a camisa e, de cabeça baixa, começou a andar na direção do vestiário, para logo ser encoberto por um enxame de jornalistas, como na conquista daquele Brasileirão antológico.

E nem depois disso ele conseguiu sair do estádio. Ficou em pé nas cadeiras por uns cinco, dez minutos, observando colegas de sofrimento como o garoto de dezesseis anos, no máximo, que usava uma dessas camisas retrô, do time de 87, o que o fez lembrar que ele tinha uma camisa igual àquela no armário, com a diferença que a dele não era retrô.

O garoto fazia cara de dor e não chorava. Estava entre os abnegados que ainda conseguiam gritar o nome do time, que ainda tinham forças pra dar provas ostensivas de seu amor pelo Vasco. Mirrado, sozinho, chegou a berrar contra quatro sujeitos umas oito fileiras de cadeiras acima dele, que faziam parte de outra leva de torcedores, a dos que preferiam xingar o time inteiro.

Flamenguistas! Flamenguistas! Gritava o moleque mirrado, com a camisa de 87, e era tão improvável uma porrada entre ele e os quatro adultos revoltados que estes, mesmo ouvindo o garoto muito bem, preferiram nem olhar pra ele, que às vezes batia palmas ironicamente e falava, alto ainda: Isso mesmo! Xinga o Vasco mesmo! Flamenguistas! E nisso ele teve a impressão que o garoto já chorava, mas não ficou pra conferir.

Saiu de cima das cadeiras e passou a caminhar a esmo pelas sociais. A cabeça latejava ligeiramente. O time, bicampeão sul-americano, tetra brasileiro, único dos grandes do país a começar de baixo, voltava à segunda divisão 86 anos depois de subir pela primeira e única vez, quando conquistou o campeonato carioca em sua estréia na competição, com um time de negros, pobres e mulatos, que desbancou os principais adversários – os três repletos de filhinhos de papai bem nascidos em suas hostes –, o que garantiu ao Vasco, graças a Deus, três vitórias nos três primeiros confrontos da história com os outros grandes da cidade.

Mas nada disso consolava naquele momento. Apoiado na grade entre a social e o gramado, ele ainda acompanhou o resgate de um idiota que fingiu que tentava se matar, sem noção de que poderia ter morrido mesmo com aquela brincadeira estúpida, de ficar pendurado na marquise do estádio, e que chegou rindo no hospital, andando, depois de ser salvo pelos bombeiros. E ele andava também, de um lado para o outro. Chegou perto do portão principal mas não conseguiu sair. Voltou às cadeiras e de lá retornou ao portão principal, ele que nunca sequer cogitou a possibilidade de ser um daqueles malucos que xinga dirigente, que berra no meio de todo mundo, que saiu calado do estádio até quando viu o time tomar de 4 do Figueirense, outro rebaixado.

Mas o time tinha acabado de cair pra segunda divisão, a cabeça latejava e, entre a porta trancada da sala de troféus e o bar aberto, ele gritou o primeiro Cadê a Diretoria?, dando voz ao pensamento que veio à mente assim que avistou a tribuna de honra do estádio completamente vazia. Seguiu-se então um grito mais alto, inimaginável na infância.

Cadê o banana do Dinamite?

Daí vieram uns Filhos da Puta berrados a esmo, entre outros ditos não menos raivosos, até que um segurança o abordou, ao lado do busto do Almirante. A cabeça ainda latejava, mas a visão daquele sujeito de 1,90 m e pescoço parecido com o do Mike Tyson rendeu um segundo de raciocínio lógico, suficiente para ele continuar com os gritos, mas dessa vez com um objetivo específico: livre do anjo exterminador, precisava sair do estádio, mas sem afinar.

Então continuou berrando, olho no olho do segurança gigantesco, e disse que era sócio do clube e que falaria o que quisesse, e que tava indo embora, porra! E nisso finalmente saiu do estádio, para se deparar com um grupo de PMs usando máscaras de oxigênio e com mais torcedores na mesma situação que ele, como o sujeito que tinha o rosto do Bill Murray, a calva do Phil Collins e os cabelos longos do Robertinho do Recife.

O cara também protestava contra a diretoria, e enquanto falava, de cinco em cinco segundos, que o Vasco estava na segunda divisão, que não era Série B porra nenhuma, que era segunda divisão, mostrava as três ou quatro camisas que vestia, todas do Vasco, uma por cima da outra. E tirou do bolso o ingresso do jogo, bem bolado, com a foto do Expresso da Vitória, campeão sul-americano, cinco vezes campeão carioca em sete anos, e disse que sempre guardava os ingressos, e nisso jogou aquele fora. Guardar pra quê, porra? Agora já era, e se despediu. Deixou com ele uma das duas latas de cerveja que tinha acabado de comprar e disse Vou pra lá agora, apontando pro lado da Barreira do Vasco.

Ele ainda hesitou, sem saber direito pra onde ir, até que seguiu o fluxo silencioso na direção contrária. Andou alguns segundos ao lado de outros dois sujeitos, um mais velho, outro mais ou menos da idade dele. O mais moço lembrava ao mais velho algo que tinha acontecido na semana anterior, quando o outro, ao que parece, enchera a cara sem condições físicas pra isso. E o sujeito, cabeça e bigode brancos, nem dava ouvidos. De cabeça baixa, como o Edmundo, respondeu com uma frase apenas: Hoje é uma situação especial. E o outro ficou calado.

Ele também entrou no bar perto da social. Pediu uma bohêmia, sentou numa mesa improvisada do lado de fora e bebeu até escurecer, coisa de uns vinte minutos. Depois saiu andando até os bares próximos à arquibancada, mas os dois botecos estavam fechados. Sobravam apenas três isopores no meio da rua e uns oito sujeitos bebendo latinhas em pé, observados por seis PMs, que conversavam tranqüilamente apoiados em seus porretes de borracha.

Só então decidiu procurar um táxi. Andou quase até o Pavilhão de São Cristóvão quando encontrou um, de um coroa que ouvia um programa de esporte qualquer no rádio, com alguém dando pitaco sobre o rebaixamento do Vasco. Consciente, o taxista viu a camisa do passageiro e trocou rapidamente para uma estação FM. Antes de deixá-lo no bar perto de casa, se revelou torcedor do América e disse que entendia perfeitamente o que o outro sentia.

Ele acreditou, aceitou as palavras solidárias do taxista e entrou no bar. Comprou quatro Originais e foi pra casa. Preparou um cigarro artesanal, abriu a primeira cerveja e, ainda com a camisa do Vasco, iniciou a sessão de DVDs. Começou com a Libertadores de 98 e botou depois a Mercosul, o jogo inteiro da final. Bebendo e fumando, começou a cambalear de sono no primeiro gol do Romário e antes de adormecer no sofá, com os olhos já fechados, ouviu a narração do gol da vitória, do Romário também, e ao fundo, na saída de som da televisão, a torcida gritava que o Vasco é o time da virada, que o Vasco é o time do amor.

A matéria abaixo não tem absolutamente nada demais. Nem entrevista teve. Foi só um apanhado da semana, depois de mais uma briga entre Romário e Edmundo. Mas, nesse momento difícil, resolvi botar o texto aqui, ao menos para relembrar um tempo não tão distante, em que o Vasco, mais uma vez, dominava o futebol brasileiro. Hoje a situação é outra, mas daqui a pouco volta a ser como era antes, não importa a torcida de nossa "mídia" esportiva, ou as arbitragens da CBF, ou as intervenções de governadores num clube, ou os ex-ídolos que viraram deputados. O Vasco vai voltar ao topo, porque o Vasco sempre volta. É só esperar.

Revista Istoé Gente, edição 28, de 14 de fevereiro de 2000:

"Ele é falso e me tirou tudo o que conquistei no Vasco (...) Uma pessoa que acabou de chegar não pode ocupar a posição de capitão"



"A braçadeira veio para o meu braço porque eu tenho braço. Se não tivesse, não haveria esse problema"


