sábado, 28 de novembro de 2009

O POETA

O poeta brasileiro concorre ao Nobel. Nas horas que antecedem o resultado, ninguém sai da frente da televisão ou do rádio, de Aquidauana a Bagé. A bandeira verde e amarela toma conta das janelas e as cornetas insuportáveis dão o ar de sua chatice a todo momento, no meio da rua ou no alto de um prédio. É o Brasil de novo na Suécia, abençoada terra gelada, para mostrar dessa vez a arte de sua literatura; e os publicitários, claro, não perdem essa oportunidade. Em quase todos os comerciais, daqueles com música de exaltação aos mais pretensamente sérios, com algum ator declamando um texto metido a literário, uma expressão se faz presente: O Nobel é nosso. O País vive em função da disputa na Suécia. De novo, a Suécia.

Ainda bem que nada disso aconteceu quando resolveram oficilizar a candidatura do Ferreira Gullar ao Nobel, mas pelo menos o poeta se divertiu. Entre uma caminhada e outra pelas calçadas de Copacabana, o autor de Poema Sujo recebeu o apoio de copacabanenses bem informados e pôde sentir um discreto clima de Copa do Mundo, por mais contraditório que seja botar as palavras discreto e Copa do Mundo na mesma frase. Não levou o Nobel, ainda, mas isso também não tem tanta importância assim.

Abaixo, a matéria:

Revista Istoé Gente, edição 141, de 15 de abril de 2002

"São as mesmas pessoas escrevendo há anos. Não há imaginação que agüente. Graciliano Ramos escreveu uns cinco romances, Flaubert fez quatro. Balzac escreveu muitos, mas nem ele daria conta do que a tevê pede para os autores."

As caminhadas pelas ruas de Copacabana nunca mais foram as mesmas para o poeta Ferreira Gullar, 71 anos. O maranhense que revolucionou a poesia brasileira com o concretismo de A Luta Corporal, em 1954, tem vivido experiências dignas dos maiores ídolos do esporte nacional. Parado pelos vizinhos do bairro, ouve incentivos e recebe apoio como se fosse disputar uma Copa do Mundo. O motivo é a candidatura do poeta ao Prêmio Nobel de Literatura, oficializada em janeiro, quando o catedrático de Literatura Brasileira Antônio Carlos Secchin foi à Suécia para entregar, na centenária Academia de Estocolmo, a defesa de Gullar.
Depois das tentativas de lançar os nomes de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado, essa foi a primeira vez em que as exigências burocráticas foram seguidas à risca para a candidatura de um brasileiro. “No caso do Jorge, foi enviado apenas um telegrama à academia sueca, assinado pela União Brasileira de Escritores. Quanto ao Drummond e Cabral, parece que a indicação nunca chegou a Estocolmo”, conta Secchin, representante do grupo de intelectuais que apóia Gullar.
Sem querer pensar muito no Nobel, cujo resultado sairá em outubro, o pai de três filhos e avô de oito netos prefere gastar o tempo livre curtindo as estripulias do único bisneto, Pedro, 5 anos. Viúvo da atriz Thereza Aragão, o ex-integrante do Partido Comunista vive hoje com a poetisa Cláudia Ahimsa, mas não mora com a mulher. Em casa, sua única companhia é o gato Gatinho, que inspirou um livro de poemas infantis. “A casa foi esvaziando e ficamos eu e o gato”, resume Gullar.

Como recebeu a candidatura para o Prêmio Nobel?
A princípio, tentei dissuadir o grupo que apresentou minha candidatura. Os prêmios Nobel são escritores por quem eu tenho muita admiração. Jamais imaginei ser um deles, seria petulância. Mas não vou brigar com quem quer me indicar, não sou maluco. Acho bastante difícil. Nunca fez parte do meu projeto de vida, mas se vier, será bem-vindo.

Sua rotina mudou depois disso?
As pessoas me encontram na rua e falam: “É o Brasil, vamos ganhar!”. Digo que só não quero que me transformem no Guga, porque quando ele perde querem acabar com ele. Não sou o primeiro do ranking, nem pretendo. Porque depois vão dizer “esse filho da mãe não correspondeu à nossa expectativa”. Mas tem um lado simpático.

Que lado é esse?
Tenho muito o sentido de herdeiro da cultura brasileira e me orgulho disso. Sou um poeta brasileiro, nasci da poesia brasileira. Costumo dizer que o sentido da vida são os outros e incluem, em primeiro plano, seu próprio país, língua, gente e cultura. Se o Nobel acontecer, o maior significado será esse. De ser a literatura brasileira. A senhora que me encontra na rua e diz “vamos lá, é o Brasil!” se sente representada e torce.

Acha que é a hora de um brasileiro levar o Nobel?
O prêmio do Saramago (o português José Saramago foi o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel, em 1998) teve um significado enorme e chamou a atenção para a literatura de língua portuguesa. Era um escândalo que nenhum escritor da nossa língua, um Fernando Pessoa, um Drummond, tivesse ganho. O João Cabral, sem dúvida, mereceria também. O Jorge Amado idem, é um nome mundial, traduzido em todas as línguas e com um prestígio maior fora do Brasil do que aqui.

O que pensa da intenção de Paulo Coelho de entrar para a Academia Brasileira de Letras?
É um escritor e qualidades ele tem, porque não existe mágica. Se não tivesse algo especial, que atraísse o interesse das pessoas, Paulo Coelho não teria esse êxito. Não é a literatura que me interessa, mas isso não quer dizer nada. Essa coisa do valor literário é relativa. Não existe um critério que estabeleça o que é literatura.

A crítica não gosta de quem vira best-seller?
Há essa tendência. Mas é claro que existe um tipo de arte, em todos os gêneros, que por ser menos inovadora ou inquietante atinge uma faixa muito maior de pessoas. Uma literatura mais crítica, profunda, não oferece solução fácil para os problemas e não atinge tanta gente. Como a novela de televisão. Do ponto de vista estético, é a linguagem fácil, aceita sem inquietação. Quase tudo ali são falsas soluções, muitas vezes falsos sentimentos. Mas você não vai pretender fazer uma literatura televisiva para atingir milhões de pessoas se não for assim.

Como vê a qualidade das novelas hoje?
Está mais baixa, e não é culpa dos autores. São as mesmas pessoas escrevendo há anos. Não há imaginação que agüente. Graciliano Ramos escreveu uns cinco romances, Flaubert fez quatro. Balzac escreveu muitos, mas nem ele daria conta do que a tevê pede para os autores. Então esgota. O cara não tem mais o que contar.

Qual a solução?
Como a novela é a espinha dorsal da tevê, está criado um conluio estranho. A tevê não pode dispensar a novela e o autor está cansado mas não pode deixar de escrever, porque também ganha um belo salário. A televisão bota no ar o que é escrito, e o cara escreve sabendo que não está tão bom. Não sei como sair disso.

O que acha das adaptações da literatura para a televisão?
Acho válido, sabendo que é outra coisa. Por exemplo, Dona Flor e Seus Dois Maridos tem umas 500 páginas, mas deu um filme de uma hora e meia. E está tudo lá. Quando a Globo encomendou, para o Dias Gomes e para mim, a adaptação de Dona Flor para uma minissérie de 36 capítulos eu disse, tô fora. A história é muito curta e a tevê tem de fazer muitos capítulos para compensar os custos.

O que aconteceu então?
Dos 36 capítulos iniciais passamos para 24. No capítulo 15 Dona Flor se encontrava com Vadinho. Como se conta uma história em que os protagonistas só se encontram no capítulo 15? Quando chamaram o Guel Arraes para dirigir, ele leu e falou que daquele jeito não dava. Eu disse: “Então vai lá e diz pro Boni, porque já conseguimos passar de 36 pra 24”. Negociamos e foi ao ar com 12 capítulos.

Como avalia sua experiência na Globo?
Fiquei 22 anos. Comecei em 1978, convidado pelo Dias Gomes, e fiquei até 2000. Tinha voltado do exílio em 1977, desempregado, e só tinha feito teatro. O Dias me deu as dicas e fiquei trabalhando, mas não queria me transformar em autor de novela. Não estou subestimando, é que não é a minha. Não tenho vocação para isso.

Como o poeta de vanguarda se adaptou à tevê?
Sempre separei as coisas. A televisão era algo profissional. Até porque só um louco diz “agora vou escrever uma novela de 180 capítulos” sem ninguém pedir. Na tevê só se faz o que é encomendado. Tive sorte de trabalhar 90% do tempo com o Dias, que tinha uma qualidade excepcional. Trabalhar com ele me protegia, porque o Dias tinha prestígio na Globo, não precisava seguir as mesmas exigências, que obrigam muitas vezes o autor a se submeter a determinadas coisas.

Voltaria a trabalhar em televisão?
Jamais. A melhor coisa que me aconteceu foi sair da Globo. Não tenho queixa de lá, mas há algo angustiante, que é essa coisa do público e da própria emissora. O contrato em suspenso como uma espada na cabeça do cara, que não sabe se vai ser contratado. Um clima terrorífico, que leva todo o pessoal para a ponte de safena. O dia em que saí de lá fui jantar com minha mulher para comemorar, junto com meus 70 anos.

