domingo, 29 de junho de 2008

MUDANÇA DE RUMO

Devido à guinada radical na trajetória do meu clube, depois do último embate entre os dois caras da foto aí de cima, peço licença para, neste e nos próximos dois textos*, tratar de um assunto apenas, que para o blog é tão importante quanto a vida: Falaremos de Vasco.

Tentarei lembrar das entrevistas feitas com os dois protagonistas dessa eleição histórica, cujo resultado saiu na madrugada de ontem. A primeira delas aconteceu no segundo semestre do ano 2000, a poucos dias de Eurico Miranda realizar, finalmente, o sonho de assumir a presidência do Vasco, depois de quase vinte anos como vice de um sujeito chamado Antônio Soares Calçada, português que sempre teve mais poder que ele dentro do clube.

Eurico era deputado federal na época, fora eleito com votação enorme em 1998, quando o Vasco montado por ele conquistou a Taça Libertadores da América no ano de seu centenário. Dois anos depois, desfrutava ainda do dinheiro do Bank of America, que jorrava no clube graças a acordo costurado por ele. Com a grana o Vasco foi bicampeão da Liga Sul-Americana de basquete (campeão também da Liga Sul-Americana feminina), ganhou mais dois campeonatos de campeões sul-americanos e conquistou aquele que, até hoje, é o maior feito do basquete de toda a América Latina, em termos de clube, ao ganhar o Mundial Fiba em Milão, batendo os campeões asiático e europeu. Com a conquista, o Vasco tornou-se o único clube de seu continente a disputar um jogo oficial contra uma equipe da NBA, no caso o San Antonio Spurs, mais especificamente o maior San Antonio Spurs da história, aquele das Torres Gêmeas, e o resultado do jogo, lógico, que se foda. Foi também bi da liga nacional, a primeira delas ao vencer o Flamengo na final, naquele ano que viria a ser o mais vitorioso da história do clube.

Em 2000 o Vasco foi campeão brasileiro de basquete masculino e feminino, com Nenê e Janeth, venceu a Liga Nacional de Futsal com Manoel Tobias, o Troféu Brasil de natação com Gustavo Borges e consolidou sua hegemonia no remo. No futebol, tornou-se o único time, até hoje, a conquistar o campeonato brasileiro e um título continental ao mesmo tempo. Naquele momento, na cabeceira daquela mesa enorme de reuniões, na ante-sala de seu luxuoso gabinete, já de presidente, Eurico estava no auge.

Calçada, o adversário mais poderoso, comerciante que resolveu se unir a ele após vencê-lo pela segunda vez nas urnas, em 1985, já dava sinais de cansaço há tempos. E sua saída progressiva de cena conferiu ao aliado um poder que o fez errar a mão algumas vezes.

Em 90, por exemplo, uma interpretação maquiavélica do regulamento, só pra tirar vantagem, como se o Vasco precisasse disso, fez o time entrar em campo na final do carioca sem saber direito se podia perder ou não, e depois dar uma volta olímpica que até hoje não dá pra engolir. Em 99, a dois dias do início das quartas-de-final do campeonato brasileiro, Eurico tirou do time o maior jogador do Brasil na época, no ápice de sua forma, porque ele falou não sei o quê pra não sei quem no vestiário. No mesmo ano, já tinha rescindido o contrato do artilheiro mais competente do Vasco a duas semanas da decisão do título carioca com o maior rival.

Mas de vez em quando acertava na truculência, ou alguém acha que o Vasco iria virar aquele jogo contra o Palmeiras, o 4 a 3, se fosse o Oswaldo ‘Calça Enfiada’ Oliveira – demitido por ele três dias antes do jogo – no lugar do Natalino?

Eurico também foi responsável pela oficialização do primeiro título sul-americano do Vasco, na Conmebol, e por três vezes levou a melhor ao disputar o passe de ídolos consagrados com o maior rival. A primeira foi com o próprio Roberto, que, mal no Barcelona, vinha sendo assediado pelo Flamengo. O cartola vascaíno voou para a Espanha e trouxe o ídolo de volta a São Januário.

