domingo, 14 de dezembro de 2008

SÉTIMO DIA

A esperança tinha acabado havia uns bons vinte minutos. Com 2 a 0 contra e nenhum dos resultados necessários acontecendo, a tragédia era inevitável. Mas sair do estádio era impossível. Um anjo exterminador qualquer o impedia, o mantinha de pé, em cima da cadeira social, como muitos que também não conseguiam deixar o local, já meio vazio.

Nos minutos finais, esqueceu o jogo e decidiu observar só o xará em campo. Queria ver a reação dele com o apito final. Uma espécie de homenagem, já que, sem vontade de gritar porra nenhuma, mal acompanhou o Ah! É Edmundo! entoado perto do fim da partida. O time estava rebaixado, mas a homenagem era válida, porque era o último jogo da carreira do cara e porque o que ele fez em 1997 é para ser reverenciado em qualquer circunstância, não importa um Mundial perdido, muito menos uma Copa do Brasil. E com o rebaixamento consumado, Edmundo cobriu o rosto com a camisa e, de cabeça baixa, começou a andar na direção do vestiário, para logo ser encoberto por um enxame de jornalistas, como na conquista daquele Brasileirão antológico.

E nem depois disso ele conseguiu sair do estádio. Ficou em pé nas cadeiras por uns cinco, dez minutos, observando colegas de sofrimento como o garoto de dezesseis anos, no máximo, que usava uma dessas camisas retrô, do time de 87, o que o fez lembrar que ele tinha uma camisa igual àquela no armário, com a diferença que a dele não era retrô.

O garoto fazia cara de dor e não chorava. Estava entre os abnegados que ainda conseguiam gritar o nome do time, que ainda tinham forças pra dar provas ostensivas de seu amor pelo Vasco. Mirrado, sozinho, chegou a berrar contra quatro sujeitos umas oito fileiras de cadeiras acima dele, que faziam parte de outra leva de torcedores, a dos que preferiam xingar o time inteiro.

Flamenguistas! Flamenguistas! Gritava o moleque mirrado, com a camisa de 87, e era tão improvável uma porrada entre ele e os quatro adultos revoltados que estes, mesmo ouvindo o garoto muito bem, preferiram nem olhar pra ele, que às vezes batia palmas ironicamente e falava, alto ainda: Isso mesmo! Xinga o Vasco mesmo! Flamenguistas! E nisso ele teve a impressão que o garoto já chorava, mas não ficou pra conferir.

Saiu de cima das cadeiras e passou a caminhar a esmo pelas sociais. A cabeça latejava ligeiramente. O time, bicampeão sul-americano, tetra brasileiro, único dos grandes do país a começar de baixo, voltava à segunda divisão 86 anos depois de subir pela primeira e única vez, quando conquistou o campeonato carioca em sua estréia na competição, com um time de negros, pobres e mulatos, que desbancou os principais adversários – os três repletos de filhinhos de papai bem nascidos em suas hostes –, o que garantiu ao Vasco, graças a Deus, três vitórias nos três primeiros confrontos da história com os outros grandes da cidade.

Mas nada disso consolava naquele momento. Apoiado na grade entre a social e o gramado, ele ainda acompanhou o resgate de um idiota que fingiu que tentava se matar, sem noção de que poderia ter morrido mesmo com aquela brincadeira estúpida, de ficar pendurado na marquise do estádio, e que chegou rindo no hospital, andando, depois de ser salvo pelos bombeiros. E ele andava também, de um lado para o outro. Chegou perto do portão principal mas não conseguiu sair. Voltou às cadeiras e de lá retornou ao portão principal, ele que nunca sequer cogitou a possibilidade de ser um daqueles malucos que xinga dirigente, que berra no meio de todo mundo, que saiu calado do estádio até quando viu o time tomar de 4 do Figueirense, outro rebaixado.

Mas o time tinha acabado de cair pra segunda divisão, a cabeça latejava e, entre a porta trancada da sala de troféus e o bar aberto, ele gritou o primeiro Cadê a Diretoria?, dando voz ao pensamento que veio à mente assim que avistou a tribuna de honra do estádio completamente vazia. Seguiu-se então um grito mais alto, inimaginável na infância.

Cadê o banana do Dinamite?

Daí vieram uns Filhos da Puta berrados a esmo, entre outros ditos não menos raivosos, até que um segurança o abordou, ao lado do busto do Almirante. A cabeça ainda latejava, mas a visão daquele sujeito de 1,90 m e pescoço parecido com o do Mike Tyson rendeu um segundo de raciocínio lógico, suficiente para ele continuar com os gritos, mas dessa vez com um objetivo específico: livre do anjo exterminador, precisava sair do estádio, mas sem afinar.