Durou pouco a tentativa de reconciliação entre Romário e Edmundo, as duas estrelas do Vasco da Gama e os dois maiores salários do futebol brasileiro: R$ 450 mil mensais para cada um. O pomo da discórdia entre os ex-amigos e atuais desafetos foi a disputa pela braçadeira de capitão do time. Escalado para o jogo contra o Palmeiras, no sábado 5, Edmundo deixou o estádio do Parque Antártica meia hora antes do jogo, alegando estar indisposto. No dia seguinte, já no Rio, o craque confessou que não gostou de ver Romário, que o substituíra como capitão durante as férias, efetivado no posto.
"Ele é falso e me tirou tudo o que conquistei no Vasco", disse Edmundo. "Uma pessoa que acabou de chegar não pode ocupar a posição de capitão", protesta. Romário não respondeu diretamente, mas foi irônico. "A braçadeira veio para o meu braço porque eu tenho braço. Se não tivesse, não haveria esse problema", disse, depois do treino da última segunda-feira. O bom humor de Romário não é à toa. Desde que está no Vasco, marcou 13 gols em apenas 11 partidas. Seis dos sete gols que a equipe fez na Copa Rio-São Paulo saíram dos pés do baixinho.
O presidente do clube, Antônio Soares Calçada, suspendeu Edmundo por dez dias, porque o jogador abandonou o estádio minutos antes da partida contra o Palmeiras. O presidente confirmou que a decisão de efetivar Romário como capitão do time foi tomada na véspera do jogo contra o Palmeiras. "Edmundo precisa de paz, mas ele não tem equilíbrio emocional para ser capitão", disse Calçada. "Se eu não tenho controle emocional, eles não deveriam ter me deixado ser capitão do time por tanto tempo", retruca Edmundo.
Romário, que havia jogado no Vasco no início da carreira e em dezembro voltou ao clube que o formou para o futebol, depois de ser afastado do Flamengo, evitou o conflito com o companheiro de time. Tudo mudou depois das últimas declarações de Edmundo, chamando Romário de falso. O baixinho não respondeu diretamente, mas não ficou calado. "Basta observar o dia-a-dia do time para tirar as conclusões e perceber quem é o quê", disse o craque. "Sei que todos esperam que eu fale algo sobre tudo isso, mas minha cabeça agora é outra", emendou.
Apesar da estratégia atual de evitar o confronto, foi Romário quem começou a dar motivos para a briga. Logo após a decisão da Copa do Mundo de 1998, o atacante divulgou as caricaturas pintadas nas portas dos banheiros de sua boate, o Café do Gol, na Barra da Tijuca. Em uma delas, Edmundo aparecia sentado numa bola murcha, ao lado da modelo Cristina Mortágua, com quem ele teve um filho, Alexandre, hoje com 5 anos, fruto de uma relação extraconjugal. Romário acabou recuando dias depois. Retirou as charges diante da reação de Zagallo, que inspirou outro painel. O ex- técnico da seleção brasileira - que foi estampado numa privada, enquanto Zico segurava um rolo de papel higiênico para ele - ingressou na Justiça contra o baixinho para vetar o uso de sua imagem.
A polêmica esfriou depois que Edmundo foi para a Fiorentina, da Itália, mas voltou a esquentar no retorno do atacante para o Vasco. Em julho, na véspera da decisão do campeonato carioca de 1999 entre o Vasco de Edmundo e o Flamengo de Romário, o craque vascaíno provocou os rubro-negros dizendo que seu time ganharia de dez a zero. No centro do gramado, antes do início do jogo, os dois capitães mal se cumprimentaram e sequer se olharam. Após a vitória do Flamengo por um a zero, Romário afirmou que os que o provocaram tinham de fazer muita coisa para chegar aonde ele chegou.
A trégua entre os dois veio três meses depois da decisão do campeonato carioca, quando Edmundo passou uma noite na prisão, condenado pela morte de três pessoas num acidente de carro em 1995. Em 6 de outubro, na noite da prisão, Romário fez um gol pelo Flamengo e exibiu uma camiseta com mensagem de apoio ao antigo amigo. Fora da cadeia, Edmundo retribuiu a gentileza, após marcar um gol contra o Botafogo de Ribeirão Preto, pelo campeonato brasileiro, numa camiseta com a inscrição "Valeu pela força".
A solidariedade não foi suficiente para evitar novas brigas, mesmo quando Romário foi contratado pelo Vasco. Nos cinco primeiros dias treinando juntos, os dois craques trocaram apenas um tímido aperto de mão. Nos jogos pelo Campeonato Mundial de Clubes, realizado em janeiro, renasceu a esperança de reconciliação. Na partida entre o Vasco e o Manchester United, da Inglaterra, o time brasileiro venceu com um gol de Edmundo e dois de Romário, o primeiro deles depois de um passe do Animal. Os jornais exibiram a foto dos dois craques abraçados, comemorando o gol, mas tudo não passou de um ato isolado. Um mês depois do jogo, Romário e Edmundo estão mais distantes um do outro do que nunca.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

BAIXO ASTRAL

A matéria teve fotos de 16 personagens e histórias de 31. Duas com destaque de manchete, sete também com certo espaço, de umas vinte linhas, e o resto resumido em até cinco, no máximo. Em perfis mais ou menos detalhados, estavam lá, entre outros, o estudante de 13 anos, a costureira de 52, o auxiliar de escritório de 23, o aposentado de 61 e a professora de 42. Todos mortos pelas chamadas balas perdidas, aquelas que pipocam de um tiroteio qualquer e atingem quem não tem nada a ver com a história.

O gancho da matéria partiu de uma história absurda, de uma menina linda de 14 anos, filha única, de classe média, superprotegida pelos pais, que por isso vibrou de alegria quando, por telefone, a mãe deixou que ela pegasse o metrô sozinha numa estação e saltasse na seguinte para encontrá-la, tudo no bairro onde morava. E graças ao retardamento psicológico de quem resolve assaltar uma estação de metrô e à estupidez de dois policiais trapalhões, que resolveram reagir sem condição mental para isso, a menina, Gabriela, foi atingida por um tiro quando descia a escada do metrô. Morreu a caminho do hospital.

A idéia era reunir os casos fatais de bala perdida no estado e chegou-se ao número de 45 mortos entre maio de 2002 e maio de 2003, 31 deles na mui amada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A estatística era da Secretaria de Segurança e só tinha isso mesmo: números de casos divididos por meses. Nada de nomes, nem endereços.

Foi preciso uma pesquisa daquelas bem chatas, em jornais populares, para conseguir identificar as 31 vítimas, e como também tinha que marcar entrevista, foto, ir entrevistar, tirar foto de pelo menos sete personagens, a matéria demorou um pouco pra ficar pronta. Tanto que o gancho mudou.

Quarenta e um dias depois da morte de Gabriela no metrô, outra menina, essa de 19 anos, conversava com colegas no pátio da faculdade onde estudava, num intervalo entre as aulas. Sentada num banco, a menina, Luciana, estava encostada na parede, e assim foi atingida por um tiro na altura da mandíbula que a deixou tetraplégica. Não morreu, e por isso não constou das estatísticas da Secretaria de Segurança, que naquela época só contava as mortes, sem nomes, a maioria aqui na nossa cidade maravilhosa, do balconista de lanchonete de 24 anos, da dona-de-casa de 64, do subgerente de supermercado de 40, da vendedora de 25, do motorista de 27...

Essa matéria ficou bem grande, dois textos principais, da Luciana e da Gabriela, e seis coordenadas com mortos e feridos, além de 27 microtextos das outras vítimas fatais. Botar tudo aqui seria desnecessário. Vai abaixo só uma das coordenadas, que é mais do que o suficiente.

Revista Istoé Gente, edição 198, de 19 de maio de 2003

No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar.

Na véspera da festa de amigo oculto que seria realizada na sexta-feira 6 de dezembro, na Escola Municipal Pernambuco, próxima à favela do Jacarezinho, na zona norte, a aluna da 1a série do ensino fundamental, Jéssica de Jesus Teixeira, de 8 anos, conseguiu R$ 0,50 do pai, o entregador Hélio de Jesus Teixeira. Com o dinheiro, comprou um pacote de elásticos para cabelo, embrulhou-o com o papel arrancado de um livro de figuras e mostrou ao pai, orgulhosa do presente que não chegou a ser dado.
No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar. Levada para o Hospital Salgado Filho, morreu dois dias depois.
Atualmente desempregado, O pai vive com a mulher, Cláudia Maria de Paula, e os outros quatro filhos – Paulo Sérgio, 10, Jennifer, 4, Joice, 3, e Pablo, 8 meses – em uma casa de três cômodos no Jacarezinho. Ele ainda procura entender o que aconteceu. “A perícia diz que o tiro partiu de dentro da escola, mas ninguém ouviu nem viu nada, O município diz que bala perdida é de responsabilidade do estado, e o estado diz que não é com ele porque aconteceu numa escola do município”, conta Hélio, que processa a Prefeitura e tirou o filho mais velho da mesma escola.
Nada que reduza a dor pela perda da filha que sonhava em ser bailarina. “Ela tinha passado num teste para fazer aula de dança e queria que eu a levasse ao curso da Vila Olímpica da Mangueira”, lembra o entregador, que ainda tem de arranjar forças para combater a depressão da mulher e a tristeza dos filhos, principalmente de Jennifer, que tem tido febre quase toda noite. “Prefiro acreditar que a Jéssica não morreu. Ela está viva em algum lugar”, diz.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O TEXTO

O que importava era o texto. Na correria do fechamento, jornal diário, tinha pouco mais de uma hora pra escrever a matéria, fruto de uma boa idéia do editor, que já tinha o título pronto: O Vale das Balas Perdidas. Era um texto grande de abertura e outro menor, sobre um colégio de freiras, fora alguma apuração de última hora, por telefone. E tava concentrado em tentar fazer tudo a tempo quando alguém me avisou que a matéria ia ter arte.

Tinha pouco mais de três meses de jornal, vindo de outro onde o departamento de arte limitava-se à mesa do legendário Pamé, um dos maiores cartunistas de Niterói e adjacências. Quando alguém me disse que a matéria ia ter arte, fiz aquela cara de Que bom! E continuei concentrado no texto. Não percebi que também era responsável pela arte nem quando o cara de lá veio me pedir pra dar um confere no que ele tinha feito.

Faltavam uns quinze minutos pro deadline e eu finalizava o texto de abertura, ainda. Fui lá bem rápido, olhei o mapa de relance, aprovei e voltei ao meu computador. A arte era responsabilidade da arte, o que importava pra mim era o texto, que consegui entregar a tempo.

No dia seguinte, me chama o editor, em pé, no meio da redação. Tinha língua presa, e tinha feito teatro na juventude. O esporro foi daqueles histriônicos, bem alto, porque no mapa da arte o Morro do Zinco ficava no Morro da Coroa, a Mineira ficava a léguas de distância da Rua Itapiru e o Morro dos Prazeres, de Santa Teresa, pairava atrás do cemitério do Catumbi, entre outros absurdos. Percebi ali o que ninguém tinha me dito antes, que o mapa era comigo, também. Na hora, achei melhor fingir que sabia disso do que confessar minha completa ignorância com relação a mais essa responsabilidade do repórter. Fiquei quieto e absorvi o esporro, porque, até então, o que importava era o texto, esse aí debaixo.

Jornal do Brasil, edição de 7 de novembro de 1996:

No Educandário Nossa Senhora de Nazaré, a diretora Eliete Fernandes da Silva diz que é comum a escola virar alvo dos traficantes durante a madrugada. "Já guardamos 80 cápsulas de balas que atingiram a escola nos últimos seis meses", conta.

