segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O TEXTO

O que importava era o texto. Na correria do fechamento, jornal diário, tinha pouco mais de uma hora pra escrever a matéria, fruto de uma boa idéia do editor, que já tinha o título pronto: O Vale das Balas Perdidas. Era um texto grande de abertura e outro menor, sobre um colégio de freiras, fora alguma apuração de última hora, por telefone. E tava concentrado em tentar fazer tudo a tempo quando alguém me avisou que a matéria ia ter arte.

Tinha pouco mais de três meses de jornal, vindo de outro onde o departamento de arte limitava-se à mesa do legendário Pamé, um dos maiores cartunistas de Niterói e adjacências. Quando alguém me disse que a matéria ia ter arte, fiz aquela cara de Que bom! E continuei concentrado no texto. Não percebi que também era responsável pela arte nem quando o cara de lá veio me pedir pra dar um confere no que ele tinha feito.

Faltavam uns quinze minutos pro deadline e eu finalizava o texto de abertura, ainda. Fui lá bem rápido, olhei o mapa de relance, aprovei e voltei ao meu computador. A arte era responsabilidade da arte, o que importava pra mim era o texto, que consegui entregar a tempo.

No dia seguinte, me chama o editor, em pé, no meio da redação. Tinha língua presa, e tinha feito teatro na juventude. O esporro foi daqueles histriônicos, bem alto, porque no mapa da arte o Morro do Zinco ficava no Morro da Coroa, a Mineira ficava a léguas de distância da Rua Itapiru e o Morro dos Prazeres, de Santa Teresa, pairava atrás do cemitério do Catumbi, entre outros absurdos. Percebi ali o que ninguém tinha me dito antes, que o mapa era comigo, também. Na hora, achei melhor fingir que sabia disso do que confessar minha completa ignorância com relação a mais essa responsabilidade do repórter. Fiquei quieto e absorvi o esporro, porque, até então, o que importava era o texto, esse aí debaixo.

Jornal do Brasil, edição de 7 de novembro de 1996:

No Educandário Nossa Senhora de Nazaré, a diretora Eliete Fernandes da Silva diz que é comum a escola virar alvo dos traficantes durante a madrugada. "Já guardamos 80 cápsulas de balas que atingiram a escola nos últimos seis meses", conta.

O que o Sambódromo, o Centro Administrativo da Prefeitura, o edifício Balança Mas Não Cai e os circos que costumam se instalar na Praça Onze têm em comum? Para quem não sabe, ou ainda não percebeu, todos ficam na área mais atingida pelas balas perdidas, que ultimamente têm tirado o sono dos cariocas. Nas noites de ontem e anteontem, mais três pessoas foram baleadas no Catumbi, situado no vale das balas perdidas, aumentando para 62 o número de pessoas atingidas esse ano no Rio. Desse total, 14 estavam nos bairros do Catumbi, Estácio, Cidade Nova e Rio Comprido, que compreendem a Região Administrativa de Rio Comprido.
De acordo com a polícia, a guerra entre traficantes nos morros da área, que já dura mais de dois meses, tornou o local um dos pontos críticos da cidade, onde o tráfico não respeita nem as escolas. No Educandário Nossa Senhora de Nazaré, a diretora Eliete Fernandes da Silva diz que é comum a escola virar alvo dos traficantes durante a madrugada. "Já guardamos 80 cápsulas de balas que atingiram a escola nos últimos seis meses", conta.
Para piorar ainda mais a situação, a região do Rio Comprido é cercada por 15 favelas, que, de acordo com os dados do Instituto Municipal de Informática e Planejamento (Iplan) - baseados no censo de 1991 -, abrigam 25.699 do total de 82.344moradores dos 6,11 quilômetros quadrados da área.
Segundo o comandante do Primeiro Batalhão de Polícia Militar, coronel Jorge Siqueira, os constantes tiroteios entre traficantes nos morros de São Carlos, da Mineira, do Zinco, Querosene, Falet, Coroa e Fogueteiro - que formam o Complexo do Estácio - fazem com que os bairros do Estácio e, principalmente, do Catumbi, sejam os principais alvos das balas perdidas. "Sempre fizemos operações de rotina nesses locais, independente desse crescimento de casos de balas perdidas. Nos últimos meses, apreendemos quatro fuzis e uma grande quantidade de revólveres e pistolas na região", disse o coronel.
A guerra nos morros citados pelo comandante do 1o BPM envolve três quadrilhas. A primeira delas controla o Morro do Zinco e era liderada por Rogerinho, preso no último domingo por policiais da 6a Delegacia Policial (Catumbi). O bando de Rogerinho faz parte do Comando Vermelho e tem como aliada a quadrilha de Nélson Gabino, o Português, e Claudinho, que controla o tráfico no Morro da Mineira. Os dois grupos estão em luta aberta contra os rivais do Morro de São Carlos, chefiados por Adílson dos Santos Balbino e seu gerente, conhecido como Gangan. A proximidade entre os morros da área, praticamente colados uns nos outros, envolve todos na guerra.
Na noite de anteontem, o apontador do jogo do bicho Carlos Alberto Cardoso de Mendonça, de 52 anos, engrossou as estatísticas da violência na cidade ao ser baleado na perna direita quando voltava para casa, no Morro do Zinco. A 60a vítima de bala perdida no Rio este ano foi atendida no Hospital Souza Aguiar e liberada ainda na mesma noite. Em seu depoimento na 6a Delegacia, Carlos Alberto contou que foi atingido durante um tiroteio entre traficantes da favela.
Os meninos Rafael de Siqueira Silva, de 5 anos, e Clécio José Faria, 6, foram as últimas vítimas das balas na cidade. No fim da tarde de ontem, os dois brincavam na calçada da Rua Itapiru, no Catumbi, em frente ao número 1045, quando marginais passaram pelo local em dois carros, trocando tiros. Rafael foi atingido na região lombar e levado para o Souza Aguiar, onde está fora de perigo. Clécio foi baleado na perna direita e está internado, também fora de perigo, no Hospital da Amiu, em Botafogo.