Então continuou berrando, olho no olho do segurança gigantesco, e disse que era sócio do clube e que falaria o que quisesse, e que tava indo embora, porra! E nisso finalmente saiu do estádio, para se deparar com um grupo de PMs usando máscaras de oxigênio e com mais torcedores na mesma situação que ele, como o sujeito que tinha o rosto do Bill Murray, a calva do Phil Collins e os cabelos longos do Robertinho do Recife.

O cara também protestava contra a diretoria, e enquanto falava, de cinco em cinco segundos, que o Vasco estava na segunda divisão, que não era Série B porra nenhuma, que era segunda divisão, mostrava as três ou quatro camisas que vestia, todas do Vasco, uma por cima da outra. E tirou do bolso o ingresso do jogo, bem bolado, com a foto do Expresso da Vitória, campeão sul-americano, cinco vezes campeão carioca em sete anos, e disse que sempre guardava os ingressos, e nisso jogou aquele fora. Guardar pra quê, porra? Agora já era, e se despediu. Deixou com ele uma das duas latas de cerveja que tinha acabado de comprar e disse Vou pra lá agora, apontando pro lado da Barreira do Vasco.

Ele ainda hesitou, sem saber direito pra onde ir, até que seguiu o fluxo silencioso na direção contrária. Andou alguns segundos ao lado de outros dois sujeitos, um mais velho, outro mais ou menos da idade dele. O mais moço lembrava ao mais velho algo que tinha acontecido na semana anterior, quando o outro, ao que parece, enchera a cara sem condições físicas pra isso. E o sujeito, cabeça e bigode brancos, nem dava ouvidos. De cabeça baixa, como o Edmundo, respondeu com uma frase apenas: Hoje é uma situação especial. E o outro ficou calado.

Ele também entrou no bar perto da social. Pediu uma bohêmia, sentou numa mesa improvisada do lado de fora e bebeu até escurecer, coisa de uns vinte minutos. Depois saiu andando até os bares próximos à arquibancada, mas os dois botecos estavam fechados. Sobravam apenas três isopores no meio da rua e uns oito sujeitos bebendo latinhas em pé, observados por seis PMs, que conversavam tranqüilamente apoiados em seus porretes de borracha.

Só então decidiu procurar um táxi. Andou quase até o Pavilhão de São Cristóvão quando encontrou um, de um coroa que ouvia um programa de esporte qualquer no rádio, com alguém dando pitaco sobre o rebaixamento do Vasco. Consciente, o taxista viu a camisa do passageiro e trocou rapidamente para uma estação FM. Antes de deixá-lo no bar perto de casa, se revelou torcedor do América e disse que entendia perfeitamente o que o outro sentia.

Ele acreditou, aceitou as palavras solidárias do taxista e entrou no bar. Comprou quatro Originais e foi pra casa. Preparou um cigarro artesanal, abriu a primeira cerveja e, ainda com a camisa do Vasco, iniciou a sessão de DVDs. Começou com a Libertadores de 98 e botou depois a Mercosul, o jogo inteiro da final. Bebendo e fumando, começou a cambalear de sono no primeiro gol do Romário e antes de adormecer no sofá, com os olhos já fechados, ouviu a narração do gol da vitória, do Romário também, e ao fundo, na saída de som da televisão, a torcida gritava que o Vasco é o time da virada, que o Vasco é o time do amor.

A matéria abaixo não tem absolutamente nada demais. Nem entrevista teve. Foi só um apanhado da semana, depois de mais uma briga entre Romário e Edmundo. Mas, nesse momento difícil, resolvi botar o texto aqui, ao menos para relembrar um tempo não tão distante, em que o Vasco, mais uma vez, dominava o futebol brasileiro. Hoje a situação é outra, mas daqui a pouco volta a ser como era antes, não importa a torcida de nossa "mídia" esportiva, ou as arbitragens da CBF, ou as intervenções de governadores num clube, ou os ex-ídolos que viraram deputados. O Vasco vai voltar ao topo, porque o Vasco sempre volta. É só esperar.