O que o Sambódromo, o Centro Administrativo da Prefeitura, o edifício Balança Mas Não Cai e os circos que costumam se instalar na Praça Onze têm em comum? Para quem não sabe, ou ainda não percebeu, todos ficam na área mais atingida pelas balas perdidas, que ultimamente têm tirado o sono dos cariocas. Nas noites de ontem e anteontem, mais três pessoas foram baleadas no Catumbi, situado no vale das balas perdidas, aumentando para 62 o número de pessoas atingidas esse ano no Rio. Desse total, 14 estavam nos bairros do Catumbi, Estácio, Cidade Nova e Rio Comprido, que compreendem a Região Administrativa de Rio Comprido.
De acordo com a polícia, a guerra entre traficantes nos morros da área, que já dura mais de dois meses, tornou o local um dos pontos críticos da cidade, onde o tráfico não respeita nem as escolas. No Educandário Nossa Senhora de Nazaré, a diretora Eliete Fernandes da Silva diz que é comum a escola virar alvo dos traficantes durante a madrugada. "Já guardamos 80 cápsulas de balas que atingiram a escola nos últimos seis meses", conta.
Para piorar ainda mais a situação, a região do Rio Comprido é cercada por 15 favelas, que, de acordo com os dados do Instituto Municipal de Informática e Planejamento (Iplan) - baseados no censo de 1991 -, abrigam 25.699 do total de 82.344moradores dos 6,11 quilômetros quadrados da área.
Segundo o comandante do Primeiro Batalhão de Polícia Militar, coronel Jorge Siqueira, os constantes tiroteios entre traficantes nos morros de São Carlos, da Mineira, do Zinco, Querosene, Falet, Coroa e Fogueteiro - que formam o Complexo do Estácio - fazem com que os bairros do Estácio e, principalmente, do Catumbi, sejam os principais alvos das balas perdidas. "Sempre fizemos operações de rotina nesses locais, independente desse crescimento de casos de balas perdidas. Nos últimos meses, apreendemos quatro fuzis e uma grande quantidade de revólveres e pistolas na região", disse o coronel.
A guerra nos morros citados pelo comandante do 1o BPM envolve três quadrilhas. A primeira delas controla o Morro do Zinco e era liderada por Rogerinho, preso no último domingo por policiais da 6a Delegacia Policial (Catumbi). O bando de Rogerinho faz parte do Comando Vermelho e tem como aliada a quadrilha de Nélson Gabino, o Português, e Claudinho, que controla o tráfico no Morro da Mineira. Os dois grupos estão em luta aberta contra os rivais do Morro de São Carlos, chefiados por Adílson dos Santos Balbino e seu gerente, conhecido como Gangan. A proximidade entre os morros da área, praticamente colados uns nos outros, envolve todos na guerra.
Na noite de anteontem, o apontador do jogo do bicho Carlos Alberto Cardoso de Mendonça, de 52 anos, engrossou as estatísticas da violência na cidade ao ser baleado na perna direita quando voltava para casa, no Morro do Zinco. A 60a vítima de bala perdida no Rio este ano foi atendida no Hospital Souza Aguiar e liberada ainda na mesma noite. Em seu depoimento na 6a Delegacia, Carlos Alberto contou que foi atingido durante um tiroteio entre traficantes da favela.
Os meninos Rafael de Siqueira Silva, de 5 anos, e Clécio José Faria, 6, foram as últimas vítimas das balas na cidade. No fim da tarde de ontem, os dois brincavam na calçada da Rua Itapiru, no Catumbi, em frente ao número 1045, quando marginais passaram pelo local em dois carros, trocando tiros. Rafael foi atingido na região lombar e levado para o Souza Aguiar, onde está fora de perigo. Clécio foi baleado na perna direita e está internado, também fora de perigo, no Hospital da Amiu, em Botafogo.

domingo, 16 de novembro de 2008

HONÓRIO, O GURGEL - O EIXO

Ladeira de paralelepípedo em Santa Tereza, na saída do Goiabeira, se é que ele ainda existe. Carro em ponto morto, controlando no freio, porque assim é mais legal. Até que na última curva, já avistando o batalhão de choque, um barulho estranho, tipo Clock, avisa que algo aconteceu, e você sente isso imediatamente, porque o gurgel aderna ligeiramente para a direita.

O barulho seguinte é de maçarico, quando você faz a curva para a esquerda e atravessa o viaduto por baixo, e o som já parece de aparelho de dentista quando você percebe como é difícil manter o gurgel em linha reta, e como é quase impossível virar pra direita, pra onde ele tá adernado. Pára, sai, deita no asfalto e descobre que o eixo, aquele ferro que liga o pneu ao resto do carro, não tá ligado à roda. Tá balançando perto dela, tocando o pneu de vez em quando, mas ligado à roda, não tá não. O que a segura é, de um lado, o próprio eixo, que não deixa ela cair pra trás; e do outro o pára-lama rebaixado, que tira faísca do chão nas pontas.

Você está parado às três e pouca da matina numa área da cidade que um jornal já chamou um dia de vale das balas perdidas. E como conseguiu andar uns cinqüenta metros naquelas condições, pensa mui sensatamente: por que não sair de lá, atravessar o Santa Bárbara e deixar o gurgel são e salvo em frente à oficina do lado de casa?

Os amigos vão na frente em outro carro, devagar, para o caso de uma desistência no caminho, mas curva pra direita, em todo o trajeto, só tem duas. E a primeira, de acesso ao túnel, é ultrapassada sem problemas, graças à pista vazia em frente ao Frei Caneca, que permite uma linha reta em diagonal, pra dar as melhores condições à roda boa, da esquerda, de fazer a curva sozinha.

Depois linha reta no túnel, como o gurgel já sabia, e o barulho de aparelho de dentista começa a ser entremeado por alguns clocks, isso em frente ao Palácio Guanabara. A segunda curva pra direita, de acesso à Praia de Botafogo, é mais complicada, porque a rua é mais estreita, não permite a diagonal. Sinal aberto, o volante pesa barbaridade, quase não se mexe pra direita, mas o gurgel consegue completar a curva, de uns 120 graus, e finalmente embica o pára-choque na reta do viaduto que, mais quatro curvas pra esquerda e outro túnel, o deixará na porta da oficina de Seu Raimundo, em frente ao Rocha Maia, pertinho do Pinel.

Na manhã seguinte, a glória. Seu Raimundo coça os cabelos brancos, ajeita os óculos, olha a roda com cara de tragédia e, do alto da experiência de anos e anos consertando carro velho, pergunta, sem acreditar:

Você trouxe esse carro assim?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

NOTURNO DO ESTÁCIO

Não tinha outro começo pra matéria. Chego no apê onde Luiz Melodia dava um tempo (enquanto a casa dele em São Conrado era reformada) pronto pra entrevistar o cara. Pesquisa feita e aquela tensão ligeira, que sempre bate quando o entrevistado vale a pena. Aí ele chega na sala, cumprimenta o fotógrafo, olha pra mim e manda:

Ué, tem entrevista?

Tinha passado meio mal na véspera, tava com uma cara de cansado, e por algum motivo achou que faria apenas uma sessão de fotos, em dois pontos da cidade que ele freqüentava. Aí também fiz minha cara de ué e respondi, timidamente: Tem, né?

O cara aceitou na boa. Só pediu pra gente fazer a entrevista durante as fotos, sem essa de parar, sentar num canto, ligar o gravador... Concordei, mas a conversa começou bem antes de qualquer coisa, porque Melodia sugeriu um chope no bar embaixo do prédio dele, em frente à Globo, no Jardim Botânico.

Aliás, a entrevista começou antes, no elevador, quando o cara jogou por terra a propalada invencibilidade do Politheama, time de pelada do Chico Buarque. Disse que tinha levado um pessoal do Estácio pra jogar no campo do Chico e que Melodia e cia não tomaram conhecimento dos adversários. Acabamos com eles, garantiu o cantor, com certo ar de desdém. Meses depois, falando pra outra matéria com um titular absoluto do Politheama, Carlinhos Vergueiro, a versão foi outra. No sofá de sua casa, com aquela cara de goleiro argentino dos anos 70, o pai de Dora Vergueiro disse, entre risos, que Melodia só podia estar maluco, e pra ratificar sua declaração informou o placar da partida contra a galera do Estácio, algo entre 7 a 2 e 8 a 3, a favor dos donos da casa. Não há documentos que provem qualquer das duas versões.

Mas do chope passamos à sinuca do Humaitá, que o cara dizia freqüentar, embora garantisse que não jogava bem, ao contrário do futebol. E se um dia alguém quiser apostar dinheiro com um cara que freqüenta uma sinuca mas diz que não joga bem, que aposte.

A última parada foi num restaurante japonês, um que tem um pequeno lago com peixes dentro. Mas antes disso, no carro, Melodia me disse o que seria o abre da matéria se ela não fosse publicada numa revista de celebridades. O cara não ia ao Morro do Estácio, onde nasceu e foi criado, há algum tempo. E o pior: o cara tinha um enorme receio de ir lá. Tinha que avisar antes à família, pra saber se dava pra subir ou não. Em suma, pedir autorização. E quando Luiz Melodia precisa de autorização pra subir o Morro do Estácio, sei não, fica difícil à beça ser otimista.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 206, de 14 de julho de 2003

“Quando o bicho pega vai tudo pra minha casa. Outro dia uma sobrinha não podia subir o morro por causa de tiroteio. (...) É muito deprimente ver o lugar onde cresci daquele jeito. Me dá tristeza de chorar.”