Como vê o cenário político atual?
Foi dado um passo para um país mais organizado com o Fernando Henrique, temos de reconhecer isso. Quero saber quem vai dar o passo adiante sem destruir o que foi feito, quem vai começar a governar para os 50 milhões que não têm nada.

Que candidato tem condições de fazer isso?
Ainda não sei. Estou observando. O quadro está aí, as pedras estão sendo lançadas ainda.

O que acha de Roseana Sarney, sua conterrânea?
Ela pelo menos não dizia que ia para trás, dizia que ia continuar as coisas. O governo dela no Maranhão não é pra trás. Ela acabou com as secretarias e criou gerências. Fez isso porque cada secretário criava um pequeno governo e gastava à toa. Agora o cara é gerente, não faz mais isso. Parece que tem uma série de coisas que ela fez que são certas.

O escândalo envolvendo o marido de Roseana atrapalha a candidatura dela?
É um golpe forte. Acho difícil que ela consiga ir adiante. Não estou a par dos bastidores da política, mas até agora a responsabilidade pessoal dela no caso ainda não foi apurada. Lamento porque de fato tenho carinho por Roseana, mas é um caso grave e tem de ser apurado. Não acho que aquilo tudo foi fruto de conspiração.

Ainda acredita no socialismo?
É evidente que o socialismo acabou, o que não significa que o capitalismo é bom. É fecundo, cruel e injusto como a natureza, porque a natureza não tem sentido de Justiça. Ela cria milhões de bichos, depois inunda e mata tudo. Como o capitalismo é injusto, tem de ser mudado, se não for com o socialismo será de outra forma. As pessoas não continuam brigando, protestando? Então, a luta continua.

sábado, 31 de outubro de 2009

O DIRETOR

Na muy hermosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, pouquíssimas pessoas detêm mais poder do que os diretores de Núcleo da Globo. A entrevista abaixo é com um sujeito que começou como ator, passou a diretor e, pouco tempo depois, virou um desses caras com salário inimaginável.

Revista Istoé Gente, edição número 253, de 14 de junho de 2004

"Parei um ano após a operação. Voltei com a novela. É muita ansiedade, mas estou fumando dois, três cigarros por dia. Com o fim da novela, vou parar".

Casado pela sétima vez, com a atriz Deborah Evelyn, Dennis Carvalho gosta de se definir como um diretor de conflitos urbanos e humanos. Conflitos como a briga entre Maria Clara e Laura, personagens de Celebridade – novela que ele dirige e é recorde de audiência com média de 58 pontos, o equivalente a 2,8 milhões de residências em São Paulo. Aos 57 anos, com a experiência dos casamentos desfeitos com a atriz Bete Mendes, a psicóloga Maria Tereza Schimdt e as atrizes Christiane Torloni, Monique Alves, Ângela Figueiredo e Tássia Camargo, ele elege o tipo de cena que mais gosta: “Sou especialista em cenas de separação”, diz o pai de Leonardo, 24, seu filho com Christiane, Tainá, 22, filha de Monique, e Luiza, 11, fruto da união com Deborah, que pôs fim à longa lista de separações de Dennis. Com a ajuda dela, superou conflitos mais sérios, como a morte do filho Guilherme, gêmeo de Leonardo, há 12 anos, e as drogas.

Qual a participação do diretor no sucesso de uma novela?
Se não tiver uma boa história, não adianta. O telespectador quer saber o que vai acontecer. Cabe ao diretor coordenar. A cena em que a Maria Clara bateu na Cacau (Cláudia Abreu, intérprete da Laura na novela) foi um desafio. Era perigoso, podia ficar inverossímil duas mulheres brigando no banheiro. Fiquei sem dormir na noite anterior. Podia ter ficado um pouco melhor, mas o resultado foi dentro das expectativas.

Concorda com quem achou exagerados os hematomas no rosto de Laura, após a surra?
Às vezes a crítica procede. As pessoas acham que tinha de ter batido mais, mas aí achei que era demais. A Maria Clara não é uma lutadora. É difícil achar esse meio termo. Geralmente briga de mulher é de rolar no chão, puxar cabelo. Ali, o Gilberto pedia no texto que a Cacau tivesse o rosto transfigurado. O grau dos machucados foi mesmo para dar o impacto, para o público ver a vilã castigada, embora alguns achem que ela não apanhou tanto para ficar daquele jeito.

Concorda com isso?
Tenho a justificativa do anel da Maria Clara. Você não pode botar os caracteres embaixo na hora da cena dizendo “aqui o anel da Maria Clara atingiu o rosto”. Não tem como explicar, é difícil. Mas essas coisas fazem parte da profissão.

Que outra cena lhe tirou o sono?
A morte do Bruno Ferrari (Fábio, filho de Fernando na trama) foi difícil. O Gilberto é tão legal comigo que, quando estava escrevendo a sinopse, me disse que mudaria a história se a morte de um dos filhos fosse me fazer mal. Disse: “Não, vamos fazer”. Para mim foi meio como exorcizar a morte do meu filho. Na hora foi muito dolorido, mas fiz questão de dirigir a cena. Todo mundo chorou no estúdio, eu chorei. Minha filha (Tainá) é assistente de figurino da novela. Ela também sofreu com a cena.

Ainda sente a morte de Guilherme?
Perder um filho está fora da ordem natural das coisas. Ele era muito criança, tinha 12 anos. Ele e o Leonardo eram gêmeos idênticos. Os dois não se largavam, eram muito ligados, nem se chamavam pelo nome. Era meu irmão pra lá, meu irmão pra cá. Quando cheguei no hospital e a Christiane falou “perdemos o Guilherme”, minha vista ficou preta, a perna tremeu, uma loucura. O sentimento de perda de um filho é terrível. Estava fazendo O Dono do Mundo. O Léo foi com a Christiane para Portugal. Eles não iam agüentar a barra aqui. Foi duro, mas estamos aí.

O trauma está superado?
Tá. Só tenho a curiosidade de ver como ele seria hoje, do tamanho que o Léo está. Seriam dois parrudos. O Léo tá forte, grande. A Christiane também foi forte. Ele morreu nos braços dela. Ela que segurou a barra toda, no carro e, depois, no caminho para o hospital.

Depois de tantas perdas (um mês antes da morte de Guilherme, Dennis perdeu a mãe, Djanira Carvalho. Sua ex-mulher, Monique Alves, mãe de Tainá, morreu em 1994, de leucemia), acredita em destino?
Acredito, um pouco, que as coisas estão traçadas. Só podia estar escrito. Meu filho, por exemplo, morreu num acidente bobo, de um carro cair de uma garagem (Christiane estava manobrando sua caminhonete na garagem de casa, em São Conrado, no Rio, quando o carro se desgovernou e caiu de uma altura de quatro metros no barranco situado atrás da garagem). Ele não estava surfando ou voando de asa delta.

Pensou em abandonar a carreira ou se isolar?
Não. Foi o trabalho que me segurou. Era um alucinado. Queria fazer reunião à meia-noite. Coitados dos meus assistentes! Morro de pena deles. Hoje, dez e meia estou dormindo. Minha barra pesada foram as drogas. Era consumidor esporádico de cocaína, em festas. Depois da morte do meu filho, era quase todo dia. E trabalhava direto, sem querer dar bandeira, comandando mais de 100 pessoas.

Como foi esse período?
Ficava sem comer, sem dormir. Cheirava uns cinco gramas por dia em casa, a qualquer hora, para me anestesiar. De manhã, para poder trabalhar, porque virava a noite me destruindo em casa. Durou uns três anos, após a morte do Guilherme.

Como parou?
Cheguei num limite de o coração palpitar e eu ficar com medo de morrer. Foi acumulando e a Deborah falando para eu parar. Ela queria se separar. Com razão. Não agüentava uma pessoa ao lado como eu estava. Ela me ajudou, me deu coragem para me internar. Achava uma vergonha, mas foi o que me salvou. Fiquei 40 dias numa clínica de dependentes químicos e passei a freqüentar o NA (Narcóticos Anônimos) diariamente, por um ano e meio. Estou há nove anos limpo. Vou esperar o fim da novela para voltar lá uma vez por semana. É bom não parar.

Qual o papel da Deborah na sua vida?
São quase 16 anos juntos. É uma grande companheira. Senti que ela falou “vou comprar essa briga”, e comprou. Passou muitos perrengues ao meu lado, sofreu e hoje conseguimos ter a vitória. Metade da responsabilidade pela minha volta por cima é dela.

Os problemas consolidaram o casamento?
Sim. E a vinda da Luiza também. Além disso, a Tainá tinha 9 anos quando a mãe dela morreu. Veio morar com a gente e a Deborah foi mãe dela também, ajudou a criá-la na fase mais difícil de uma garota, quando ela precisa de uma mulher para orientar.

Teve medo de morrer ao detectar um câncer no pulmão?
Tive. A vida inteira passa na cabeça. Tive sorte porque detectei ele muito pequeno. Meu médico (Yunes Ryad, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo) decidiu operar e fiquei apavorado. Mas ficou tudo em ordem. Nem quimioterapia fiz.

Como foi a operação?
Fiquei apavorado na hora da anestesia. Nunca tinha tomado antes. Fiz um escândalo no hospital, gritava palavrão, um vexame. Foi há dois anos, durante a Copa do Mundo. Assisti à final no hospital, sem poder gritar porque doía à beça.

