segunda-feira, 27 de outubro de 2008

NOTURNO DO ESTÁCIO

Não tinha outro começo pra matéria. Chego no apê onde Luiz Melodia dava um tempo (enquanto a casa dele em São Conrado era reformada) pronto pra entrevistar o cara. Pesquisa feita e aquela tensão ligeira, que sempre bate quando o entrevistado vale a pena. Aí ele chega na sala, cumprimenta o fotógrafo, olha pra mim e manda:

Ué, tem entrevista?

Tinha passado meio mal na véspera, tava com uma cara de cansado, e por algum motivo achou que faria apenas uma sessão de fotos, em dois pontos da cidade que ele freqüentava. Aí também fiz minha cara de ué e respondi, timidamente: Tem, né?

O cara aceitou na boa. Só pediu pra gente fazer a entrevista durante as fotos, sem essa de parar, sentar num canto, ligar o gravador... Concordei, mas a conversa começou bem antes de qualquer coisa, porque Melodia sugeriu um chope no bar embaixo do prédio dele, em frente à Globo, no Jardim Botânico.

Aliás, a entrevista começou antes, no elevador, quando o cara jogou por terra a propalada invencibilidade do Politheama, time de pelada do Chico Buarque. Disse que tinha levado um pessoal do Estácio pra jogar no campo do Chico e que Melodia e cia não tomaram conhecimento dos adversários. Acabamos com eles, garantiu o cantor, com certo ar de desdém. Meses depois, falando pra outra matéria com um titular absoluto do Politheama, Carlinhos Vergueiro, a versão foi outra. No sofá de sua casa, com aquela cara de goleiro argentino dos anos 70, o pai de Dora Vergueiro disse, entre risos, que Melodia só podia estar maluco, e pra ratificar sua declaração informou o placar da partida contra a galera do Estácio, algo entre 7 a 2 e 8 a 3, a favor dos donos da casa. Não há documentos que provem qualquer das duas versões.

Mas do chope passamos à sinuca do Humaitá, que o cara dizia freqüentar, embora garantisse que não jogava bem, ao contrário do futebol. E se um dia alguém quiser apostar dinheiro com um cara que freqüenta uma sinuca mas diz que não joga bem, que aposte.

A última parada foi num restaurante japonês, um que tem um pequeno lago com peixes dentro. Mas antes disso, no carro, Melodia me disse o que seria o abre da matéria se ela não fosse publicada numa revista de celebridades. O cara não ia ao Morro do Estácio, onde nasceu e foi criado, há algum tempo. E o pior: o cara tinha um enorme receio de ir lá. Tinha que avisar antes à família, pra saber se dava pra subir ou não. Em suma, pedir autorização. E quando Luiz Melodia precisa de autorização pra subir o Morro do Estácio, sei não, fica difícil à beça ser otimista.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 206, de 14 de julho de 2003

“Quando o bicho pega vai tudo pra minha casa. Outro dia uma sobrinha não podia subir o morro por causa de tiroteio. (...) É muito deprimente ver o lugar onde cresci daquele jeito. Me dá tristeza de chorar.”