“Vai ter entrevista?” A pergunta de Luiz Melodia, enquanto se preparava para as fotos, dava o tom do humor do cantor na quinta-feira 3, após uma exaustiva viagem para um show em Belém. Visivelmente cansado, livrando-se dos resquícios de uma forte dor de dente na véspera, Melodia não transparecia qualquer vontade de conversar. Puro engano. Num passeio por alguns dos pontos mais freqüentados pelo músico na zona sul carioca, o filho do falecido sambista Oswaldo Melodia falou da infância no Morro de São Carlos, no Estácio, centro do Rio, ao show marcado para a quarta-feira 9, no Canecão, em comemoração aos 30 anos de carreira.
No roteiro de Melodia, 52 anos, a primeira parada é na lanchonete ao lado do prédio no bairro do Jardim Botânico, onde está morando nos últimos meses, enquanto sua casa em São Conrado continua em obras. Chega o primeiro chope e começa o balanço da carreira. “Nunca abaixei a cabeça diante de propostas indecentes, de tentarem me levar para o lado comercial”, diz o compositor. “Negão como eu, saído do morro, tinha que fazer só samba. Cortei isso de imediato”, afirma, lembrando da fama de maldito que teima em persegui-lo. “Me rotularam assim porque nunca fui de abrir perna pra gravadora. Foi até melhor. Se não fosse o marginal e tivesse feito o que eles queriam, talvez não estivesse trabalhando até hoje.”
O autor de “Pérola Negra” não nega as origens. Em casa, no morro considerado o berço do samba – por ter abrigado a Deixa Falar, primeira escola de samba, fundada por Ismael Silva –, Melodia arriscou os primeiros acordes. Foi na viola de quatro cordas que atiçava o ciúme do pai. Quando Oswaldo não estava em casa, o único homem entre seus quatro filhos roubava a viola, até o dia em que o instrumento quebrou. “Meu pai chegou e escondi a viola num vão na parede, mas ela caiu”, lembra o compositor, que na época tinha 12 anos e não escapou da surra.
Do morro, ele conserva lembranças como o coral em que cantava com as irmãs, Marise, Vânia e Raquel, na igreja presbiteriana freqüentada pelos pais. “Lá percebi que cantava direito, mas preferia soltar pipa atrás da igreja”, confessa o compositor, que morou no São Carlos até 1973, quando lançou seu primeiro disco, Pérola Negra.
A vida tranqüila na favela faz parte de um passado distante. Para visitar as irmãs no lugar onde nasceu, Melodia tem de esquecer letras de sucessos seus, como “Estácio Holly Estácio”, e telefonar antes para saber se pode subir o morro ou se há tiroteio. “Hoje há rodízio no tráfico. Do pessoal que vende drogas no Estácio, só um ou dois são de lá”, conta ele, saudoso da época em que o poder bélico dos traficantes não era ostentado diante dos moradores. “Só os mais velhos andavam armados. Quando tinha tiroteio, era mais a polícia matando os caras, não tinha essa coisa de guerra entre eles.” O músico ainda sonha em conseguir dinheiro para tirar a família da favela. “Quando o bicho pega vai tudo pra minha casa. Outro dia uma sobrinha não podia subir o morro por causa de tiroteio”, diz ele, que reduziu as idas ao São Carlos. “É muito deprimente ver o lugar onde cresci daquele jeito. Me dá tristeza de chorar.”
Outro motivo de tristeza foram as mortes recentes de amigos como o produtor musical Almir Chediak, o compositor Itamar Assumpção e o poeta Wally Salomão. Freqüentador do Morro de São Carlos nos anos 70, Wally dirigia o show de Gal Costa em 1972. Incluiu “Pérola Negra” no repertório e deu o impulso definitivo para a carreira do cantor. Foi morando no antigo apartamento do poeta, em Copacabana, que Melodia começou a ter hábitos na Zona Sul, como o de freqüentar uma sinuca próxima ao estúdio Mega, onde grava e ensaia, no Humaitá. “Não jogo nada, mas freqüento”, diz. A relação com os restaurantes japoneses, outro de seus points prediletos, é mais próxima. O cantor tem até hashis (os tradicionais pauzinhos) próprios em dois restaurantes de São Paulo, mas não conseguiu convencer a mulher, Jane, dos benefícios da culinária japonesa. “Não como nada cru”, afirma Jane.
Da relação que dura 26 anos, nasceu Mahal, único filho do casal, de 24 anos, que passa os dias compondo raps e parece ter herdado a originalidade que fez do pai um músico difícil de ser rotulado. “As letras dele são sofisticadas”, analisa Melodia. Preocupado com a ansiedade do filho em mostrar a própria produção, o autor de “Magrelinha” ao menos tem experiência de sobra para dar conselhos. “Digo a ele pra ficar calmo, porque o pai demorou anos pra aparecer. E até hoje é difícil pra mim.”

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

NO SALÃO DE BELEZA

Rua Figueiredo Magalhães, no meio da tarde de um dia de semana. A Copacabana barulhenta de sempre, carro pra tudo quanto é lado, gente se esbarrando na calçada e uma passagem bem estreita, entre um botequim e uma drogaria. Depois uma escada, também espremida entre as paredes, e no fim dos vinte degraus de concreto, a porta, com aquele vidro de área de serviço e o nome do local em tinta vermelha: Salão de Beleza Bezerra da Silva.

Atrás da porta, debruçado no balcão da entrada, o próprio. Calça preta, camisa social azul de manga curta e a boina xadrez. Conversava com a mulher, mulata de seus 50 anos que, com todo o respeito, poderia muito bem ter trabalhado com Sargentelli na juventude. Era ela quem comandava o salão, onde o único espaço livre, sem aquelas cadeiras de cabeleireiro, era a distância entre a porta e o balcão, dois metros no máximo. Bezerra arrumou dois banquinhos de plástico, daqueles de piscina, e a entrevista foi ali mesmo, interrompida algumas vezes pelo abrir e fechar da porta ao lado.

Na carona do salão de beleza, a matéria enveredou pelo lado menos conhecido do cara, que ele tocava trompete, que quase tinha sido advogado e outras coisas mais, até descambar na última surpresa: a conversão à igreja evangélica. Mas sem fanatismo, como o próprio fez questão de frisar, ao contar a resposta dada a um repórter que o entrevistara sobre isso.

O cara perguntou se ele, Bezerra, daria a outra face a quem lhe desse um tapa na cara, e ao responder, de pronto, o cantor revelou um versículo do Evangelho Segundo Bezerra da Silva (royalties: Marlos Mendes).

Se você me der um tapa na cara e ficar na minha frente, eu vou é te sentar o dedo.

Parava por aí o respeito aos preceitos cristãos do malandro criado no Cantagalo, o Morro do Galo, como o cara chamava o lugar. E se revelou tanta coisa na entrevista que ajudava a desconstruir a imagem de “cantor dos bandidos”, Bezerra não fez a menor questão de ser ver livre dela. Confirmou que era malandro, sim, mas do jeito dele, e pra definir cantou, sentado no banquinho de plástico, na entrada do salão de beleza, o samba de um tal Marquinhos PC, um dos compositores que ele gravava e nem sabia quem era.

A letra é a seguinte:

Malandro é o cara que é considerado
Onde chega é muito bem chegado
Num ponto de esquina, na mesa de um bar

Malandro é o cara que não faz asneira
Acorda cedo na segunda-feira
E sai pro batente pra ir trabalhar

Malandro é o sujeito que é bem informado
E na sociedade sabe muito bem onde é seu lugar
Malandro não é batedor de carteira
É um rapaz decente que leva a vida a cantarolar

Malandro é o cara que gosta de samba
Só freqüenta onde tem gente bamba
E faz de tudo para agradar

Malandro é o cara que venceu na vida
E sem fazer intriga
Tem muitas verdades lindas pra contar

Malandro é o supra-sumo da decência
E pra você que não sabe
Malandro é sinônimo de inteligência


A matéria abaixo vem com uma ligeira modificação no texto publicado. Escrevi no lead que Bezerra arranhava umas notas no trompete, mas a editora, criatura de bom coração, deve ter achado ofensivo ao malandro e botou lá, a um centímetro da minha assinatura, que Bezerra da Silva tocava trompete lindamente. Pelo menos nenhum amigo meu leu a matéria, graças a Deus. O texto a seguir vem como se deve, porque lindamente, no lead, nem se fosse o Miles Davis.

Revista Istoé Gente, edição 147, de 27 de maio de 2002

“Nunca bebi, não fumo maconha nem cheiro pó. Também não ando de madrugada. Mas essas realidades ninguém nunca fala”