Ainda fuma?
Parei um ano após a operação. Voltei com a novela. É muita ansiedade, mas estou fumando dois, três cigarros por dia. Com o fim da novela, vou parar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O ATOR

Um grande amigo que trabalha na Grobo me contou essa. Ele entrevistava o Tony Ramos para algum especial da emissora e o cara, em dado momento, disse algo do tipo: Depois do serviço, eu faço sei lá o quê, porque o resto não importa. O que importa é que um dos maiores atores do país, quiçá do planeta, chama de “serviço” tudo o que ele fez em 45 anos de carreira, do Rubinho, de Nino, o Italianinho, na Tupi, ao indiano dessa última novela das oito, da Globo, passando pelo Riobaldo do Guimarães Rosa e pelo Jorge do Eça de Queiróz.

E a pauta eram os 40 anos de tevê desse sujeito, que chama a fama de “serviço”, e que talvez por isso nunca foi de se expor muito. O jeito foi contar a vida dele pelos trabalhos na tevê. A entrevista foi na sala de imprensa do Projac. Cheguei na hora marcada e Tony Ramos já estava lá, lógico.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 258, de 19 de julho de 2004

"Vim para essa profissão não como voyeur, para espiar minha vaidade. Vim porque gosto de representar personagens. É disso que vivo e ponto final."

Ao longo de seus 40 anos de carreira, completados este ano, Tony Ramos, 55, fez personagens marcantes no teatro, como o Zé do Burro de O Pagador de Promessas, e no cinema, como o inspetor Guedes de Bufo & Spallanzani. É a tevê, porém, o melhor veículo para contar sua história. Desde a adolescência em São Paulo, para onde a família de Arapongas (PR) se mudou quando Tony tinha 13 anos, o ator tem levado a vida paralelamente a algum personagem na tevê. É através das telas que ele é mais conhecido, até porque sempre preservou a vida pessoal. “Não alimento o glamour por ser famoso. Vim para essa profissão não como voyeur, para espiar minha vaidade. Vim porque gosto de representar personagens. É disso que vivo e ponto final.”

A Estréia. Aos 16 anos, Antônio de Carvalho Barbosa já tinha estreado, no programa Novos em Foco, quando, em 1965, fez sua primeira novela, A Outra, na TV Tupi. Aluno do curso clássico (hoje ensino médio) do Colégio Estadual Brasílio Machado, em São Paulo, estudava de manhã e, à tarde, encarnava o Vevé, filho de Juca de Oliveira na trama. “Comia pastel, tomava caldo de cana e andava de ônibus”, conta. Da época, ele se recorda ainda dos improvisos do texto. “Não havia emenda eletrônica de videoteipe. Se errássemos, tínhamos de recomeçar toda a seqüência.”

Namoro. Após a primeira novela, o ator só tirou férias em 1974, quando viajou para a Europa com a mulher, Lidiane. O início do namoro foi trabalhoso para Tony. Em 1966, ele estudava à noite quando conheceu Lidiane, então aluna do turno da manhã, numa festa do colégio dos dois. O ator levou 15 dias até convencer a futura mulher a namorar. “Para dar o primeiro beijo, levei uma semana”, conta. Tony só não lembra se a novela que fazia era O Amor Tem Rosto de Mulher ou Os Irmãos Corsos, mas lembra que Lidiane não o assistia. “Ela via a TV Excelsior, até que um dia assistiu e disse ‘legal, gostei’.”
Casamento. Quando se casou, em 1969, o ator já tinha um personagem de destaque, o Rubinho de Nino, O Italianinho. Mas não teve qualquer regalia por isso. Casou numa quarta-feira e, na segunda-feira, já estava trabalhando. “Fui para a praia do José Menino, em Santos, num apartamento emprestado do meu cunhado”, lembra.

Filhos. No nascimento dos dois filhos do ator, Rodrigo, 33 anos, e Andréa, 31, não foi diferente. O parto de Rodrigo foi num dia sem gravações da novela As Bruxas. Mas no nascimento de Andréa, o ator teve de gravar algumas
cenas da novela Rosa dos Ventos. “Fui trabalhar de manhã, mas deu tempo de virar para o pessoal e dizer ‘olha, vai nascer meu neném, tchau, tchau’.”

A Fama e os pais. Na Globo, Tony estreou em 1977, em Espelho Mágico, mas virou ídolo nacional ao emendar três sucessos: Márcio, filho de Salomão Hayala, em O Astro, de 1978, André Cajarana, em Pai Herói (1979), e os gêmeos Quinzinho e João Vítor de Baila Comigo, de 1981. Durante Pai Herói, o ator perdeu o pai (Paulo, que se separou de sua mãe, Maria Antonia, quando o filho tinha 4 anos) e o padrasto (Salvador, que criou o ator desde os seus 14 anos). “Não tive muita vivência com meu pai, mas sempre o respeitei. Já meu padrasto foi muito importante”, diz o ator, que gravou a novela no dia seguinte ao enterro de Salvador. “Foi duro, mas com muita dor quis trabalhar, para fazer a catarse da perda. Para chorar, sim, mas ter consciência que a vida seguia.”

O Sertão. A cena em que Tony Ramos gravava em 1985, como o Riobaldo de Grande Sertão, Veredas, era noturna. O ator rastejava em pleno sertão mineiro, entre Tarcísio Meira e Lutero Luiz, quando ouviu um barulho estranho. Com uma faca entre os dentes, como pedia a cena, perguntou o que era. Tarcísio não soube responder, mas Lutero, rindo, avisou que Tony estava em cima de um cupinzeiro. “Fiz a cena toda, mas quando acabou fiquei só de sunga. Estava cheio de cupim nos meus pêlos e todo mundo rindo em volta.”

O Galã. Como os cômicos Tonico, de Bebê a Bordo (1988), e Manolo, de As Filhas da Mãe, de 2001, ou o perturbado Zé Clementino de Torre de Babel (98), Riobaldo foi um dos personagens que ajudou Tony a se livrar do rótulo de galã, apesar de nunca se incomodar com o fato. “Dizia baixinho à minha mulher e aos amigos, ‘deixa falar, vamos ver quem é galã’”, conta Tony. “Não tenho 1,90m de altura, nunca tive um físico de deus apolíneo. Sou um homem normal, fruto de espanhóis, italianos e portugueses.”

O Avô. Quando Henrique, 5, seu primeiro neto, nasceu, Tony ostentava uma autêntica cara de avô, graças à barba do Miguel de Laços de Família, de 2000. Na hora de raspá-la, o ator quis o neto, então com 1 ano, do lado. “Dizia a ele:‘Vou tirar a barba, mas continuo sendo teu avô’”, lembra Tony, que também é avô de Gabriela, 6 meses, e está no ar como o coronel Boanerges, de Cabocla. Os dois são filhos de Rodrigo. “A gente com neto, relaxa. Criança pra mim é a presença de Deus.”

domingo, 6 de setembro de 2009

O AUTOR


Imagina ter que escrever uma história de cento e oitenta capítulos durante oito meses. Uma história cujo desenrolar será acompanhado por milhões de pessoas, diariamente, e que precisa agradar a toda essa gente. Uma trama com algumas dezenas de personagens, distribuídos em vários núcleos, que serão gradativamente esquecidos ou valorizados, na medida em que caiam, ou não, no gosto popular.

Imagina que para entregar o texto no prazo será preciso internar-se no trabalho em regime de dez, doze horas diárias; e que, em virtude disso, será no contínuo estado de sono interrompido que a mente terá de funcionar para garantir a sobrevida da história, sempre sob a pressão do ibope. Pra finalizar, imagina que o texto a ser escrito será exposto a todo o país, ainda durante o processo de criação, e que as críticas, positivas ou negativas, serão diárias.

A entrevista abaixo é com um sujeito que trabalha dessa maneira.

Revista Istoé Gente, edição número 245, de 19 de abril de 2004

"A um filme as pessoas reagem como se fossem críticos: “Esse roteiro é bom, a fotografia não sei quê”. Na novela, não. É: “A Bárbara tem que casar com o Paco, esse tem que namorar aquela”. É tudo direto, não uma coisa filtrada por uma crítica. Todo mundo que vai ao cinema é expert. Novela não tem isso, é muito mais visceral."

Desde que começou a escrever Da Cor do Pecado, João Emanuel Carneiro dorme às 8h, acorda às 14h e trabalha todo o resto do dia. O resultado da rotina estafante é medido pela audiência de 43 pontos, em média – índice que há oito anos não era atingido por nenhuma novela das sete – ou pelo pico de 48 pontos, esse o melhor desempenho do horário nos últimos 10 anos. É a primeira novela de João Emanuel, 34 anos, e essa foi uma espécie de reedição do que já conseguira no cinema quando assinou o roteiro de seu primeiro longa, Central do Brasil, junto com Marcos Bernstein. Solteiro, o autor mora num apartamento no Leblon e foi descoberto por Walter Salles graças a seu primeiro curta-metragem, Zero a Zero – que fez aos 19 anos, com os US$ 4 mil arrecadados com a venda de uma estátua egípcia que herdara. Apesar do começo “meio por acaso”, encara o sucesso como um veterano. “Penso sempre que o que estou fazendo vai ser extraordinário. Senão, é melhor nem fazer”, diz.

