sexta-feira, 26 de setembro de 2008

NO SALÃO DE BELEZA

Rua Figueiredo Magalhães, no meio da tarde de um dia de semana. A Copacabana barulhenta de sempre, carro pra tudo quanto é lado, gente se esbarrando na calçada e uma passagem bem estreita, entre um botequim e uma drogaria. Depois uma escada, também espremida entre as paredes, e no fim dos vinte degraus de concreto, a porta, com aquele vidro de área de serviço e o nome do local em tinta vermelha: Salão de Beleza Bezerra da Silva.

Atrás da porta, debruçado no balcão da entrada, o próprio. Calça preta, camisa social azul de manga curta e a boina xadrez. Conversava com a mulher, mulata de seus 50 anos que, com todo o respeito, poderia muito bem ter trabalhado com Sargentelli na juventude. Era ela quem comandava o salão, onde o único espaço livre, sem aquelas cadeiras de cabeleireiro, era a distância entre a porta e o balcão, dois metros no máximo. Bezerra arrumou dois banquinhos de plástico, daqueles de piscina, e a entrevista foi ali mesmo, interrompida algumas vezes pelo abrir e fechar da porta ao lado.

Na carona do salão de beleza, a matéria enveredou pelo lado menos conhecido do cara, que ele tocava trompete, que quase tinha sido advogado e outras coisas mais, até descambar na última surpresa: a conversão à igreja evangélica. Mas sem fanatismo, como o próprio fez questão de frisar, ao contar a resposta dada a um repórter que o entrevistara sobre isso.

O cara perguntou se ele, Bezerra, daria a outra face a quem lhe desse um tapa na cara, e ao responder, de pronto, o cantor revelou um versículo do Evangelho Segundo Bezerra da Silva (royalties: Marlos Mendes).

Se você me der um tapa na cara e ficar na minha frente, eu vou é te sentar o dedo.

Parava por aí o respeito aos preceitos cristãos do malandro criado no Cantagalo, o Morro do Galo, como o cara chamava o lugar. E se revelou tanta coisa na entrevista que ajudava a desconstruir a imagem de “cantor dos bandidos”, Bezerra não fez a menor questão de ser ver livre dela. Confirmou que era malandro, sim, mas do jeito dele, e pra definir cantou, sentado no banquinho de plástico, na entrada do salão de beleza, o samba de um tal Marquinhos PC, um dos compositores que ele gravava e nem sabia quem era.

A letra é a seguinte:

Malandro é o cara que é considerado
Onde chega é muito bem chegado
Num ponto de esquina, na mesa de um bar

Malandro é o cara que não faz asneira
Acorda cedo na segunda-feira
E sai pro batente pra ir trabalhar

Malandro é o sujeito que é bem informado
E na sociedade sabe muito bem onde é seu lugar
Malandro não é batedor de carteira
É um rapaz decente que leva a vida a cantarolar

Malandro é o cara que gosta de samba
Só freqüenta onde tem gente bamba
E faz de tudo para agradar

Malandro é o cara que venceu na vida
E sem fazer intriga
Tem muitas verdades lindas pra contar

Malandro é o supra-sumo da decência
E pra você que não sabe
Malandro é sinônimo de inteligência


A matéria abaixo vem com uma ligeira modificação no texto publicado. Escrevi no lead que Bezerra arranhava umas notas no trompete, mas a editora, criatura de bom coração, deve ter achado ofensivo ao malandro e botou lá, a um centímetro da minha assinatura, que Bezerra da Silva tocava trompete lindamente. Pelo menos nenhum amigo meu leu a matéria, graças a Deus. O texto a seguir vem como se deve, porque lindamente, no lead, nem se fosse o Miles Davis.