Ele estudou violão clássico, arranha umas notas no trompete, foi percussionista da orquestra da Rede Globo durante oito anos, por onde se aposentou, trabalhou como assessor jurídico e freqüenta uma igreja evangélica três vezes por semana. É difícil acreditar, mas é assim a vida do sambista e ícone da malandragem carioca, Bezerra da Silva, 65 anos, famoso pelas letras que falam do cotidiano das favelas com a naturalidade de quem conhece o assunto de perto.
Chamado de cantor dos bandidos, graças aos sambas que tratam do mundo do crime e aos inúmeros shows em presídios ao longo da carreira, Bezerra não se incomoda com a fama de malandro, mas faz questão de mostrar seu outro lado. “Nunca bebi, não fumo maconha nem cheiro pó. Também não ando de madrugada. Mas essas realidades ninguém nunca fala”, diz.
Os hábitos combinam com a religião do sambista, que há seis meses freqüenta os cultos na Catedral Mundial da Fé. “Vamos lá domingo, segunda e terça. É rapidinho. Tudo que fala em Deus pra mim está bom, mas sem fanatismo”, afirma o novo evangélico. Mudança de comportamento pode até ser, mas trocar o repertório tradicional por músicas evangélicas está fora de cogitação, avisa o sambista. Ele não descarta a possibilidade de gravar um disco religioso, mas só se fosse para ganhar dinheiro. “Se me chamarem, será por comércio, mas não preciso cantar em cima de Jesus Cristo para vender disco”, diz o cantor, que garante não fazer apologia às drogas com suas músicas. Segundo ele, “Malandragem Dá um Tempo” – maior sucesso de Bezerra, já gravado pelo Barão Vermelho e espécie de hino da turma da maconha –, por exemplo, é na verdade uma mensagem contra as drogas. “Ela fala do que pode acontecer com quem cai na droga. Alerta muito mais que qualquer campanha”, acredita o sambista.
Dona do salão de beleza batizado com o nome do marido, Regina, 50 anos, foi a responsável pela conversão de Bezerra. Juntos há 19 anos, os dois não são casados no papel. “Vai fazer 20 anos que ele está me enrolando”, diz a mulher, com ar resignado.
Lançando o 27o disco da carreira, A Gíria É a Cultura do Povo, Bezerra sai pela tangente ao responder se está rico. “Não estou morrendo de fome, mas fui roubado durante anos pelas gravadoras. Sou uma máquina de fazer dinheiro em perfeito estado. Sou feio, mas vendo disco”, afirma o cantor, que contabiliza cerca de dois milhões de cópias vendidas nos 27 anos de carreira, ele que aos 15 anos saiu de Recife, escondido num navio. “Fugi da fome. Se tivesse mais idade na época, seria do bando de Lampião”, conta.
Durante os quatro primeiros anos no Rio, dormia nas obras dos prédios que ajudava a construir. De operário passou a pintor de parede e foi morar no Morro do Cantagalo, em Ipanema. Foi a época em que se acostumou a ser preso, sempre para averiguação. “Sabia até onde era minha cela no xadrez”, brinca o sambista, que, apesar das 21 entradas na prisão, ostenta um “nada consta” na ficha criminal. A sina estimulou em Bezerra a vontade de conhecer o Código Penal, lido até hoje, nas horas vagas. Entre 1967 e 1973, foi assessor jurídico de um amigo advogado. Pai de três filhos do primeiro casamento, o cantor, que iniciou a carreira em 1958, tocando tamborim em gravações de Carnaval, nem pensa em parar. Continuará garimpando autores desconhecidos nos morros, responsáveis por 99% de seu repertório. “Sou um seguidor de Castro Alves. Ele fazia versos em prol dos escravos. Eu canto para o povo. Sou favela.” E nem liga se continuar sendo chamado de cantor de bandidos. “Pelo menos ando na cidade sem medo de ser assaltado.”

domingo, 24 de agosto de 2008

O APÊ DO SAMBA (MADE IN BRAZIL)

O prédio era daqueles grandes no meio de Copacabana. Muitos apartamentos, centenas de janelas pequenas e corredores enormes, estreitos, cinzas, como o que adentramos ao sair do elevador de porta pantográfica. O local da entrevista ficava na cabeceira do corredor, atrás do olho mágico que, junto com seu vizinho lá do outro lado, tinha a melhor visão de quem entrava ou saía pelas dezenas de portas do andar.

Atendeu a campainha um sujeito sorridente, vestido com calça branca e uma espécie de bata; segurava numa das mãos o crochê interrompido. Na poltrona e no sofá do apertado quarto e sala estavam ainda uma matrona de lenço na cabeça, certamente ex-mulata, e um casca-grossa típico, de cavanhaque grisalho, camisa aberta e medalhão dourado. Havia ainda duas mulatas à paisana, uma daquelas de interromper conversa em botequim, quase um metro e oitenta, que trajava vestido opressor, e outra bem mais discreta, magrinha, de calça moletom e blusa folgada, que usava óculos. Ao fundo da sala, sentado à mesa de jantar, de pijama, pés descalços, Sargentelli nos esperava.

Após longo período de hibernação, o imperador das mulatas, descobridor de Adele Fátima, ensaiava uma volta aos tempos de fama, quando sua casa de shows era freqüentada por gente como Henry Kissinger. Lançava a própria biografia, de título espetacular, e anunciava a abertura de nova casa, que acabou não se concretizando. Foi sua última entrada em cena antes de cair em novo ostracismo, do qual só sairia pra morrer.

E foi muito divertida aquela entrevista num quarto e sala com oito pessoas. Sargentelli era um sujeito engraçado demais. Contou histórias do tio, Lamartine Babo, falou de um jogo qualquer dos anos 40, do Botafogo dele contra o América do fotógrafo, e relembrou ótimos momentos de sua carreira de jornalista. Aliás, o cara era dos melhores no ramo.

Nos recebeu como velhos amigos, tanto que nos achamos no direito de pedir pra fazer uma foto com ele na praia, a uns oitocentos metros do apê de quarto e sala, fora a viagem no elevador de porta pantográfica. Idéia do fotógrafo, claro, e sem muito sentido, em se tratando de um senhor de 76 anos que tava em casa de pijama.

Nessa altura as duas mulatas já tinham se arrumado pra compor as fotos, e a magrinha discreta, que trocara o moleton e a camisa folgada por um jeans justo e um top, revelou-se tão perturbadora quanto a colega de um metro e oitenta. Sargentelli olhou pras moças, pra gente, fez uma cara compungida e começou a falar com ele mesmo.

Mas como eu não vou atender o pedido desses rapazes que vieram aqui pra me ajudar, pra divulgar meu livro? E botava a mão na testa, olhava pras mulatas, pra gente. Eu tenho que atender esse pedido, como não? Seria uma desfeita. E de novo a cara de lamento, de quem estava muito triste, até envergonhado, e o pedido de desculpas, porque ele não iria até a praia, não.

Depois do lançamento da biografia e sem casa nova de espetáculos, Sargentelli voltou a sair de cena. Ficou no canto dele, quieto, até ser homenageado na novela O Clone, que fazia sucesso estrondoso, daqueles incompreensíveis. Gravou com Solange Couto, também descoberta por ele, e foi internado logo em seguida. Infarto. Morreu no dia seguinte e já não estava aqui ao aparecer pela última vez em público, para o Brasil inteiro, quando sua cena foi ao ar na novela.


Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 15, de 15 de novembro de 1999

“Não basta ser mulata, tem que sambar”.

Ele andava meio sumido, mas está de volta - e com a corda toda. Aos 76 anos, o sambista e especialista em mulatas Oswaldo Sargentelli prepara um novo show no Rio de Janeiro, sete anos depois de fechar sua última casa noturna, e acaba de estrear na Rádio Manchete com o programa Botequim do Sargentelli. Esse é também o nome de sua nova casa, que abrirá em parceria com o empresário Ricardo Amaral no local do antigo Sucata, na Lagoa. A estréia, prevista para 8 de dezembro, será com o show Ziriguidum 2000.
Com a fórmula de sempre, o espetáculo terá 15 mulatas e vai reviver a Lapa antiga. “A ansiedade é enorme. Parece que estou começando tudo de novo”, diz ele, que ainda consegue tempo para promover sua biografia, Memórias de um Sargento de Mulatas, escrita por Fernando Costa e lançada no último dia 4. O livro relembra o parentesco de Sargentelli com o compositor Lamartine Babo, seu tio, e histórias como as prisões durante o regime militar, quando se viu obrigado a encerrar a carreira de repórter político na extinta TV Rio.
Há dez meses, Sargentelli se submeteu a uma cirurgia no coração, realizada pelo ex-ministro Adib Jatene, no Incor, em São Paulo. “Recebi três pontes de safena e disse ao Jatene que iria fundar a Unidos da Ponte de Safena para o Carnaval”, brinca. O bom humor continua afiado e sempre presente no apartamento de quarto e sala em Copacabana, que ele divide com “o maior número de pessoas possível”. Atualmente, moram com ele o cantor de seus shows Miguel França, as mulatas Aline Barreto e Renata Santana e outras três pessoas. “Tem dia em que dormem umas 11 pessoas aqui. Não gosto de ficar sozinho”, diz. Solteiro desde 1978, quando se separou de sua terceira mulher, ele se complica na hora de enumerar os filhos. “Dentro de casa, foram sete”, diz, referindo-se aos filhos dos três casamentos - com Lúcia, que durou oito anos, Vera, 11 anos, e com Almary, 13. Desconcertado, confessa que tem 21 filhos “espalhados por aí”.
Nascido na Lapa, o berço da boemia carioca, o menino Oswaldo foi criado pela mãe, Maria Amélia Sargentelli, e teve pouco contato com o pai, Leopoldo de Azeredo Babo, irmão de Lamartine, que não o registrou. Só conheceu o tio famoso quando começou a trabalhar como locutor na Rádio Clube do Brasil, em 1948. Autor dos hinos de todos os grandes times de futebol do Rio, Lamartine contou ao sobrinho que compôs todos eles em três dias, preso em um apartamento pela gravadora, em 1942. Isso porque, depois de receber um adiantamento, ele adiara o quanto pôde a entrega dos hinos. Até que os diretores da gravadora aproveitaram a fama de mulherengo de Lalá e inventaram a história de que ele havia sido convidado para ser paraninfo de uma turma de normalistas, mas antes teria de ir a uma reunião em um apartamento no Centro. Chegando lá, Lamartine foi trancado por fora, com uma geladeira cheia, papel, lápis à vontade e um telefone. Ficou até terminar a encomenda. “Ele ligava para maestros como Radamés Gnatalli porque era analfabeto musical. Meu tio cantava a letra e os maestros escreviam”, conta Sargentelli.
Do rádio, Sargentelli foi para a televisão. Entre 1957 e 1964, comandou o programa O Preto no Branco. Sem aparecer no vídeo, o locutor fazia as perguntas mais indiscretas possíveis aos entrevistados. Certa vez, Sargentelli convidou Jânio Quadros para o programa e, aproveitando o estrabismo do ex-presidente, iniciou a entrevista com a seguinte frase: “Jânio Quadros, um olho no capital estrangeiro e outro em Moscou”. A ousadia do programa trouxe problemas para o apresentador, entre eles quatro prisões.
Em 1964, foi proibido de trabalhar na imprensa pelo regime militar e começou a fazer os primeiros shows com mulatas. Em 1969, assumiu a direção da sua primeira casa, o Sambão, em Copacabana. Um ano depois surgiu o Sucata e, em 1973, Sargentelli transformou o antigo Zeppellin - reduto da esquerda carioca - no Oba-Oba, a casa em Ipanema que deu fama definitiva ao produtor. Foram dez anos no Rio e outros seis em São Paulo, em que Sargentelli e suas mulatas recebiam até políticos estrangeiros - entre eles o secretário de Estado americano Henry Kissinger, que visitou a casa em 1975. Hoje, às voltas com fichas de seleção de morenas e mulatas para a nova casa, Sargentelli, que já trabalhou com 250 delas ao longo da carreira, avisa: “Não basta ser mulata, tem que sambar”.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

HONÓRIO, O GURGEL – A VIAGEM


Descanso mesmo, de mais de cinco segundos, só quando alguém passava a nossa frente e ficava um tempo na pista da direita, até desaparecer na escuridão. No mais, o indicador e o dedo médio da mão esquerda foram heróicos naquela viagem de volta da Região dos Lagos. Seguraram, um e outro, revezando-se, a alavanca do farol alto, que não ficava no lugar e poderia muito bem ser deixada de lado, se o farol baixo do gurgel estivesse funcionando.