Por que a novela é um sucesso?
Quis fazer uma fábula tipo Alexandre Dumas, mas tocando em pontos da nossa realidade social, como o menino mulato que é neto do milionário, ou a negra que mora no Maranhão e namora o branco rico do Rio de Janeiro. Apontaria isso como motivo do sucesso e também o fato de a novela trazer de volta as relações humanas, de ternura, família. Às vezes você faz uma novela com muita ação, muito efeito, violência. Minha história tem isso também, mas tocando em sentimentos humanistas, como a relação do avô com o neto. Isso comove as pessoas.

Escreve pensando na audiência?
Fico ligado no Ibope, ele te dá a medida de muitas coisas.Se você finaliza um capítulo com um personagem que o povo não gosta tanto, no dia seguinte a audiência já começa mais baixa. A novela é uma amostra de situações cômicas e dramáticas. Claro que tem coisas que interessam mais ao público e outras, menos.

Teme não agradar o público?
Esse horário é complicado. As pessoas estão em casa mas também não estão. Alguns estão chegando, as crianças estão ali. Precisa de agilidade, de chamar a atenção do telespectador de alguma maneira. Fico tenso porque a novela no fundo é um jogo. Por mais que você faça por uma satisfação artística, pessoal, tem que jogar com essas milhões de pessoas que assistem, e são elas também que fazem a novela. Já aconteceu de me pedirem na rua para criar uma situação que eu já tinha escrito, só não tinha ido ao ar. Fico feliz, parece que o público está escrevendo comigo.

A primeira protagonista negra da Globo ajudou na audiência?
Na imprensa ajudou muito, em termos de divulgação, mas não acho que isso tenha sido um fator de alavancagem da audiência. É um factóide de imprensa, a primeira protagonista negra, e não tem como você fazer sucesso com um factóide. O sucesso é da história. Com factóide se faz um filme, um especial, mas não uma coisa tão longa quanto uma novela, porque são 180 capítulos.


Como é o ritmo de trabalho?
Animalizante (sic). Acho que as novelas eram menores antigamente. A Globo era hegemônica, então muitas novelas eram ótimas, mas tinham situações no meio que era a pessoa indo na feira saber o preço do peixe, e virava cena. Hoje é muito mais pesado, o Ibope exige mais. E o fato de fazerem novelas sempre tão longas é mortificante.

A duração deveria ser menor?
Novela de longa duração, com esse tamanho de oito meses, é um problema. Escrevo com o auxílio de uma equipe, mas faço a novela muito sozinho no sentido de que eu conduzo toda a história. É muito pesado narrar 180 capítulos, 40 cenas por dia. Se fossem 150, daria facilmente. Esses 30 a mais fazem a diferença porque não seriam oito meses que ficaria internado, mas cinco. É uma coisa física, humana. Não sei como a Glória Perez ou o Benedito Ruy Barbosa fazem, mas estou quase caindo pelas tabelas.

A escolha de Taís Araújo para viver a Preta foi imediata?
O elenco foi feito por mim, pelo Silvio de Abreu e pela Denise Saraceni (diretora da novela). O que um dos três não queria, dançava. A Taís era a primeira opção dos três. Ela tem a jovialidade que eu via na Preta, essa coisa alegre, carismática. Não podia ser uma bonita triste para fazer esse papel.

Quem escalou Reynaldo Gianecchini para dois papéis (Paco e Apolo)?
A escolha foi minha, pela cara dele. Acho que o Gianecchini tem gente ali dentro. Tem alguma coisa ali. É um homem bonito, mas tem um mistério, uma indagação atrás dele. Como um galã de filme do Hitchcock, um James Stewart.

Já disse que não queria discutir racismo na novela, que escolheu a protagonista negra só para realçar o contraste social dos personagens. Por que incluiu cenas de racismo envolvendo o Raí (filho de Taís Araújo na trama)?
Quando chegou o avô rico (Afonso, vivido por Lima Duarte) com o neto mulato (Raí, interpretado por Sérgio Malheiros) a coisa veio mais forte. No romance você entra pelo sexo, mas muda no momento que tem o filho. É diferente você ter um caso com uma negra e ter um filho, uma família com uma negra. Aí o preconceito passa a abranger a família inteira. Mas acho que o que agrada as pessoas é que a novela tem a discussão desses temas polêmicos dentro de um contexto de fábula. Você não aprofunda isso como aprofundaria numa novela das oito, com uma discussão mais didática do problema. O racismo está dentro da leveza da fábula.

Por que alguém que escreveu Central do Brasil migrou do cinema para a televisão?
Fiz 12 filmes depois do Central do Brasil e sempre tive vontade de fazer novela. É mais estimulante você falar com o povo que assiste tevê do que com a elite que vai ao cinema. A um filme as pessoas reagem como se fossem críticos: “Esse roteiro é bom, a fotografia não sei quê”. Na novela, não. É: “A Bárbara tem que casar com o Paco, esse tem que namorar aquela”. É tudo direto, não uma coisa filtrada por uma crítica. Todo mundo que vai ao cinema é expert. Novela não tem isso, é muito mais visceral.

Há preconceito contra a tevê?
As pessoas acham que desprezando a televisão estão se valorizando. É um erro. A novela é o primeiro prato do consumo cultural do Brasil. Venho do cinema. Minha mãe (Lélia Coelho Frota) é crítica de arte. Fui filho dessa elite cultural, educado no Moma (principal museu de Nova York), no Louvre (maior museu de Paris). Venho desse mundo que nega um pouco a novela e vim trabalhar com isso.

Abriu caminho para uma renovação dos novelistas?
Não sei. É uma honra pertencer a esse time, conseguir fazer uma novela. Fazer 180 capítulos e sobreviver já é um talento extraordinário. Essa novela é tão absorvente
que não tenho mais projetos para o futuro. Só de vida, como poder dormir. Quero sobreviver a isso, aí vou poder ir à praia, tomar um suco...

Voltará a fazer cinema?
Poderia fazer outro filme com Walter Salles. Foi minha experiência mais feliz no cinema, por poder contar uma história junto com uma pessoa em sintonia com você. E contar uma história original, que é o que falta no cinema nacional, pois o que se vê é adaptação de um livro ou uma biografia. Enquanto a tevê se aplicou em encontrar seus narradores, o cinema encontra sempre diretores, com raras exceções. E o cinema nunca será a indústria que pretende ser enquanto não contar histórias originais.

Walter Salles é uma exceção?
Walter é um gênio que tem dedicação total ao trabalho. Também é um narrador. Filmou três histórias originais (Terra Estrangeira, Central do Brasil e O Primeiro Dia). Outras exceções são o Beto Brant, em parceria com Marçal Aquino, o Jorge Furtado, a Sandra Werneck. Já é um caminho.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

PEQUENO TRECHO DO XARÁ

Cada rapaz que escreve, pelo tempo, tem-se na conta de um ser privilegiado e que se faz respeitar. Cada sonêto que publica ou cada conto que assina eleva-o do solo, mais um palmo. E é por isso que êsse semideus das letras divide os literatos freqüentadores da Garnier em dois grupos distintos: o das bêstas e o dos gênios. Bêstas são os desprezíveis sêres que a opinião pública consagra, por estupidez ou engano, e que a Academia engole. Gênios, as vítimas dos erros dessa mesma opinião e da estultícia acadêmica, os que se julgam roubados no conceito público, sem admiradores, sem leitores ou sem nome, mas com um enormíssimo talento... Como, porém, as bêstas mantenham sobre os gênios idéias inteiramente diferentes, gênios e bêstas vivem num completo desentendimento, latejando rancores, a desmanchar, por vêzes em mentidos sorrisos, hostilidades tenebrosas.
(...)
O gênio, em geral, usa o cabelo crescido, caindo sôbre a gola do casaco, as botinas cambaias, roupa sovada e gravata borboleta. Anda quase sempre sem punhos e traz a barba por fazer. Isso por fora. Por dentro um resplandecer de coisas escovadas e brunidas. Adora o luar e a giribita. Deve o quarto em que mora, a pensão onde come... Recolhe à casa de madrugada e, com freqüência, berra pelas rodas em que anda, alto, para que todos ouçam, esta frase que em sua bôca tem foros de um clichê:
- Nós, os boêmios!...

Luiz Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo

No caso, o tempo de Luiz Edmundo - historiador com texto de cronista - englobava a última década do século 19 e a primeira do 20. Entre as "bêstas" da época estavam Joaquim Nabuco, Olavo Bilac e a maior de todas elas: Machado de Assis. Já os "gênios" mudaram um pouco o figurino, aposentaram a gravata borboleta e continuam andando por aí, até hoje. Alguns acabam se dando bem, outros nem tanto, o que não tem nada a ver com a matéria aí embaixo, que é outra história, ou não, já que se trata de livro, também, e de escritor, a saber somente se é gênio ou besta.

Revista Incrível, edição 46, de agosto de 1996

"O fato é que ele teve o mérito de juntar o quebra-cabeças da evolução do ser humano como ser cósmico e fechar algumas peças que estavam faltando".