Revista Istoé Gente, edição 147, de 27 de maio de 2002

“Nunca bebi, não fumo maconha nem cheiro pó. Também não ando de madrugada. Mas essas realidades ninguém nunca fala”

Ele estudou violão clássico, arranha umas notas no trompete, foi percussionista da orquestra da Rede Globo durante oito anos, por onde se aposentou, trabalhou como assessor jurídico e freqüenta uma igreja evangélica três vezes por semana. É difícil acreditar, mas é assim a vida do sambista e ícone da malandragem carioca, Bezerra da Silva, 65 anos, famoso pelas letras que falam do cotidiano das favelas com a naturalidade de quem conhece o assunto de perto.
Chamado de cantor dos bandidos, graças aos sambas que tratam do mundo do crime e aos inúmeros shows em presídios ao longo da carreira, Bezerra não se incomoda com a fama de malandro, mas faz questão de mostrar seu outro lado. “Nunca bebi, não fumo maconha nem cheiro pó. Também não ando de madrugada. Mas essas realidades ninguém nunca fala”, diz.
Os hábitos combinam com a religião do sambista, que há seis meses freqüenta os cultos na Catedral Mundial da Fé. “Vamos lá domingo, segunda e terça. É rapidinho. Tudo que fala em Deus pra mim está bom, mas sem fanatismo”, afirma o novo evangélico. Mudança de comportamento pode até ser, mas trocar o repertório tradicional por músicas evangélicas está fora de cogitação, avisa o sambista. Ele não descarta a possibilidade de gravar um disco religioso, mas só se fosse para ganhar dinheiro. “Se me chamarem, será por comércio, mas não preciso cantar em cima de Jesus Cristo para vender disco”, diz o cantor, que garante não fazer apologia às drogas com suas músicas. Segundo ele, “Malandragem Dá um Tempo” – maior sucesso de Bezerra, já gravado pelo Barão Vermelho e espécie de hino da turma da maconha –, por exemplo, é na verdade uma mensagem contra as drogas. “Ela fala do que pode acontecer com quem cai na droga. Alerta muito mais que qualquer campanha”, acredita o sambista.
Dona do salão de beleza batizado com o nome do marido, Regina, 50 anos, foi a responsável pela conversão de Bezerra. Juntos há 19 anos, os dois não são casados no papel. “Vai fazer 20 anos que ele está me enrolando”, diz a mulher, com ar resignado.
Lançando o 27o disco da carreira, A Gíria É a Cultura do Povo, Bezerra sai pela tangente ao responder se está rico. “Não estou morrendo de fome, mas fui roubado durante anos pelas gravadoras. Sou uma máquina de fazer dinheiro em perfeito estado. Sou feio, mas vendo disco”, afirma o cantor, que contabiliza cerca de dois milhões de cópias vendidas nos 27 anos de carreira, ele que aos 15 anos saiu de Recife, escondido num navio. “Fugi da fome. Se tivesse mais idade na época, seria do bando de Lampião”, conta.
Durante os quatro primeiros anos no Rio, dormia nas obras dos prédios que ajudava a construir. De operário passou a pintor de parede e foi morar no Morro do Cantagalo, em Ipanema. Foi a época em que se acostumou a ser preso, sempre para averiguação. “Sabia até onde era minha cela no xadrez”, brinca o sambista, que, apesar das 21 entradas na prisão, ostenta um “nada consta” na ficha criminal. A sina estimulou em Bezerra a vontade de conhecer o Código Penal, lido até hoje, nas horas vagas. Entre 1967 e 1973, foi assessor jurídico de um amigo advogado. Pai de três filhos do primeiro casamento, o cantor, que iniciou a carreira em 1958, tocando tamborim em gravações de Carnaval, nem pensa em parar. Continuará garimpando autores desconhecidos nos morros, responsáveis por 99% de seu repertório. “Sou um seguidor de Castro Alves. Ele fazia versos em prol dos escravos. Eu canto para o povo. Sou favela.” E nem liga se continuar sendo chamado de cantor de bandidos. “Pelo menos ando na cidade sem medo de ser assaltado.”