Ao meu lado, meu amigo Manguaça, que sempre gostou muito de falar, vinha em silêncio. De vez em quando perguntava se eu enxergava alguma coisa à minha frente. E eu, entre as piscadelas do farol alto, com os dois dedos já latejando, dizia que sim, que tava tudo tranqüilo. Só que a gente tinha resolvido, ao sair de Arraial do Cabo, dar uma passada em Búzios antes de voltar ao Rio, e com isso pegamos a estrada no fim da tarde. Em menos de meia hora de viagem, começou a escurecer. Foi quando me lembrei do pequeno problema no farol do carro.

Pegar estrada à noite já é um negócio que requer cuidado redobrado. Se não tiver farol, então, fica ainda mais difícil. O bravo Honório fazia sua parte. Rodava macio, nem parecia ligar para a limitação de seu campo de visão. O problema era ficar segurando a porra da alavanca do farol alto.

Meu esforço deve ter sido maior que o do Senna naquele GP do Brasil em que ele perdeu sei lá o quê, acho que umas cinco marchas, e cruzou a linha quase desmaiando. Depois saiu do carro como se acabasse de escapar de um naufrágio e parecia que levantava um menir quando ergueu o troféu da corrida, que não devia pesar nem cinco quilos.

Não precisei fazer essa cena toda, mas confesso que aliviei a tensão ao longo daquela viagem, às escuras, com dois dedos doendo sem parar, de forma um tanto estranha. Primeiro vibrei com um engarrafamento em Araruama e depois, enquanto o trânsito tava parado, joguei adedanha com o Manguaça, durante alguns minutos. Aí o engarrafamento acabou, a estrada voltou a ficar escura e ficamos em silêncio, de novo.

Alívio mesmo, de esquecer a dor, só quando, inebriado pelos odores da Niterói-Manilha, avistei aquela bela fileira de luzes amarelas, exemplo maior da pujança econômica de nossa ditadura, a nos avisar que dentro de poucos minutos estaríamos todos, eu, o Manguaça, o Honório e os dois dedos que já pulsavam, adentrando na querida cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, amplamente iluminada, pelo menos nas principais vias.

sábado, 5 de julho de 2008

O DEPUTADO FEDERAL

O pé esquerdo de Eurico Miranda veio envolto em bandagens e esparadrapos, que deixavam à mostra a unha do dedão, grande e torta. Uma luxação qualquer, que o fez usar bengala e passar mancando por mim e pelo senhor à minha frente, na ante-sala do gabinete da Presidência do Vasco, em São Januário. Atrás dele vieram um de seus filhos e Paulo Reis, então vice-presidente Jurídico do clube. Os três entraram no gabinete e fecharam a porta.

Uns dois minutos depois, tive a certeza de que o senhor à minha frente formara a zaga campeã do Mundo na Suécia, ao lado de outro vascaíno, quando a secretária perguntou o nome dele e ele, de maneira polida, educada, respondeu: Orlando Peçanha.

Foi recebido logo e também saiu do gabinete rapidamente, enquanto eu entrava, a tempo de ouvir a última fala da conversa. Vamos resolver aquele negócio, disse Eurico, e o cara que jogou no mesmo time que Pelé e Garrincha sorriu e assentiu com a cabeça, antes de sair da sala. Eurico ocupava a cabeceira de uma mesa grande, de uns vinte lugares. O pé esquerdo estava em cima de uma cadeira e achei melhor sentar do outro lado. Não vi mais as bandagens até que, no meio da entrevista, sem qualquer aviso prévio, adentra na sala Eduardo Viana, o Caixa D’Água, na época presidente da federação de futebol do Rio de Janeiro.

Não me lembro se meu entrevistado pediu licença. Sei que ele se levantou e, mancando, apoiado na bengala, foi com o Eduardo Viana pra uma parte mais reservada do gabinete. Fiquei no mesmo lugar, escutando as vozes dos dois sem entender nada, a não ser uma palavra ou outra, solta. Ouvi Caixa D’Água falar em Goitacáz e me lembro bem de uma frase do Eurico repetida três vezes, cada vez mais alto:

E se isso não é evasão de renda é o quê, Eduardo?

Não demorou para voltarem. Eduardo passou direto pela mesa e Eurico sentou de novo na cabeceira, com o pé em cima da cadeira, para continuar de onde havíamos parado.

Tinha jogo do Vasco naquele dia, contra o Goiás, e a entrevista acabou umas duas horas antes da partida. Fiquei por lá. Jantei no restaurante de São Januário e passei pela sala de troféus. Reverenciei o condor do Sul-americano, admirei a réplica da Libertadores e me deparei logo com as taças dos então três brasileiros. E fui lá no fundo, pra confirmar que a edição dos Lusíadas, de mil setecentos e alguma coisa, continuava no mesmo lugar, ao lado do malfadado diploma de vice mundial entregue pela Fifa.

O clube vivia ainda a ressaca daquela tragédia no Maracanã, no jogo em que foi campeão o time que não ganhou de nenhum adversário grande e que levou a decisão para os pênaltis confiando no goleiro, isso porque chegou à final no saldo de gols, graças a um gol inexistente. Já o Brasileiro ainda estava naquela fase de definir quem seriam os classificados para as oitavas-de-final e o início do jogo não foi nada animador.

O Goiás fez um a zero, aproveitando falha de nossa zaga claudicante, que comparada à atual subiria ao patamar de Bellini e Orlando. Do meio pra frente, o time tinha os Juninhos, Pernambucano e Paulista, o Euller e o Romário. Tinha também Pedrinho e Felipe, de vez em quando, e Viola no banco. O Juninho Pernambucano empatou, num chute de fora da área, e o Paulista virou, depois de passe açucarado do Romário. O time já parecia entrosado, jogando o fino, e até a defesa não mudaria muito, até porque suas falhas seriam fundamentais para o que viria dali a uns quarenta dias. Uma vitória única, épica, como jamais nenhum time conseguiu em todo o planeta, em todos os tempos, para dar mais uma amostra do que esse tal de Vasco é capaz.

Abaixo, a matéria.


Revista Istoé Gente, edição 66, de 6 de novembro de 2000

"Costumo dizer que é mais importante ser presidente do Vasco do que ser governador do Estado".

Conhecido por defender aos berros os interesses do Vasco da Gama, clube do qual é vice-presidente, o deputado federal Eurico Miranda (PPB), 56 anos, ignora a possibilidade de ser convocado pela CPI do Senado que investiga irregularidades no futebol brasileiro.
Integrante de outra CPI, a da Câmara Federal, que vai apurar o contrato da CBF com a Nike, Eurico já conseguiu barrar o requerimento que poderia revelar valores dos passes de jogadores.
Mesmo com numerosa coleção de desafetos entre políticos, torcedores e adversários, ele não muda seu estilo. Centralizador no comando do Vasco, onde sempre apareceu mais que o presidente do clube, Antônio Soares Calçada, Eurico é capaz de dizer que se acha mais importante que o governador do Estado do Rio.
Casado com Silvia Miranda, 50, e pai de quatro filhos, com quem divide uma cobertura em Laranjeiras, na Zona Sul, e uma casa em Angra dos Reis, no litoral fluminense, o deputado lança mão de uma frase que destoa da sua maneira truculenta de ser: “Faço tudo com amor”.

O senhor atenderá ao requerimento do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) para depor na CPI?
Quem é Antero Paes de Barros? Esse senador passou a ser conhecido porque falou no meu nome. Falar no meu nome dá holofote. Eles deviam ser inteligentes e me pedir para que eu colaborasse. É claro que não atenderia a uma convocação dessas. Não há um fato concreto.

Mas o Banco Central aplicou uma multa de R$ 1,3 milhão ao Vasco (por crime de defasagem cambial na venda do atacante Bebeto ao La Coruña, em 1992). O que o senhor tem a dizer?
E o que eu tenho a ver com isso? Não fui eu que participei da negociação (Eurico já era vice-presidente do Vasco na época). Apesar de eu ter certeza da legalidade da transação, não tive nada a ver. Mas eles não querem saber se, legalmente, fui eu que fiz a transação. Eles querem é aparecer em cima desse negócio. Ou você acha que alguma decisão que essa CPI tomar vai ter divulgação? Só vai ter divulgação se falar no Eurico. De repente eles querem me transformar na figura mais importante desse País, que eu não sou. Ou até sou.