Com Bebeto, que em 89 formava com Romário a maior dupla de ataque do mundo, na seleção, o Flamengo endureceu na negociação pra renovar contrato. Quis pagar menos e estipulou o passe do craque num preço fora da realidade do futebol nacional. Diretor da CBF na época, Eurico negociou pessoalmente com Bebeto e o clube depositou a quantia pedida pelo rival na federação. No mesmo ano, com o ex- rubro-negro no time, o Vasco foi campeão brasileiro.

Depois o Flamengo resolveu brigar com Romário, e no início do ano 2000 ele apareceu em São Januário, pra também ser campeão brasileiro no mesmo ano. Nessa decisão – 3 a 1 sobre o São Caetano, inapeláveis –, Eurico pôs em prática uma das melhores idéias de sua vida e começou a incomodar quem não pode ser incomodado. Seguiram-se então denúncias diárias contra ele na imprensa em geral, sobretudo Jornal Nacional, e em seu primeiro ano de mandato o presidente do Vasco foi processado por impedir que a Polícia Federal entrasse na sede do clube. Sofreu ainda outros reveses, como o sumiço da grana do Bank of America.

Aí o time parou de ganhar, e nos últimos cinco anos venceu apenas um campeonato carioca. As equipes de basquete foram desfeitas, a de futsal também, e o esporte amador ficou meio baleado. Sem dinheiro, Eurico teve o mérito de manter o Vasco como o clube de melhor estrutura da cidade, e um dos melhores do País. Construiu um hotel-concentração dentro de São Januário e cuidou bem do estádio. Mas não conseguiu montar mais nenhum grande time.

A cadeira de deputado ele só manteve até 2002, e antes de perdê-la cometeu o maior erro político de seus 41 anos de Vasco. Num jogo morno em São Januário, expulsou Roberto Dinamite da tribuna de honra do estádio. Ainda na confiança do poder, ultrapassou os limites do bom senso e deu aos inimigos, gente à beça, a munição que faltava. A expulsão motivou a segunda entrevista, feita com o Roberto alguns dias após o episódio, quando ele já falava como candidato a presidente do Vasco.

Ontem, depois de sete anos sob bombardeio constante, de ações na Justiça e matérias na imprensa, Eurico caiu. Venceu a primeira eleição, em 2003, por diferença de cento e poucos votos, e na segunda, em 2006, quando algumas ações da oposição começaram a clarear as coisas, aumentou a vantagem, para quatrocentos e poucos votos. Mas dos ataques na Justiça não conseguiu se livrar, graças a um erro grosseiro, difícil de acreditar.

Numa das ações que questionavam a eleição, o advogado do Vasco esqueceu de depositar as custas do processo, coisa de 20 e poucos reais. O caso foi julgado à revelia e a sentença foi a anulação do pleito que reelegeu Eurico, sem prova alguma da suposta fraude além de uma perícia paga pela oposição.Seria coisa fácil de contornar, se os adversários não contassem com a chancela de alguns órgãos do governo estadual, o TRE entre eles.A eleição foi remarcada e Roberto venceu com o menor número de votos desde mil oitocentos e alguma coisa. No Conselho, onde a diferença prometia ser de dois ou três votos, a escolha foi feita através de urnas eletrônicas e só pôde participar quem estava numa lista elaborada, oficialmente, pelo TRE. A situação ficou sem 21 conselheiros, impedidos de votar, e mesmo com eles perderia o pleito, por 11 votos.

Na semana da disputa, o governador do Rio de Janeiro enviou cartas a conselheiros do clube pedindo o voto em Dinamite. E no auge, lá em 2000, Eurico disse na entrevista o que acabou virando o título:

Sou mais importante do que o governador.

Podia até ser, mas só se o governador não fosse vascaíno.

Ainda ontem, menos de 24 horas depois das eleições que o derrubaram, Eurico esteve em São Januário, para assistir pela última vez um jogo do Vasco do gabinete da presidência. O time venceu. Quatro a dois.