Revista Istoé Gente, edição 28, de 14 de fevereiro de 2000:

"Ele é falso e me tirou tudo o que conquistei no Vasco (...) Uma pessoa que acabou de chegar não pode ocupar a posição de capitão"



"A braçadeira veio para o meu braço porque eu tenho braço. Se não tivesse, não haveria esse problema"


Durou pouco a tentativa de reconciliação entre Romário e Edmundo, as duas estrelas do Vasco da Gama e os dois maiores salários do futebol brasileiro: R$ 450 mil mensais para cada um. O pomo da discórdia entre os ex-amigos e atuais desafetos foi a disputa pela braçadeira de capitão do time. Escalado para o jogo contra o Palmeiras, no sábado 5, Edmundo deixou o estádio do Parque Antártica meia hora antes do jogo, alegando estar indisposto. No dia seguinte, já no Rio, o craque confessou que não gostou de ver Romário, que o substituíra como capitão durante as férias, efetivado no posto.
"Ele é falso e me tirou tudo o que conquistei no Vasco", disse Edmundo. "Uma pessoa que acabou de chegar não pode ocupar a posição de capitão", protesta. Romário não respondeu diretamente, mas foi irônico. "A braçadeira veio para o meu braço porque eu tenho braço. Se não tivesse, não haveria esse problema", disse, depois do treino da última segunda-feira. O bom humor de Romário não é à toa. Desde que está no Vasco, marcou 13 gols em apenas 11 partidas. Seis dos sete gols que a equipe fez na Copa Rio-São Paulo saíram dos pés do baixinho.
O presidente do clube, Antônio Soares Calçada, suspendeu Edmundo por dez dias, porque o jogador abandonou o estádio minutos antes da partida contra o Palmeiras. O presidente confirmou que a decisão de efetivar Romário como capitão do time foi tomada na véspera do jogo contra o Palmeiras. "Edmundo precisa de paz, mas ele não tem equilíbrio emocional para ser capitão", disse Calçada. "Se eu não tenho controle emocional, eles não deveriam ter me deixado ser capitão do time por tanto tempo", retruca Edmundo.
Romário, que havia jogado no Vasco no início da carreira e em dezembro voltou ao clube que o formou para o futebol, depois de ser afastado do Flamengo, evitou o conflito com o companheiro de time. Tudo mudou depois das últimas declarações de Edmundo, chamando Romário de falso. O baixinho não respondeu diretamente, mas não ficou calado. "Basta observar o dia-a-dia do time para tirar as conclusões e perceber quem é o quê", disse o craque. "Sei que todos esperam que eu fale algo sobre tudo isso, mas minha cabeça agora é outra", emendou.
Apesar da estratégia atual de evitar o confronto, foi Romário quem começou a dar motivos para a briga. Logo após a decisão da Copa do Mundo de 1998, o atacante divulgou as caricaturas pintadas nas portas dos banheiros de sua boate, o Café do Gol, na Barra da Tijuca. Em uma delas, Edmundo aparecia sentado numa bola murcha, ao lado da modelo Cristina Mortágua, com quem ele teve um filho, Alexandre, hoje com 5 anos, fruto de uma relação extraconjugal. Romário acabou recuando dias depois. Retirou as charges diante da reação de Zagallo, que inspirou outro painel. O ex- técnico da seleção brasileira - que foi estampado numa privada, enquanto Zico segurava um rolo de papel higiênico para ele - ingressou na Justiça contra o baixinho para vetar o uso de sua imagem.
A polêmica esfriou depois que Edmundo foi para a Fiorentina, da Itália, mas voltou a esquentar no retorno do atacante para o Vasco. Em julho, na véspera da decisão do campeonato carioca de 1999 entre o Vasco de Edmundo e o Flamengo de Romário, o craque vascaíno provocou os rubro-negros dizendo que seu time ganharia de dez a zero. No centro do gramado, antes do início do jogo, os dois capitães mal se cumprimentaram e sequer se olharam. Após a vitória do Flamengo por um a zero, Romário afirmou que os que o provocaram tinham de fazer muita coisa para chegar aonde ele chegou.
A trégua entre os dois veio três meses depois da decisão do campeonato carioca, quando Edmundo passou uma noite na prisão, condenado pela morte de três pessoas num acidente de carro em 1995. Em 6 de outubro, na noite da prisão, Romário fez um gol pelo Flamengo e exibiu uma camiseta com mensagem de apoio ao antigo amigo. Fora da cadeia, Edmundo retribuiu a gentileza, após marcar um gol contra o Botafogo de Ribeirão Preto, pelo campeonato brasileiro, numa camiseta com a inscrição "Valeu pela força".
A solidariedade não foi suficiente para evitar novas brigas, mesmo quando Romário foi contratado pelo Vasco. Nos cinco primeiros dias treinando juntos, os dois craques trocaram apenas um tímido aperto de mão. Nos jogos pelo Campeonato Mundial de Clubes, realizado em janeiro, renasceu a esperança de reconciliação. Na partida entre o Vasco e o Manchester United, da Inglaterra, o time brasileiro venceu com um gol de Edmundo e dois de Romário, o primeiro deles depois de um passe do Animal. Os jornais exibiram a foto dos dois craques abraçados, comemorando o gol, mas tudo não passou de um ato isolado. Um mês depois do jogo, Romário e Edmundo estão mais distantes um do outro do que nunca.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

BAIXO ASTRAL

A matéria teve fotos de 16 personagens e histórias de 31. Duas com destaque de manchete, sete também com certo espaço, de umas vinte linhas, e o resto resumido em até cinco, no máximo. Em perfis mais ou menos detalhados, estavam lá, entre outros, o estudante de 13 anos, a costureira de 52, o auxiliar de escritório de 23, o aposentado de 61 e a professora de 42. Todos mortos pelas chamadas balas perdidas, aquelas que pipocam de um tiroteio qualquer e atingem quem não tem nada a ver com a história.