Enquanto grupos de esotéricos aguardam a Nova Era, já há quem viva sua própria revolução graças ao escritor americano James Redfield. Mesmo execrados por céticos e críticos, seus livros estão virando mania internacional, inspirando reuniões entre amigos e até lançamentos de CDs. A receita para a vendagem astronômica de seu primeiro livro, A Profecia Celestina, é simples. Basta adicionar uma grande quantidade de esoterismo na história, incluindo as tradicionais dicas de auto-ajuda espiritual para o tão almejado enriquecimento interior do leitor, misturar com uma pitada de aventura, com direito a vilões malvados que poluem a Terra e querem impedir a revelação dos segredos para a chave do Universo, e está pronto um dos maiores fenômenos editoriais da atualidade. Qualquer semelhança com um roteiro hollywoodiano pode ser mera coincidência - ou não, quem sabe? Afinal de contas, o livro está prestes a ser transposto para o cinema.
Lançado em março de 93 pelo ex-terapeuta James Redfield, através de uma edição independente de 3 mil exemplares, A Profecia foi beneficiada por uma surpreendente divulgação boca-a-boca, que fez as tiragens posteriores subirem para até 100 mil, despertando o interesse das grandes editoras. A Warner Books acabou adquirindo os direitos da obra, comercializada hoje em 16 países, com cinco milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Objetiva e já vendeu cerca de 200 mil exemplares.
No rastro de seu sucesso, Redfield lançou o Guia de Leitura da Profecia Celestina, também editado no Brasil pela Objetiva, e A Décima Profecia, que chega ao país em novembro, pela mesma editoria. Esse último livro foi lançado em abril nos Estados Unidos e ocupa o terceiro lugar na lista dos mais vendido do The New York Times. Já A Profecia Celestina está há 130 semanas na mesma lista.
Como a maioria dos best-sellers, a obra de Redfield é execrada pelos críticos, o que, no entanto, não incomoda muito o autor. O ex-terapeuta não tem o menor problema em admitir os lucros de seu sucesso, mas ressalta que escreveu o livro para ajudar as pessoas "relatando através de uma parábola experiências de conhecimento e revelação". O leitor brasileiro, já acostumado com as histórias de Paulo Coelho, certamente vai identificar semelhanças entre os textos do dublê de mago e escritor e A Profecia Celestina. O livro de Redfield só é um pouco mais romanceado. Na trama criada pelo ex-terapeuta, um americano se envolve numa perseguição pela Cordilheira dos Andes para encontrar um manuscrito do século 6 a.C. com as nove visões que representam a chave para o Universo. As perturbadoras revelações contidas no documento indicam grandes transformações espirituais e sociais previstas para o fim do milênio, o que incomoda as autoridades civis e eclesiásticas.
Com todos esses ingredientes, nada mais natural do que a adaptação do best-seller para o cinema, o que já está sendo estudado pelo autor. O filme, caso seja realmente realizado, será apenas mais um dos diversos subprodutos gerados pelo estrondoso sucesso da Profecia. Nos Estados Unidos, o livro virou jornal, calendário e até um CD de música new age.
Entre os leitores brasileiros, a mania pela obra de Redfield vem inspirando reuniões entre amigos. Gente como o cantor Léo Jaime, o músico Kledir Ramil (da dupla Kleiton e Kledir) e a atriz Patrícia Travassos, além de interessados em esoterismo das mais diversas áreas, já pararam para analisar a importância da mensagem que o autor tenta passar em meio às aventuras de seu personagem. Enquanto Redfield vai colocando seus sucessos no mercado, os grupos de estudo de sua obra se organizam no Brasil, principalmente no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
Grupos como o coordenado pela analista de tarô Lúcia Vasconcellos, 35 anos, no Centro Criativo Além da Imaginação, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Juntamente com o marido, o homeopata Lúcio Abbondati Júnior, 39 anos, ela abre as portas de seu centro duas vezes por mês para discutir as visões do manuscrito sagrado. "Essa obra tinha realmente tudo para virar um best-seller. Ela é fácil de ler e trabalha os mistérios de uma forma simples. Para se entender Freud, por exemplo, é necessário quase uma vida inteira de análise, e o autor da Profecia conseguiu resumir toda a sua mensagem, que não deixa de conter referências freudianas e de Jung. O fato é que ele teve o mérito de juntar o quebra-cabeças da evolução do ser humano como ser cósmico e fechar algumas peças que estavam faltando", diz Lúcia.
O livreiro Álvaro Piano da Rocha, 39 anos, especialista em esoterismo, considera o livro de Redfield um clássico, mas reconhece que a qualidade literária não é o forte da obra. "O escritor consegue prender a atenção do leitor e mostrar uma série de princípios espirituais para uma Nova Era. É claro que o texto não tem uma alta qualidade literária, já que o autor não é um escritor, mas ele não denigre a literatura, e sim a utiliza para passar uma mensagem". Para o livreiro, somente um fenômeno de empatia com o público poderia justificar os recordes de vendas de A Profecia Celestina. "Quando o Alfredo Gonçalves (sócio da Objetiva) me disse que tinha comprado o livro, senti que ele iria vender muito, mas não tanto. Não há como prever um sucesso dessa dimensão. Parece que pessoas como Redfield, Paulo Coelho e Monica Buonfiglio têm o dom de tocar o inconsciente coletivo. Só isso pode explicar como esses autores vendem tanto, enquanto outros que falam dos mesmos assuntos não têm a mesma sorte".
Não são poucos os astrólogos que relacionam o sucesso de A Profecia Celestina com a chegada de uma nova onda, que seria o sintoma de que a esperada Era de Aquário está próxima. Mas nem todos os especialistas esotéricos se desmancham em elogios ao romance do ex-terapeuta americano. Para a professora de meditação e expressão corporal Evelyn Sá, 44 anos, há muito delírio ao longo da história contada por Redfield. "Concordo com algumas coisas que ele diz, mas não chegaria ao ponto de chamar o livro de bíblia da Nova Era. Existe muito modismo em torno disso para o meu gosto. Tenho a impressão de que todo mundo vai ler o livro e. daqui a três meses, não vai se falar mais no assunto, e ninguém vai ter crescido ou se autoconhecido", afirma a professora, que também é zen-budista.

terça-feira, 30 de junho de 2009

HONÓRIO, O GURGEL - O CASAMENTO

Sábado de sol, às nove e meia da manhã. Eu de blazer e o copiloto de terno e gravata. O Gurgel rodando macio pela Tijuca e passando em frente ao Maraca, o que motiva a pergunta que talvez seja a mais estúpida da vida do copiloto. No ano do centenário – e da Libertadores –, o cara vira e manda do banco do carona, com a maior naturalidade, o Gurgel já alguns metros depois do estádio:

Você já foi ao Maracanã ver jogo?

Em ato reflexo, bem perto da entrada para o Alto da Boa Vista, o sinal do cruzamento acabando de abrir, apelo para o tradicional soco no braço. Exagero um pouco na força, ou nem tanto, porque perguntar isso a um sujeito de 26 anos no período de glória maior do time dele merece uma resposta contundente. E nesse caso, nada como uma boa porrada, daquelas que machucam mas não danificam.

A subida do Alto da Boa Vista estava chata, em marcha lenta. O engarrafamento era provocado pelo pessoal que invadiria a Praia da Barra, enquanto eu e o copiloto cumpríamos uma obrigação social, por livre e espontânea vontade. O casamento, marcado para as 10h de um sábado, nem era de gente muito íntima, mas a noiva era muita amiga de uma mulher bem próxima na época, baixinha arretada, e o noivo era um canalha dos mais gente finas. Por isso estávamos ali, eu e o copiloto, de ressaca mas determinados a curtir aquela festa, como manda o manual da juventude feliz. Até que Honório resolveu aprontar uma das suas.

Naquele irritante revezamento entre a primeira marcha e o ponto morto, avançando cinco metros por minuto, debaixo do sol das 10h, o Gurgel resolveu que não queria mais funcionar. Apagou tudo no painel. Virava a chave e o único barulho que se ouvia era das buzinas atrás. Virei uma, duas, três vezes a chave, até cair na real. Era sábado de manhã e estávamos, eu e o copiloto, dentro de um carro de fibra de vidro, que enguiçou na subida de uma ladeira e no meio de um engarrafamento. Pra arrematar, eu estava de blazer e o copiloto, de terno e gravata.

Tirei o blazer, o copiloto tirou o terno, dobramos as mangas e iniciamos o exercício inimaginável para aquela manhã de ressaca: Começamos a empurrar o Gurgel ladeira acima, no meio do engarrafamento. Para nossa sorte - se é que podemos falar em sorte numa situação dessas - havia um recuo próximo, coisa de uns cinquenta metros, e conseguimos levar Honório até aquele pouso tranquilo, debaixo de densa vegetação.

Perto dali, uma casa tinha aspecto de oficina, mas não encontramos o que procurávamos. O sujeito na casa disse que o único mecânico por perto se chamava Odir e morava no fim de uma descida perto do recuo. Só que já passava da hora marcada para o casamento e decidimos chegar na cerimônia a pé. O problema com o carro que ficasse para mais tarde.

Chegamos com a igreja já lotada e os noivos lá dentro. Era pequena a igreja, e cor de rosa. Estávamos ligeiramente suados da caminhada de quinze minutos do Gurgel ao casório e decidimos pela situação mais cômoda, depois de tanto incômodo naquele sábado ensolarado. Ficamos do lado de fora esperando o regabofe, que seria ali mesmo, nos jardins da igreja cor de rosa. Conosco, no pátio, só outro convidado que também chegou a pé: Um negão rastafari, que carregava uma sacola plástica dos supermercados Disco, de saudosa memória.