* a seguir, no prazo que der, os relatos das entrevistas com Roberto e Eurico.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A ENTREVISTA INTIMIDADA

Situação difícil. De um lado, a pauta da seção chamada Testemunhas do Século, onde a revista dava duas páginas para pessoas de mais de 85 anos – algumas conhecidas, outras nem tanto – discorrerem sobre as lembranças do século que terminava. Do outro, entrevista com Jamelão para preencher as tais duas páginas, marcada depois que o assessor da gravadora (o cara tava lançando disco novo) repetiu quatro ou cinco vezes a advertência de que ele, o Jamelão, só queria falar do disco, e disse num certo tom de cumplicidade, como quem diz... Você conhece a fama do cara, né?

As duas páginas da Testemunhas do Século eram um festival de memórias, a maioria da infância e juventude, que costumavam ilustrar as mudanças ocorridas entre 1901 e o ano 2000 ao longo da vida do entrevistado. Só que o entrevistado era o Jamelão, que só queria falar do disco. E eu não ia ser otário de pedir pra ele se lembrar de quando vendia jornal na rua; ou pior, de quando imitava Orlando Silva, Ciro Monteiro e cia. pra ganhar a vida.

Pra isso existia a pesquisa, que ainda era palpável, pesada, uma apostila cheia de papel dentro. Vi muita coisa, foi útil à beça na hora de escrever a matéria, mas pra fazer a pauta, pra elaborar as perguntas a serem feitas ao Jamelão, não usei nada daquilo. Fui determinado a falar do disco, que eu não sou besta.

Marcamos num hotel da Rua Paissandu. Cheguei ele já tava lá, sentado no restaurante, recostado na cadeira, copo d’água na frente, olhando meio que pra baixo, enquanto dava entrevista ao repórter de um jornal, que só queira saber do disco. Pra piorar, o tempo seria curto, quarenta minutos no máximo. Era uma série de entrevistas aquilo. O cara tinha resolvido emendar uma na outra num dia só, pra falar do disco.

E foi do disco que falamos, basicamente, com uma pergunta ou outra sobre as diferenças que o processo de gravação sofreu ao longo dos anos. Jamelão respondeu a tudo sem alterar muito a carranca tradicional. Nos despedimos com um aperto de mão, eu sorrindo, ele não, e voltei intacto para a redação, sem ter tomado nenhuma descompostura. Só depois percebi que nem do Vasco tinha perguntado nada, logo pra ele, grande vascaíno, fã de Fausto, Jaguaré e Oitenta e Quatro.

O resultado da entrevista tá aí embaixo, e é claro que falei do disco, com detalhes. E eu sou doido, por acaso?

Revista Istoé Gente, edição 52, de 31 de julho de 2000

“Tem outros que perderam a voz, mas felizmente Deus ainda me permite cantar”.