“Vai ter entrevista?” A pergunta de Luiz Melodia, enquanto se preparava para as fotos, dava o tom do humor do cantor na quinta-feira 3, após uma exaustiva viagem para um show em Belém. Visivelmente cansado, livrando-se dos resquícios de uma forte dor de dente na véspera, Melodia não transparecia qualquer vontade de conversar. Puro engano. Num passeio por alguns dos pontos mais freqüentados pelo músico na zona sul carioca, o filho do falecido sambista Oswaldo Melodia falou da infância no Morro de São Carlos, no Estácio, centro do Rio, ao show marcado para a quarta-feira 9, no Canecão, em comemoração aos 30 anos de carreira.
No roteiro de Melodia, 52 anos, a primeira parada é na lanchonete ao lado do prédio no bairro do Jardim Botânico, onde está morando nos últimos meses, enquanto sua casa em São Conrado continua em obras. Chega o primeiro chope e começa o balanço da carreira. “Nunca abaixei a cabeça diante de propostas indecentes, de tentarem me levar para o lado comercial”, diz o compositor. “Negão como eu, saído do morro, tinha que fazer só samba. Cortei isso de imediato”, afirma, lembrando da fama de maldito que teima em persegui-lo. “Me rotularam assim porque nunca fui de abrir perna pra gravadora. Foi até melhor. Se não fosse o marginal e tivesse feito o que eles queriam, talvez não estivesse trabalhando até hoje.”
O autor de “Pérola Negra” não nega as origens. Em casa, no morro considerado o berço do samba – por ter abrigado a Deixa Falar, primeira escola de samba, fundada por Ismael Silva –, Melodia arriscou os primeiros acordes. Foi na viola de quatro cordas que atiçava o ciúme do pai. Quando Oswaldo não estava em casa, o único homem entre seus quatro filhos roubava a viola, até o dia em que o instrumento quebrou. “Meu pai chegou e escondi a viola num vão na parede, mas ela caiu”, lembra o compositor, que na época tinha 12 anos e não escapou da surra.
Do morro, ele conserva lembranças como o coral em que cantava com as irmãs, Marise, Vânia e Raquel, na igreja presbiteriana freqüentada pelos pais. “Lá percebi que cantava direito, mas preferia soltar pipa atrás da igreja”, confessa o compositor, que morou no São Carlos até 1973, quando lançou seu primeiro disco, Pérola Negra.
A vida tranqüila na favela faz parte de um passado distante. Para visitar as irmãs no lugar onde nasceu, Melodia tem de esquecer letras de sucessos seus, como “Estácio Holly Estácio”, e telefonar antes para saber se pode subir o morro ou se há tiroteio. “Hoje há rodízio no tráfico. Do pessoal que vende drogas no Estácio, só um ou dois são de lá”, conta ele, saudoso da época em que o poder bélico dos traficantes não era ostentado diante dos moradores. “Só os mais velhos andavam armados. Quando tinha tiroteio, era mais a polícia matando os caras, não tinha essa coisa de guerra entre eles.” O músico ainda sonha em conseguir dinheiro para tirar a família da favela. “Quando o bicho pega vai tudo pra minha casa. Outro dia uma sobrinha não podia subir o morro por causa de tiroteio”, diz ele, que reduziu as idas ao São Carlos. “É muito deprimente ver o lugar onde cresci daquele jeito. Me dá tristeza de chorar.”
Outro motivo de tristeza foram as mortes recentes de amigos como o produtor musical Almir Chediak, o compositor Itamar Assumpção e o poeta Wally Salomão. Freqüentador do Morro de São Carlos nos anos 70, Wally dirigia o show de Gal Costa em 1972. Incluiu “Pérola Negra” no repertório e deu o impulso definitivo para a carreira do cantor. Foi morando no antigo apartamento do poeta, em Copacabana, que Melodia começou a ter hábitos na Zona Sul, como o de freqüentar uma sinuca próxima ao estúdio Mega, onde grava e ensaia, no Humaitá. “Não jogo nada, mas freqüento”, diz. A relação com os restaurantes japoneses, outro de seus points prediletos, é mais próxima. O cantor tem até hashis (os tradicionais pauzinhos) próprios em dois restaurantes de São Paulo, mas não conseguiu convencer a mulher, Jane, dos benefícios da culinária japonesa. “Não como nada cru”, afirma Jane.
Da relação que dura 26 anos, nasceu Mahal, único filho do casal, de 24 anos, que passa os dias compondo raps e parece ter herdado a originalidade que fez do pai um músico difícil de ser rotulado. “As letras dele são sofisticadas”, analisa Melodia. Preocupado com a ansiedade do filho em mostrar a própria produção, o autor de “Magrelinha” ao menos tem experiência de sobra para dar conselhos. “Digo a ele pra ficar calmo, porque o pai demorou anos pra aparecer. E até hoje é difícil pra mim.”