É?
Tenho uma representação forte, que é a do Vasco da Gama. Costumo dizer que é mais importante ser presidente do Vasco do que ser governador do Estado. (Eurico ainda é vice-presidente do Vasco, mas deverá ser eleito presidente na eleição de novembro, já que Calçada desistiu da disputa).

Qual o caminho que as CPIs devem seguir?
As comissões vieram num momento bom para fazer um diagnóstico dos problemas do futebol brasileiro. Mas o que estamos vendo é o lado policialesco. Um negócio absolutamente nazista, de perseguição pessoal, de quererem atingir uma instituição como o clube. O clube é a célula do futebol e do esporte, mas é atingido como se fosse dirigido só por marginais, por pessoas que querem se aproveitar.

Quais os problemas do futebol?
As empresas estrangeiras querem tomar conta do futebol. Querem pegar a administração de um time, mas isso não vai dar certo. Você vê aí o Corinthians (ocupa hoje uma das últimas posições no campeonato brasileiro). O investidor pode investir, mas nunca dirigir porque ele não conhece isso. O torcedor não respeita o diretor que hoje é do Vasco e amanhã é contratado pelo Flamengo. Ele pode ser excepcional, mas tem de ter a formação no clube. O cara não aceita que um John da vida vá dirigir o Corinthians. Aí vêm uns políticos que não têm nada a ver com isso e querem fazer palanque em cima do futebol.

Mas o senhor se elegeu duas vezes graças ao futebol.
Não prometi água, habitação, luz, nada. Só defender o Vasco. Meu voto é na emoção, mas aliado à competência. Se o Vasco não tivesse sido campeão brasileiro em 1997 e da Libertadores em 1998 (ano da última eleição), eu não teria mostrado competência para ser reeleito.

Não vê problemas em participar de uma CPI sobre futebol, sendo um cartola?
Como eu posso não estar ligado a essa CPI? Você vai fazer uma CPI da Saúde e o médico não vai participar? Vai fazer uma da Reforma Agrária e o deputado ligado ao MST não pode participar? Por quê? Deve participar, até porque nada é decidido individualmente numa CPI. Vence a maioria.

O que achou da escolha de Antônio Lopes e Leão para dirigir a seleção?
Acho que o Ricardo Teixeira não tinha outra saída. O grande erro dele foi não ter o cargo do diretor de futebol antes. Ele deu ao treinador todos os poderes. O Luxemburgo não tinha ninguém acima dele, nem o presidente, porque o Ricardo Teixeira viajava mais do que ficava aqui. Então ele, Ricardo, viu que ia precisar daquela figura que não deixasse o treinador com a última palavra. E para isso escolheram um cara que conhece. O Lopes (ex-técnico do Vasco) tem essa formação. Aliás, a maioria desses caras que estão aí trabalharam comigo e, em termos de administração de futebol, não tenho dúvidas de que aprenderam alguma coisa.

Ainda defende a renúncia de Ricardo Teixeira?
Claro. Depois do que a seleção fez nas Olimpíadas, perder para a África do Sul e perder para Camarões com nove homens, ele tinha que ter vergonha na cara e sair fora. Ir tratar de outra coisa. O Brasil, com toda essa tradição, não pode perder para um time que começou a jogar bola há cinco anos. Por isso defendo o dirigente amador. Ele tem de ter esse sentimento, mas o pessoal que está aí é absolutamente frio. O Ricardo Teixeira, hoje, é um dirigente profissional.

E se o Vasco caísse para a segunda divisão?
Primeiro isso nunca iria acontecer. Mas, se acontecesse, jamais alguém iria me ver tratando de algum assunto de futebol ligado ao Vasco.

O Vasco participou das Olimpíadas com 83 atletas. Ficou alguma decepção com o desempenho da delegação brasileira?
Se ficou, foi pela falta de compreensão do que representa o projeto olímpico do Vasco. Já me disseram que fiz isso com fins eleitoreiros e até para lavar dinheiro, mas pouca gente sabe que, atrás de um atleta de ponta, como o Gustavo Borges, financiamos 800 atletas em todas as categorias da natação. O problema é que o brasileiro só quer saber de resultados imediatos. Não consegue entender que uma medalha de prata no revezamento 4x100 do atletismo é um feito histórico, que a quarta colocação do Sanderley Parrela nos 400 metros também.

O senhor não obteve credenciais para assistir aos jogos em Sydney. Ficou alguma mágoa do presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, por isso?
Ele disse para mim que foi um esquecimento e até quis me dar as credenciais depois. Eu é que não quis. Acho o Nuzman bem intencionado, mas ele depende das confederações e dos patrocinadores. Quando entra um clube de massa como o Vasco, fica um certo temor do pessoal que controla as confederações. Só queria que o COB pelo menos divulgasse o clube dos atletas. Eu contrato uma Janeth, por exemplo. Ela vai para a seleção de basquete, veste a camisa da Caixa Econômica Federal e ninguém diz que ela é do Vasco. Na natação também. Você sustenta o Gustavo Borges o ano inteiro, mas nas Olimpíadas ele aparece como atleta dos Correios.

Sua imagem pode ter prejudicado o projeto olímpico?
Não sei se foi por minha causa. A minha vida tem sido devassada desde que eu me entendo por gente. Nesse país você não pode ser bem casado e não ter problemas de família. É uma merda. Se você não prevarica, não parte nas noitadas, não tem vícios e não é carola, alguma coisa está errada. Aí você consegue alguma coisa, logo acham que foi roubado, só que você não tem três casas para sustentar e não gasta com vícios.

Como no episódio do roubo da bilheteria (Em 1998, Eurico foi assaltado na portaria de seu prédio quando levava para casa R$ 70 mil da renda de um jogo do Vasco em São Januário)?
Nunca tinha levado a renda e nunca mais levei. Aquilo aconteceu por acaso, num dia em que o tesoureiro do clube não pôde levar. Pareceu até coisa armada.

O senhor sempre disse que o craque tem que ter privilégios. Arrependeu-se no caso do Edmundo?
O Edmundo não soube aproveitar as condições que dei a ele. O Romário, por exemplo, tem mais vivência e sabe aproveitar. Mas não me arrependo. Até traria o Edmundo de novo.

Mesmo com o Romário no Vasco?
Com o Romário, não.

terça-feira, 1 de julho de 2008

O DEPUTADO ESTADUAL

A sala de espera daquele escritório no centro do Rio não tinha nada demais. O prédio era dos mais antigos, o lugar era apertado e não existia ali qualquer tipo de preocupação com decoração, bom gosto ou arrumação. Até porque não era o gabinete do deputado. Era somente uma sala que ele mantinha ali perto, para resolver assuntos particulares.

Sentado no sofá ao lado havia um sujeito de terno, cabeça branca, que logo puxou conversa sobre o assunto que nos levara até ali. Se identificou como advogado de um movimento de oposição no Vasco, que nunca gozou de muita reputação entre os sócios. Dizia-se indignado com o que tinha ocorrido e deveria estar mesmo, porque eu também estava, mas a conversa não durou muito. O deputado chegou logo.

De terno, Roberto Dinamite apareceu sozinho. Apertou a mão do advogado, a minha, sorrindo sempre, me pediu licença e sumiu no corredor. Uns três minutos depois, a secretária me disse pra entrar. O advogado, que já estava lá quando eu cheguei, ficou lá sentado.

A sala do Roberto era mais apertada ainda, uma mesa de madeira, daquelas bem pesadonas, envolta por estantes cheias de livros, revistas e afins. O espaço entre as laterais da mesa e as estantes, igual dos dois lados, não deveria ter mais de um metro. Na frente dele, uma bandeirinha do Vasco e outros pequenos apetrechos relacionados ao clube lembravam o passado de ídolo. E havia também, se me lembro bem, um pôster relativamente grande, do cara em campo, com a camisa 10.

A entrevista girou em torno, basicamente, de sua expulsão da tribuna de honra de São Januário durante um Vasco e Ponte Preta, ordenada pelo então presidente do clube, Eurico Miranda. Me contive até o fim, mas depois da última pergunta acabei cedendo à tietagem. Lembrei de um jogo que ele não lembrou. Também pudera. O cara é o maior goleador da história do campeonato brasileiro, foi campeão e artilheiro em cima do Cruzeiro de Piazza e Dirceu Lopes, do Inter de Falcão e Manga e do Santos, de Pelé. Seria difícil mesmo que ele se lembrasse de um Vasco e Coritiba pra cumprir tabela, no Maracanã, em 1987.

Não tinha nem cinco mil pessoas no estádio e o Vasco fez 1 a 0, com Romário. Mas o Coritiba virou no segundo tempo e a torcida começou a encher o saco, primeiro do Romário, que foi substituído; depois, do Roberto.

Ao ritmo de Roberto, Corta Essa – música que o Jorge Ben fez quando ele resolveu voltar do Barcelona pro Vasco, depois de quase acertar com o Flamengo –, uma facção de torcida organizada começou a ironizar a idade já um tanto avançada de nosso ídolo. Ficou nisso até os 41 do segundo tempo, quando ele pegou uma sobra dentro da área, mais ou menos da marca do pênalti, e tocou de chapa no canto, entre uns dezoito defensores do Coritiba. Aos 45, Paulo Roberto deu um cruzamento da direita meio balão, no segundo pau. O goleiro foi nela sem muita chance de pegar, mas certo de que a bola sairia por trás dele. De fato, ele pulou e não achou nada, mas Roberto resolveu conferir. Chegou a tempo de deixar a chuteira direita pra bola quicar nela em vez do gramado, e tava quase na linha de fundo, do lado da trave. A bola tocou no lado externo do pé do Roberto e balançou o meio da rede, no alto.