domingo, 16 de novembro de 2008

HONÓRIO, O GURGEL - O EIXO

Ladeira de paralelepípedo em Santa Tereza, na saída do Goiabeira, se é que ele ainda existe. Carro em ponto morto, controlando no freio, porque assim é mais legal. Até que na última curva, já avistando o batalhão de choque, um barulho estranho, tipo Clock, avisa que algo aconteceu, e você sente isso imediatamente, porque o gurgel aderna ligeiramente para a direita.

O barulho seguinte é de maçarico, quando você faz a curva para a esquerda e atravessa o viaduto por baixo, e o som já parece de aparelho de dentista quando você percebe como é difícil manter o gurgel em linha reta, e como é quase impossível virar pra direita, pra onde ele tá adernado. Pára, sai, deita no asfalto e descobre que o eixo, aquele ferro que liga o pneu ao resto do carro, não tá ligado à roda. Tá balançando perto dela, tocando o pneu de vez em quando, mas ligado à roda, não tá não. O que a segura é, de um lado, o próprio eixo, que não deixa ela cair pra trás; e do outro o pára-lama rebaixado, que tira faísca do chão nas pontas.

Você está parado às três e pouca da matina numa área da cidade que um jornal já chamou um dia de vale das balas perdidas. E como conseguiu andar uns cinqüenta metros naquelas condições, pensa mui sensatamente: por que não sair de lá, atravessar o Santa Bárbara e deixar o gurgel são e salvo em frente à oficina do lado de casa?

Os amigos vão na frente em outro carro, devagar, para o caso de uma desistência no caminho, mas curva pra direita, em todo o trajeto, só tem duas. E a primeira, de acesso ao túnel, é ultrapassada sem problemas, graças à pista vazia em frente ao Frei Caneca, que permite uma linha reta em diagonal, pra dar as melhores condições à roda boa, da esquerda, de fazer a curva sozinha.

Depois linha reta no túnel, como o gurgel já sabia, e o barulho de aparelho de dentista começa a ser entremeado por alguns clocks, isso em frente ao Palácio Guanabara. A segunda curva pra direita, de acesso à Praia de Botafogo, é mais complicada, porque a rua é mais estreita, não permite a diagonal. Sinal aberto, o volante pesa barbaridade, quase não se mexe pra direita, mas o gurgel consegue completar a curva, de uns 120 graus, e finalmente embica o pára-choque na reta do viaduto que, mais quatro curvas pra esquerda e outro túnel, o deixará na porta da oficina de Seu Raimundo, em frente ao Rocha Maia, pertinho do Pinel.

Na manhã seguinte, a glória. Seu Raimundo coça os cabelos brancos, ajeita os óculos, olha a roda com cara de tragédia e, do alto da experiência de anos e anos consertando carro velho, pergunta, sem acreditar:

Você trouxe esse carro assim?