São 87 anos de idade e uma voz que permanece como uma das mais potentes da Música Popular Brasileira. Conhecido há anos por embalar os desfiles da Mangueira, a mais badalada das escolas de samba do Rio de Janeiro, o cantor Jamelão continua na ativa fora do carnaval. A idade e um certo desânimo confesso em relação ao momento atual da música no País não o impediram de lançar mais um disco. O novo CD, Por Força do Hábito, vem se juntar aos outros 40 de sua carreira como crooner e intérprete de samba canção, iniciada no auge das emissoras de rádio, durante os anos 40.
Nascido no dia 12 de maio de 1913, o menino José Bispo Clementino dos Santos começou a usar a voz para viver muito cedo. Aos 10 anos, era conhecido como o moleque Saruê e já gritava pelas ruas vendendo jornais nos subúrbios cariocas. A identificação com a música começou nos anos 20, quando José Bispo conciliava o trabalho na fábrica têxtil Confiança com apresentações noturnas como cantor e tocador de cavaquinho no antigo Clube Cajuti, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio. A fábrica, que ficava no mesmo bairro, era a mesma citada por Noel Rosa em Três Apitos.
Antes de conquistar espaço nas rádios, o cantor iniciante se virava como divulgador de sambas, profissão típica da época. No início dos anos 40, muitos compositores testavam suas músicas em cabarés e gafieiras. Para isso, contratavam um cantor desconhecido que interpretava as composições. Caso as músicas agradassem ao público, eram entregues para cantores famosos gravarem. Durante oito anos, Jamelão trabalhou nesse ofício, quando imitava os maiores cantores da época, como Orlando Silva e Ciro Monteiro, até conseguir ser contratado na antiga Rádio Clube do Brasil.
O apelido ele ganhou por acaso, antes de começar a cantar. Numa gafieira, José Bispo foi vítima de uma brincadeira dos amigos, que pediram ao gerente para chamar o ainda aprendiz de cantor ao palco. Sem saber o nome do futuro intérprete, o gerente o apresentou como Jamelão (pra quem não sabe, uma fruta completamente preta). O apelido pegou e, a partir daí, o nome José Bispo começou a ser esquecido. Da época áurea do rádio, o cantor guarda boas lembranças. “Você gravava um disco, entregava na rádio, ia embora e eles tocavam”, conta. “Hoje, se você não tiver um bom dinheiro no bolso, isso não acontece”.
Paralelamente à vida de cantor de rádio e boates, Jamelão começou a fazer história na Mangueira, da qual passou a fazer parte aos 14 anos. O cantor começou a desfilar na escola em 1933, primeiro na bateria, tocando tamborim e pandeiro num tempo em que ainda não existia samba-enredo. Depois, na década de 50, Jamelão assumiu o posto de puxador de samba oficial da Mangueira, que ocupa até hoje. Naquela época, a Avenida Marquês de Sapucaí ainda não era o palco dos desfiles, que eram realizados na Praça Onze, também no centro do Rio de Janeiro. Sem os microfones e toda a aparelhagem de som dos carnavais de hoje em dia, o puxador da escola levava o samba no gogó, às vezes com o auxílio apenas de um megafone.
No cenário musical, outra diferença apontada por Jamelão foi a inversão dos papéis do cantor e do compositor com o passar do tempo. “Antigamente, o compositor procurava o cantor para ter suas músicas gravadas”, lembra o intérprete que imortalizou sucessos de Ary Barroso e Lupicínio Rodrigues, entre outros mestres do samba. “Hoje, o cantor é que procura o autor, mas nem sempre consegue a cessão de direitos para a gravação das músicas”, diz. “Os compositores querem cantar suas próprias canções”. O resultado disso, na opinião do cantor, é a falta de renovação na música brasileira. “Até pode ter gente hoje comparável ao pessoal da antiga, como Cartola e Ismael Silva, mas ninguém repara porque tem um monte de gente cantando sempre a mesma coisa. Ninguém quer arriscar, sair do filão”.
Para fugir do filão do pagode e do sertanejo, Jamelão continua apostando no samba-canção, gênero que nunca abandonou. No novo disco, ele canta doze músicas de um autor desconhecido, Alberto Gino, além de uma parceria com Luís Antônio Xavier, e outra de Anselmo Mazzoni com Victor Hugo. “Procurei gravar um disco novo. Quero que as pessoas ouçam e analisem”. O cantor só não vai se apresentar como gostaria, acompanhado da orquestra de 20 músicos que participou da gravação do disco. “Hoje custa muito caro se apresentar com orquestra. Antigamente era mais fácil”, diz o intérprete, sem esconder o desânimo.
Casado há 50 anos com Delice e pai de Joceli, 48, Jamelão continua morando no apartamento de Vila Isabel e, por enquanto, nem cogita a possibilidade de se aposentar. “Enquanto eu puder cantar e continuarem me chamando, eu canto”, afirma. “Tem outros que perderam a voz, mas felizmente Deus ainda me permite cantar”.

*Jamelão morreu anteontem, aos 95 anos. Que São Pedro não o chame de puxador de samba, como eu fiz na matéria....