Hoje Roberto já acumula uma experiência de 15 anos como político, primeiro como vereador e logo depois como deputado estadual, cargo para o qual já foi reeleito três vezes. Está, portanto, perfeitamente enfronhado na política estadual do Rio de Janeiro. Na madrugada de sábado, foi eleito presidente do Vasco, com o apoio tanto do mesmo movimento inexpressivo do advogado à espera quanto do governador do estado. Não se lembra da virada sensacional em cima do Coritiba, mas certamente guarda bem na memória o gol do lençol e as taças, como as de 77, com a Barreira do Diabo, e de 87, quando participou do gol de título mais bonito da história dos cariocas, ao entregar a bola para Tita marcar. E é lógico que nunca vai esquecer que, no último campeonato de sua carreira, foi campeão invicto e levantou a taça em casa, em São Januário, ele que, além de ser o maior artilheiro da história do estádio, é também o maior goleador do campeonato carioca, ainda.

Se a maneira como Roberto foi alçado à Presidência do Vasco não combinou muito com esse negócio de ética e respeito ao clube, pelo menos sua eleição realçou o pioneirismo da Cruz de Malta. Primeiro clube a aceitar negros, pobres e mulatos no time; primeiro a ter um estádio decente; dono do primeiro título do futebol brasileiro no exterior; primeiro a levantar a Copa do Mundo, através do capitão que virou estátua; primeiro campeão carioca do Maracanã; e a primeira camisa de Pelé no Maior do Mundo, o Vasco é agora, também, o primeiro clube brasileiro a ser presidido por um ídolo.

Nesse momento, o Roberto presidente é uma incógnita, mas pelo menos é uma incógnita histórica.

Abaixo, a entrevista.

Revista Istoé Gente, edição 131, de 4 de fevereiro de 2002

"Não é uma coisa que eu diga 'tenho que ser presidente do Vasco' e vá às últimas conseqüências."(Foto: Leandro Pimentel)

Na tarde do domingo, 20, o deputado estadual pelo PMDB, Carlos Roberto de Oliveira, 47anos, assistia ao jogo do Vasco contra a Ponte Preta, no Rio de Janeiro, pela abertura do torneio Rio-São Paulo. Convidado pelo presidente de honra do Vasco, Antônio Soares Calçada, o deputado levou o filho Rodrigo, 9 anos, para sentar-se na tribuna de honra do estádio de São Januário. No intervalo do jogo, pai e filho tiveram de deixar a tribuna. Tinham sido expulsos a mando do presidente do Vasco, o deputado federal Eurico Miranda, que ignorara o convite de Calçada e alegara que os dois precisavam de credenciais para estar lá.
O episódio seria apenas mais um gesto autoritário do polêmico cartola vascaíno se o deputado estadual expulso não fosse Roberto Dinamite, principal ídolo e maior artilheiro da história do Vasco da Gama, com mais de 750 gols marcados nos 20 anos em que defendeu a camisa 10 do clube. Antigo aliado de Eurico, em quem votou para presidente do Vasco, em 2000, o ex-craque não tem dúvidas de que desagradou o cartola ao criticar a decisão de aposentar a camisa 11 do Vasco, em homenagem a Romário, anunciada por Eurico três dias antes da expulsão da tribuna de honra. Roberto disse que não tinha dinheiro pra dar ao clube, numa alusão à declaração de Eurico, que justificou o gesto com o argumento de que Romário ajudava o Vasco dentro e fora de campo. O pai de Luciana, 27, Tatiana, 23, Roberta, 12, e Rodrigo pensa em se candidatar à presidência do clube e sabe quem será seu principal adversário. “A eleição é só em 2003, mas o Eurico está criando uma situação ruim pra ele .”

Você esperava ser expulso da tribuna do Vasco algum dia?
Não. Estava chegando no Vasco e ia para o lugar onde eu sempre fico, um pouco atrás da tribuna. Aí o seu Calçada me chamou. Pra mim é indiferente, mas, até por uma questão de educação, aceitei o convite. Quando sentei, o Calçada falou que uma funcionária ficou surpresa com o convite que ele tinha me feito, que tinha uma ordem pra eu não ficar ali. Quer dizer, já existia uma ordem.

Porque ninguém no estádio impediu essa expulsão?
Quase ninguém percebeu. Estava no bar, numa área reservada da tribuna, quando fui informado que tinha de sair. Se eu fosse um cara meio sacana, que quisesse aparecer, poderia chutar o balde e gritar para a torcida que o presidente do Vasco estava me expulsando. Todo mundo iria ficar sabendo e ia criar uma confusão. Poderia ter uma reação. Também podia dizer que não iria sair, mas não é o meu perfil.

Como seu filho reagiu?
Pensei que ele não tivesse percebido, mas depois ele falou pra mãe (Liliane, 36, mulher de Roberto): “Pô, mãe, eu e meu pai pagamos o maior mico. Fomos sentar lá na tribuna e o cara mandou a gente sair”. Foi isso que me deixou mais mexido em toda essa história. Meu filho se chama Rodrigo Dinamite, tá registrado esse nome. E, pode acontecer ou não, mas ele tem o sonho de virar jogador do Vasco. Ele sempre fala comigo, até me sacaneando: “Pai, você fez só 750 gols? Vou fazer muito mais”. Ele joga bola no colégio e leva todo o jeito. Pode até ser coisa de pai coruja, mas ele é observador. Vê jogos na televisão e pega muitas coisas dos caras fazendo gol, o jeito e tal. Pegou muita coisa do Edmundo, e até do Romário.

Acha que foi expulso por causa das críticas ao fim da camisa 11 do Vasco?
Acho que sim. A história da camisa me magoou, mas entendi que foi uma posição puramente pessoal do Eurico, que hoje é presidente do Vasco. Aí mora o problema da coisa. Existem momentos em que o presidente do clube tem de fazer o melhor para o clube e não o que ele, Eurico, acha que é o melhor, e de repente não é. Ele pode até achar que o Roberto não representa tanto para o clube quanto o Romário, é um direito dele. Mas é uma pessoa que está falando isso, e ele não pode falar pelo clube.

Quem é mais importante para o Vasco? Roberto ou Romário?
Nem questiono isso porque coloco o Vasco em primeiro lugar. Até reconheço que hoje a fase é do Romário. A história do futebol é essa. Tive o meu período, assim como o Ademir (Ademir de Menezes, artilheiro da Copa do Mundo de 1950 e ídolo do Vasco nos anos 40 e 50) teve o dele e outros ídolos também. Só questiono a parte administrativa, de como um clube chega numa situação em que, segundo os jornais, tem uma dívida de R$ 9 milhões com o Romário.

O que achou da CPI do Futebol no Senado e das acusações de que Eurico Miranda teria desviado dinheiro do Vasco?
Existiu a CPI e é lógico que as denúncias têm de ser investigadas, e o Eurico também tem o direito de se defender. Mas ele devia ser transparente na hora de falar dos problemas do Vasco, de quanto o clube deve e a quem, já que ele se mostra tão transparente, direto e objetivo quando coloca a opinião dele. Ninguém sabe qual a real situação do Vasco hoje.

No ano passado, você chegou a apoiar Eurico Miranda durante as investigações da CPI do Senado. Por quê?
Sempre disse que ele tem o direito de se defender, mas não sou contra a CPI. Participei de uma manifestação junto com ele contra a entrada da Polícia Federal em São Januário, da forma violenta que foi, invadindo o clube pra pegar documentação. Logo em seguida teve um manifesto que reuniu os atletas, as crianças que fazem esporte no Vasco. Disse na época que a imprensa também deveria dar destaque ao trabalho que o clube fazia.

Pensa em presidir o Vasco?
Penso. É um sonho, uma vontade. Agora isso pode acontecer no ano que vem, mais tarde, ou pode não acontecer. Não é uma coisa que eu diga “tenho que ser presidente do Vasco” e vá às últimas conseqüências. O Vasco pra mim está acima. Hoje não estou de lado nenhum. Não é em cima do muro, estou acima dessa coisa toda. Não quero mais polêmica com meu nome.

Mas você está magoado com o Eurico?
Claro que eu estou magoado com o Eurico, sem sombra de dúvida.

Nesse caso, aceitaria entrar numa disputa eleitoral contra o atual presidente do Vasco?
A eleição do Vasco é em 2003, e clube é resultado. Hoje já tem um apelo maior por mudanças, mas só vou pensar nisso seriamente a partir do ano que vem. Até porque agora as pessoas estão levando muito para o lado emocional. Dependendo das pessoas que estiverem na oposição, se for uma maioria com peso político dentro do clube, e se essa maioria puser a cara pra fora e participar do processo, aí eu aceito.

Aceitaria um pedido de desculpas do Eurico Miranda?
Isso nunca vai acontecer. O Eurico hoje está num processo em que ele acha que é o dono do mundo. É lamentável. Fui ídolo do Vasco durante 20 anos e não tem uma pessoa no clube, do porteiro ao presidente, que diga que o Roberto não o cumprimentou, não o tratou bem. Essa é a minha formação. Não foi um ano ou dois, foi uma vida ali dentro. Acho que o Eurico deveria respeitar a minha história no Vasco.


Acredita que o caminho para a mudança do futebol no Brasil passa pelos ex-jogadores, como você, Sócrates, Zico ou Reinaldo?
Não descarto essa possibilidade. Seria importante ter os atletas mais presentes, mas só isso não basta. Tudo é política. Essa estrutura do futebol está aí há muito tempo. Você pode mudar os homens e depois discutir como muda o futebol. Mas primeiro é preciso buscar espaço dentro das federações estaduais. É preciso construir uma base política, porque uma proposta radical, para mudar tudo, vai sempre encontrar muitas dificuldades.

Você será candidato à reeleição como deputado estadual?
Sou candidato. E já estão dizendo que o Romário ingressou no PPB (partido de Eurico Miranda). Cada hora aparece uma coisa nova.

Acha que o Eurico pode lançar o Romário candidato para tirar votos seus?
O Romário já deu entrevista dizendo que não é candidato, mas pode até ser. Espero qualquer coisa.