Os noivos saíram, fizeram aquela festa tradicional, jogaram arroz neles, cumprimentamos os dois e passamos à recepção no jardim. Mas não ficamos muito tempo. Havia um problema a ser resolvido. Honório precisava voltar a funcionar para nos levar de volta. E para isso acontecer precisávamos encontrar Odir. Saímos então, no exato momento em que alguém deixou cair no chão uma garrafa de Red Label, eu de blazer, o copiloto de terno, os dois com uma missão a cumprir.

Achar a casa foi fácil, mas demorou até que tivéssemos certeza de que era ali mesmo. O portão parecia de uma daquelas propriedades de história do Stephen King. Era de ferro e arame, e estava, além de torto, meio arrebentado. Mas logo depois apareceu uma casa "normal", e uma senhora gentil, gordinha atarracada, nos atendeu e disse que Odir não estava. Tinha ido fazer um serviço, mas voltava logo. Será que não queríamos esperar no terraço? Queríamos, sim, e então fomos levados por ela ao terraço, uma laje onde só havia duas cadeiras de plástico, além de uma aranha que começava a tecer sua teia num canto do telhado.

A teia estava pronta quando Odir chegou, uns quarenta minutos depois de nos acomodarmos nas cadeiras, munidos de uma garrafa com água gelada e dois copos, tudo fornecido pela gentil senhora.

Odir era magro, tinha cabelos grisalhos e usava boné de algum time da NBA (provavelmente o Chicago Bulls). Vestia bermuda jeans e mocassim sem meia, e chegou numa pick up quase do tamanho daqueles caminhões da Vale, que carregam minério de ferro. Estava visilmente mau-humorado, porque, aparentemente, alguma coisa tinha atrasado o tal serviço. Quando explicamos nosso problema, o sujeito revelou toda a sua educação e seu profissionalismo. Em vez de nos mandar à merda, por atrapalhar ainda mais o sabadão dele, nos mandou entrar no carro gigantesco, e nos levou ao local onde Honório descansava.

No caminho até lá, Odir só falou uma frase: "Paciência tá curta", disse, enquanto esperávamos uma brecha para entrar na estrada do Alto da Boa Vista. Até hoje não sabemos se o cara se referia ao trânsito intenso àquela hora, seis e pouco da tarde - que nos fez esperar quase três minutos até sairmos da rua para a estrada - ou se falava da gente mesmo. Preferimos não perguntar.

Diante do motor traseiro, Odir não gastou nem dois minutos para resolver o problema. Colocou um fio solto no lugar, emendou com fita isolante e falou a segunda frase desde que entramos na pick up gigantesca. "É 20 reais". Paguei de bom grado, e antes de entrarmos no bom e velho Honório, novamente ressuscitado, o copiloto mostrou que, ao lado do carro, no asfalto daquele recuo, uma galinha e cinco pintinhos devoravam uma cobra coral. Mais uma cena estranha, de um sábado muito estranho.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

LOTOCRACIA

A entrevista tinha sido marcada pelo próprio. Era a voz dele no telefone, inconfundível, concordando com a hora e o local, Rua Alegrete, porque ele tinha nascido em Alegrete, no Sul. Mas o interfone foi tocado com certa insistência, quatro vezes, duas mais longas, e nada do cara responder. Eis que chega outro morador do prédio, abre o portão eletrônico e os toques passam a ser na campainha da porta do apartamento. Dois, três, o terceiro duplo, e ouve-se a voz dele ao fundo, inconfundível.

Já vai.

Pereio vestia algo entre bermuda e pijama, havaianas das antigas e camisa social branca, de manga curta, aberta até o umbigo. Vinha de uma temporada de três anos em Olhos D’Água, pequena e pacata cidade do interior de Goiás. Foi pra lá, como disse na entrevista, para “atingir a temperança”. E disse isso com essa cara aí embaixo, à esquerda, de uma das quatro fotos que ilustraram a matéria

Aliás, o cara disse coisa à beça em uma hora de conversa, e como era para uma revista de celebridades – e o espaço dado a gente como Pereio nesse caso não é grande –, muita coisa acabou cortada. Ficou de lado, por exemplo, a sugestão dele para reformular radicalmente o sistema político-eleitoral do País. Na opinião do cara que traçava a Sônia Braga em Dama do Lotação – e falava pro Nuno Leal Maia, marido dela, que só tinha ele no mundo como amigo – a solução para o Brasil era a Lotocracia. A Presidência decidida por sorteio.

O sujeito dá uma cagada e vira presidente da República, resumiu, sucinto, sem se alongar sobre o tema, com a cara da foto aí em cima, à esquerda, e das outras duas ali embaixo, depois de atingir a temperança.

Com vocês, Paulo César Pereio.

Revista Istoé Gente, edição número 107, de 20 de agosto de 2001

"Atingi a temperança. Voltei a ser normal. Fui muito desmedido e, com a idade, o corpo não agüenta os exageros. Deixei de ser um adolescente senil".

Ator de 63 filmes e com 43 anos dedicados ao teatro, Paulo César Pereio, 60, nunca fez mais do que participações esporádicas na tevê. Sua última participação foi em 1997, em Hilda Furacão, na Rede Globo. De volta à emissora na minissérie Presença de Anita, Pereio quer mudar esta estatística. Depois de uma temporada de três anos em Goiás, para superar uma confessa tendência ao exagero, seja com drogas, álcool e até comida, o ator diz ter atingido o equilíbrio. Nada que o impeça, contudo, de reativar sua metralhadora giratória. Expulso em abril da peça Hamlet – que está em cartaz em São Paulo – sob a acusação de assediar uma atriz, o ator critica Diogo Vilela, protagonista e produtor do espetáculo. “Ele não quer que tenha um cara fazendo sombra a ele”, diz Pereio, pai de Lara, 28, Tomás, 22, João, 17, e Gabriel, sete.


A volta à tevê é definitiva?
Meu problema era mais com novela. Em alguns casos era quase como servir o Exército. Oito meses tendo de estar maquiado às 7h. Hoje há condições melhores. Mas prefiro fazer personagens de impacto com uma permanência não muito superlativa, como em Presença de Anita. Se o cara não está na “Grobo”, está morto. Duas vezes por semana passa filme meu no Canal Brasil, então eu estou no cinema. Picasso morreu, mas se fizerem uma exposição, a arte dele vai estar lá.

Você prefere fazer teatro?
Às vezes é uma lenha, como agora com o Diogo Vilela e o Marcus Alvisi (diretor de Hamlet), uma turma que não tem nada a ver. Vi opiniões da Bárbara Heliodora (crítica de O Globo), do José Celso Martinez Corrêa, dizendo que minha estatura artística era muito superior à deles. Isso incomodou os caras. Fui expulso da peça como tarado. Deixei gravada uma brincadeira na secretária eletrônica de uma atriz (Rita Elmor), falei: “Tara, você é minha tara”. Ela se queixou com o Diogo dizendo que tinha medo de mim. Isso serviu de pretexto para me chutarem. O Diogo não quer um cara que faça sombra a ele.

Mas o que acontecia?
Quando eu fazia o Fantasma, ele ficava um pouco chateado e reclamava que eu não olhava pra ele. Toda hora tinha piti. E aí teve esse episódio estranho. Queria convidar o pessoal para assistir a um filho meu, o João, numa peça. Telefonei para a menina. Há dois meses a gente convivia e nunca faltei com respeito. Ela trabalhava na Globo, tem filho, não é ingênua. Deixei gravada a brincadeira. Agora ela deve estar arrependida e sabe que foi usada. O Diogo não estava agüentando. E os caras não iam dizer: “Ô Pereio, você tá fazendo muito bem, piora aí”. Quando fui expulso não argumentei nada. Mas fiquei um pouco aliviado. Estava me sentindo um estranho no ninho.

Por que se isolou três anos em Goiás até voltar ao Rio para fazer Hamlet?
Morava em Olhos D’Água, uma cidade a 90 quilômetros de Brasília. Queria uma vida mais equilibrada. Se você quer evitar as drogas, álcool, continuar vivendo em situações que te seduzam para isso não é muito inteligente. Fui para lá atingir a temperança. Tenho tendência ao exagero. Sou uma pessoa extremada, até para comer.

Você parou de beber e de usar drogas?
Atingi a temperança. Voltei a ser normal. Fui muito desmedido e, com a idade, o corpo não agüenta os exageros. Deixei de ser um adolescente senil. Durante a peça, forcei a barra para ficar abstêmio. Exagerei no bom comportamento. Com a expulsão tive uma pequena crise alcóolica. Tirei um pouco a válvula da panela de pressão. Meu filho, João, ficou preocupado e procurou o Antônio Pedro (ator), o Hugo Carvana e o Tunga (artista plástico). O plano era me internar em São Paulo. Quer dizer, era seqüestro. Achei engraçado o Antônio Pedro dar uma dessa porque ele estava no elenco da peça e viu que eu não estava maluco. O Carvana estava começando um filme. Pô, se ele estava preocupado, tinha personagem à beça pra eu fazer no filme dele.

Como foi colocar um marcapasso?
Tive um bloqueio no coração. Botei o marcapasso e voltei a ser normal. Foi há dois anos e até agora nem examinei. Se por acaso começar a baquear eu vou lá e troco por outro. É um geradorzinho.