O gancho da matéria partiu de uma história absurda, de uma menina linda de 14 anos, filha única, de classe média, superprotegida pelos pais, que por isso vibrou de alegria quando, por telefone, a mãe deixou que ela pegasse o metrô sozinha numa estação e saltasse na seguinte para encontrá-la, tudo no bairro onde morava. E graças ao retardamento psicológico de quem resolve assaltar uma estação de metrô e à estupidez de dois policiais trapalhões, que resolveram reagir sem condição mental para isso, a menina, Gabriela, foi atingida por um tiro quando descia a escada do metrô. Morreu a caminho do hospital.

A idéia era reunir os casos fatais de bala perdida no estado e chegou-se ao número de 45 mortos entre maio de 2002 e maio de 2003, 31 deles na mui amada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A estatística era da Secretaria de Segurança e só tinha isso mesmo: números de casos divididos por meses. Nada de nomes, nem endereços.

Foi preciso uma pesquisa daquelas bem chatas, em jornais populares, para conseguir identificar as 31 vítimas, e como também tinha que marcar entrevista, foto, ir entrevistar, tirar foto de pelo menos sete personagens, a matéria demorou um pouco pra ficar pronta. Tanto que o gancho mudou.

Quarenta e um dias depois da morte de Gabriela no metrô, outra menina, essa de 19 anos, conversava com colegas no pátio da faculdade onde estudava, num intervalo entre as aulas. Sentada num banco, a menina, Luciana, estava encostada na parede, e assim foi atingida por um tiro na altura da mandíbula que a deixou tetraplégica. Não morreu, e por isso não constou das estatísticas da Secretaria de Segurança, que naquela época só contava as mortes, sem nomes, a maioria aqui na nossa cidade maravilhosa, do balconista de lanchonete de 24 anos, da dona-de-casa de 64, do subgerente de supermercado de 40, da vendedora de 25, do motorista de 27...

Essa matéria ficou bem grande, dois textos principais, da Luciana e da Gabriela, e seis coordenadas com mortos e feridos, além de 27 microtextos das outras vítimas fatais. Botar tudo aqui seria desnecessário. Vai abaixo só uma das coordenadas, que é mais do que o suficiente.

Revista Istoé Gente, edição 198, de 19 de maio de 2003

No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar.

Na véspera da festa de amigo oculto que seria realizada na sexta-feira 6 de dezembro, na Escola Municipal Pernambuco, próxima à favela do Jacarezinho, na zona norte, a aluna da 1a série do ensino fundamental, Jéssica de Jesus Teixeira, de 8 anos, conseguiu R$ 0,50 do pai, o entregador Hélio de Jesus Teixeira. Com o dinheiro, comprou um pacote de elásticos para cabelo, embrulhou-o com o papel arrancado de um livro de figuras e mostrou ao pai, orgulhosa do presente que não chegou a ser dado.
No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar. Levada para o Hospital Salgado Filho, morreu dois dias depois.
Atualmente desempregado, O pai vive com a mulher, Cláudia Maria de Paula, e os outros quatro filhos – Paulo Sérgio, 10, Jennifer, 4, Joice, 3, e Pablo, 8 meses – em uma casa de três cômodos no Jacarezinho. Ele ainda procura entender o que aconteceu. “A perícia diz que o tiro partiu de dentro da escola, mas ninguém ouviu nem viu nada, O município diz que bala perdida é de responsabilidade do estado, e o estado diz que não é com ele porque aconteceu numa escola do município”, conta Hélio, que processa a Prefeitura e tirou o filho mais velho da mesma escola.
Nada que reduza a dor pela perda da filha que sonhava em ser bailarina. “Ela tinha passado num teste para fazer aula de dança e queria que eu a levasse ao curso da Vila Olímpica da Mangueira”, lembra o entregador, que ainda tem de arranjar forças para combater a depressão da mulher e a tristeza dos filhos, principalmente de Jennifer, que tem tido febre quase toda noite. “Prefiro acreditar que a Jéssica não morreu. Ela está viva em algum lugar”, diz.