Como se relaciona com sua ex-mulher, Cissa Guimarães, depois que passou oito dias preso por não pagar pensão, em 1994?
Foi uma declaração de amor dela. Foi ciúme. Eu tinha engravidado outra mulher. Me botar na cadeia foi uma manifestação. Foi só falar bem e ela abriu a cela logo, a chave estava com ela. Eu não ia pagar mesmo.

Pretende se casar de novo?
Não, não sou bom nisso. Há cinco anos namoro uma cientista da Fundação Oswaldo Cruz. Ela tem o filho dela, eu tenho os meus. Moramos no mesmo prédio, mas ela na casa dela, e eu na minha.

sábado, 18 de abril de 2009

TREM DAS CINCO

A matéria começou no início da noite anterior, no banheiro da redação, quando um gesto atolado levou o papel de enxugar rosto ao olho. No dia seguinte, às 4h45, o carro do jornal parava na frente de casa, com destino a Japeri. O olho estava vermelho, lacrimejava um pouco, e nem colírio nem lenço estavam resolvendo o negócio.

O jornal tinha feito pesquisa sobre os transportes públicos da cidade e a pior avaliação era dos trens, administrados na época pelo governo do estado. A pauta era conferir essa avaliação in loco. Escolher um dos ramais, no caso Japeri, achar alguém que fosse até o fim da linha, na Central, e pegar o primeiro trem ao lado do personagem. Fomos eu e o fotógrafo Marcelo Sayão, sujeito que, ao meio-dia no verão do Rio, já traçou uma feijoada completa antes de uma pauta em Bangu.

Em Japeri, às 5h10, foi fácil achar a personagem. Na primeira abordagem, apareceu dona Cirlene. O olho incomodava, ardia, e ela faria a viagem até a Central, num trajeto que repetia há 13 anos. Conversamos bastante até a terceira estação. Depois ela continuou sentada e eu fiquei em pé, com a batata da perna encostada na perna de outra senhora sentada, um dos braços colado na costela de um sujeito ao lado e o queixo a milímetros do couro cabeludo de uma dona baixinha, que se agarrava à barra onde eu também segurava.

Ninguém se movia, praticamente, e pro Sayão foi mais difícil; mas ele resolveu o problema enfiando meio corpo pra fora do trem e fazendo uma foto bem ilustrativa de mais um novo dia nessa nossa cidade maravilhosa. De um lado, imagens borradas de barracos na beira da ferrovia, efeito da velocidade nem tão alta assim do trem. Do outro, gente espremida numa janela, em primeiro plano o sujeito de olho fechado, tentando abstrair alguma coisa, e a senhora encarando a câmera com cara de zangada. Ao fundo, três metades de corpos pra fora da porta, de costas pra lente, a vislumbrar o horizonte onde os últimos vagões faziam a curva e, lá atrás, o sol começava a despontar. E o olho doía.

Hoje o sistema ferroviário do Grande Rio é privatizado. Não tive a oportunidade de voltar a andar de trem desde então, mas, pelo que aconteceu na quarta-feira, acho que não mudou muita coisa.

A matéria abaixo foi publicada dentro de uma arte que mostrava os trilhos e as estações. Cada estação era um quadradinho de texto acompanhando o trajeto do trem. Por isso essa estrutura. Quanto ao olho, só ficou bom após consulta médica, aplicação de pomada e dois dias de visão tapada, sem tirar o curativo, pra cicatrizar a ligeira lesão na córnea que o papel do banheiro da redação havia provocado, segundo o oftalmologista.

Jornal do Brasil, edição de domingo, 18 de agosto de 1996:

“Já teve homem que puxou o revólver só pra pegar o lugar do outro. Também já vi uma mulher pegar uma tesoura e ameaçar um cara que tava se esfregando nela. Esse tipo de coisa é normal aqui”

5h10, estação de Japeri. A empregada doméstica Cirlene Pereira, de 51 anos, espera uma amiga para entrar no trem que, se tudo correr bem, a levará até a Central em uma hora e meia de viagem. “Não dá pra confiar no trem porque a gente nunca sabe se ele vai quebrar”, diz, com a autoridade de quem segue a mesma rotina há 13 anos.

5h35. Cirlene já está sentada no trem, que parte com cinco minutos de atraso. Sentar, aliás, é um luxo restrito aos moradores de Japeri e aos mais rápidos de Engenheiro Pedreira, a segunda parada do percurso. “Depois disso, achar lugar é o mesmo que ganhar na loto”, compara Cirlene, que da Central ainda pega um ônibus em direção à Zona Sul, onde trabalha.

5h42, estação de Queimados. O trem chega à 3ª estação do ramal de Japeri e já está lotado. Espremida no banco, Cirlene estranha a tranqüilidade da viagem. “Já teve homem que puxou o revólver só pra pegar o lugar do outro. Também já vi uma mulher pegar uma tesoura e ameaçar um cara que tava se esfregando nela. Esse tipo de coisa é normal aqui”, conta. Medo mesmo ela só sente há pouco tempo, com a divulgação das suspeitas de sabotagem no sistema da Flumitrens. “Todos aqui estão preocupados”, afirma a doméstica.

5h57, estação de Nova Iguaçu. Depois de passar por Comendador Soares e Austin, o trem chega à sexta estação do ramal. De Nova Iguaçu, o carro segue viagem abarrotado e já com passageiros pendurados do lado de fora das portas, que não mais serão fechadas até o fim do trajeto. Apesar da superlotação, os passageiros garantem que o trem está vazio. “Hoje tá muito bom, dá até pra se mexer”, diz um deles, revelando o bom humor necessário para suportar a viagem.

6h30, estação de Cascadura. A situação começa a melhorar. Depois de quase uma hora de viagem e de passar por 16 estações, o trem já não está superlotado, e deve seguir assim pelas três estações restantes, até a Central. “Só é assim quando não tem atraso, ou o trem não quebra, o que é raro”, se apressa em alertar Cirlene.

7h, Central do Brasil. Após passar uma hora e meia espremida entre centenas de pessoas, a doméstica sai comemorando o que, segundo ela, foi uma das melhores viagens de trem da sua vida. Apesar da felicidade momentânea, Cirlene não pensa duas vezes antes de dar uma nota para os trens urbanos: “É zero”.

terça-feira, 14 de abril de 2009

TRAPALHÃO

O cara botou Novalgina e Sonrisal no nome de um personagem e deu certo; escreveu cenas que jamais saíram da memória de quem as viu; pulverizou, com a ajuda de Mussum e Zacarias, qualquer idéia que Chico Buarque tenha tentado passar pra quem escuta Teresinha; quintuplicou a popularidade de Amelinha com uma paródia; e ainda por cima é Vasco. Por que, então, esse cara não pode escrever um romance?

Quando Renato Aragão resolveu estrear na literatura e publicou Amizade Sem Fim, um romance com cenas de sexo e violência, a crítica caiu de pau, com direito a resenha irônica em revista de circulação nacional. O livro foi um dos ganchos da entrevista, feita na casa dele, enquanto uns gatos circulavam entre os sofás da sala que dava pra uma piscina. O outro gancho era a proximidade dos 70 anos do cara que escreveu, entre dezenas de roteiros, Saltimbancos Trapalhões, O Cangaceiro Trapalhão e Os Trapalhões e o Mágico de Oroz. E que escreveu também – por que não? – Amizade Sem Fim, se bem que o romance dele eu não li ainda.

Revista Istoé Gente, edição número 276, de 22 de novembro de 2004:

"Sou um palhaço, vou morrer fazendo humor infantil, circense, primário, humor de palhaço. Para isso não como carne, gordura, fritura, bebo só socialmente. Para conservar o meu físico, poder pular, saltar janela, porque o meu humor é visual. O dia que eu não puder fazer tudo isso, vou parar."

Os fãs de Didi Mocó que aguardem. Renato Aragão, que completará 70 anos em janeiro, lança na quarta-feira 17 seu primeiro romance, Amizade sem Fim, pela editora Mondrian. A história, que aborda temas religiosos, mostra a violência carioca e cenas de sexo, desconstrói a imagem do humorista cultivada há décadas. Há dois anos ele escreveu um livro de pensamentos, Meus Caminhos. Dessa vez se propôs um desafio maior. Pai de cinco filhos (Paulo, 43, Ricardo, 41, Renato Jr., 38, Juliana, 26, e Lívian, 5) e avô de oito netos, Renato garante: essa é mais uma de suas facetas. Casado há 13 anos, com Lílian Taranto, 37, mãe da filha caçula, ele não pensa em abandonar o humor circense que o tornou famoso. Só não gosta de rever seus filmes antigos, por um único motivo. “Tenho muita saudade”, resume, referindo-se aos companheiros Mussum e Zacarias, já falecidos.

Por que decidiu escrever um romance?
A idéia surgiu da minha prática com roteiros. Escrevi 37 dos mais de 40 filmes que fiz. Nos últimos, surgiam idéias que não eram para temas infantis, não tinha como encaixar o Didi nelas. Comecei a perceber que aquilo daria um livro. O tempo foi passando e fui criando mais coragem. Por que não podia fazer um livro? Não era uma coisa errada. Tenho projeção nacional como palhaço, mas tinha também a pretensão de escrever pelo menos um romance.

Não tem receio da crítica?
Tenho medo de se aproveitarem do Didi. Eles já vêm pra cima de mim como se fosse um livro do Didi Mocó, mas estou calejado. Nos meus filmes, estou acostumado a levar porrada. Quanto mais eu levava porrada mais bilheteria dava. O que tenho a dizer é que fiz um livro com seriedade e com minha experiência de redação nos roteiros. Se você entra na praia dos outros, acham que é um invasor. Mas me sinto um convidado, e garanto que não vou jogar papel nem garrafa na praia dos outros.

O livro tem cenas de violência e sexo. Não teme chocar seu público infantil?
Quem escreveu o livro foi o Renato Aragão. Meu público vê o Didi Mocó. Essa é a minha saída. Não quero deixar meu público infantil, mas o romance é outra faceta minha que não queria deixar guardada num canto. Tenho o direito de fazer alguma coisa diferente.

Nunca pensou em mudar de profissão?
Sou um palhaço, vou morrer fazendo humor infantil, circense, primário, humor de palhaço. Para isso não como carne, gordura, fritura, bebo só socialmente. Para conservar o meu físico, poder pular, saltar janela, porque o meu humor é visual. O dia que eu não puder fazer tudo isso, vou parar.

A chegada dos 70 anos o incomoda?
Não fala disso, não. É tanta idade que eu até nem sei mais. Minha mulher quer comemorar essa data, mas eu não gosto disso, não. Sei lá, principalmente esse número. Não sei o que vou fazer com esse número. Pula isso aí.

Alguma crise?
Não, eu sou como cabrito. Vou até o último berro. A idade cronológica não me interessa. Me interessa a idade física, o que eu posso fazer no momento. Faço ginástica, passo fome, sempre fiz dieta, passei minha vida toda me policiando. Afinal, uso o corpo para fazer as crianças rirem, é minha ferramenta de trabalho.

Como mantém a forma?
Jogo futebol uma vez por semana e caminho sempre que posso, de 30 a 40 minutos. Aliás, eu dou conselho a qualquer um: troque seus remédios, seus comprimidos por um par de tênis, porque ele resolve todos os seus problemas físicos, mexe com tudo, seu corpo, sua cabeça. Aquela insônia, aquela depressão que às vezes você tem, tudo passa.

Em algum momento de sua vida se achou velho?
Tive a crise do vovô. Foi terrível. Me senti velho mesmo, foi a única coisa que me derrubou. A enfermeira chegou com minha neta dizendo “olha aí o vovô”, e eu disse “que que é isso?”. Queria já sair na porrada com a enfermeira. Foi difícil na época, mas hoje em dia já esculhambou tudo, tenho oito netos. Me acostumei. A tudo você se acostuma, né? (a neta mais velha de Renato é Inara, 22 anos, filha de Ricardo).

Ser pai aos 64 anos rejuvenesce?
Isso é verdade. Quando pensei que tinha encostado a chuteira vi que iria começar tudo de novo. Na verdade é isso. A liberdade que você tinha acaba. É o único problema. No resto, é maravilhoso, parece que você revive, renasce. Vou ter que viver o suficiente para dar uma boa educação a Lívian. Isso é a única coisa com a qual me preocupo.

É um pai presente?
Vou buscar no colégio sempre que posso e já fui até a festa de criança na escola. Foi uma festa caipira. Para mim é complicado ir a essas festas. A criançada cai em cima, fica aquele tumulto. Adoro, mas quando a coisa aperta eu saio fora. Dessa vez não podia decepcionar, todos os pais estavam lá. Eram mais de mil pessoas. Ainda bem que tinha gente do colégio que compreendeu a situação. Cheguei lá, dei um tchau pra Lívian, ela piscou pra mim, e quando a garotada veio eu atendi rapidamente e saí logo depois. Cumpri minha missão.

Restringe os programas que a Lívian assiste na televisão?
Nem eu nem a Lílian deixamos ela ver violência ou programas impróprios. Você hoje assiste um desenho animado japonês e o cara desmancha a cabeça do outro com uma pistola do futuro, o futuro dela. Se você for ver todos os canais, tevê aberta e a cabo, vai ter uns 80 assassinatos por dia, um mau exemplo danado. Mas a gente também não diz “sai daí”, não, porque o proibido atrai. Quando começa a passar algo que achamos ruim falamos “Lívian, dá licença um instantinho, vamos ver o que tem ali no outro canal?”.

Como se sentiu ao ser acusado pelo Grupo Gay da Bahia (em julho passado) de insultar os homossexuais com suas piadas?
Quem faz humor tem que ser irreverente. Não se pode, em lugar nenhum, ser 100% politicamente correto num veículo de comunicação. Mas eu policio tudo, procuro não sacanear muito as pessoas gordas, nem as feias ou os homossexuais. Mas, enfim, o humor vive disso, então temos de dar uma pincelada sem agredir ninguém. Agora, quem de vez em quando não dá um escorregão? Às vezes, você acha que não atingiu ninguém com uma piada e atingiu. Há muitos anos, ainda na Tupi, fiz um super-homem que bebia óleo e tomava sopa de prego, era o homem de ferro. Não percebi nada, nem o diretor do meu programa, mas alguém viu e lembrou que as crianças em casa podiam, de repente, pegar um bocado de prego ao alcance da mão e botar na água para tomar. Olha o problema criado. Temos que ter muito cuidado com isso.

Acha que a cobrança em ser politicamente correto está maior hoje em dia?
Hoje não poderia metade das piadas dos Trapalhões. O Mussum, por exemplo, tomava umas e assumia. Isso era verdadeiro e era ótimo. Ele dizia: “Vim do morro, posso tomar pinga e não vou esconder, que é pior”. Mas o Mussum tinha uma cumplicidade com os espectadores que mostrava que só ele podia fazer aquilo, o resto, não, porque só quem se estrepava na piada era ele. Hoje nem comentar isso em televisão você pode, e eu sou o maior fiscal disso. Vejo nas novelas o ator chegar em casa e pegar um copo de uísque. Os amigos vão a um bar conversar e já tem cerveja. Não pode fazer isso. Você tá induzindo inconscientemente o adolescente que tá começando na vida a chamar o amigo para ir a um bar, está fabricando alcoólatras.

Você concorda com quem diz que A Turma do Didi está parecida com os antigos Trapalhões?
Foi coincidência isso. Decidi montar uma curriola exatamente para não ficar parecido, porque na época que começamos A Turma a Globo estava reprisando os Trapalhões. Aí o Jacaré e o Tadeu Mello se identificaram com Mussum e Zacarias. Só faltava trazer o Dedé Santana, se bem que o Marcelo Augusto também ficou um pouco parecido com ele. A garotada gostou deles, mas é o pessoal que não conheceu os Trapalhões e não compara, porque o duro é a comparação. Ninguém iria aceitar se fosse uma substituição. Tem substituto para o Mussum? Para o Zacarias? Para o Dedé? Não, eles são eles.

quarta-feira, 4 de março de 2009

MIMA

A voz do outro lado do telefone estava revoltada, porque uma macaca, dizia ela, mordera a criança de seis anos, filho dela; e a bicha era uma fera, enchia o saco de todo mundo no Alto Leblon, entrava nas casas pra roubar comida, infernizava os cachorros etc etc etc. Problema sério, talvez o maior do bairro no momento.

Três telefonemas depois, a macaca já tinha nome, Mima, história e sentença. Apesar de alimentada por moradores da área, era culpada. De roubo, invasão de domicílio e agressão a uma criança de seis anos. A arte da matéria retratou a bicha com dentes de vampiro e olhar diabólico e assim ela saiu no jornal, o que motivou outro telefonema, mais revoltado do que o primeiro.

Porque aquilo era uma injustiça, a macaca era ótima, dizia a senhora de idade, que dava ovo, banana, amendoim e milho pra Mima, todo dia. E ela era mansa, só tinha mordido o garoto porque aqueles meninos, uns demônios, ficavam atirando pedras na coitada; e se o Ibama aparecesse pra levar ela embora, iam ver só. Ia descer todo mundo na rua pra impedir.

Em nova leva de telefonemas, surge a origem da macaca no Leblon, novos nomes para ela e uma denúncia grave. Um roubo, de uma arma branca. Mas a segunda matéria é totalmente favorável à Mima, um libelo pela liberdade dos animais silvestres, pela convivência pacífica entre as espécies, apenas com um aviso sutil no fim. Afinal de contas, alguém denunciara um roubo, de uma arma branca.

Abaixo, as duas matérias.

Jornal do Brasil, edição de quinta-feira, 12 de setembro de 1996

“Meu filho aproximou-se da macaca porque ela estava na calçada e, sem ter feito nada, foi atacado. Ela arranhou e mordeu a perna dele”.

Uma macaca-prego, com menos de 60 centímetros de altura, vem acabando com a paz num dos locais mais tranqüilos do Rio. “Moradora” do Alto Leblon e conhecida pelos “vizinhos” das ruas Sambaíba e Timóteo da Costa, a macaca já atacou um menino de 6 anos e tem o hábito de invadir casas da região para roubar comida. Apesar dos transtornos que costuma causar, conquistou a simpatia de alguns moradores, que a alimentam com frutas e biscoitos.
Apelidado de “Mima”, o animal pertencia a uma antiga moradora da Rua Sambaíba, que se mudou há cerca de três anos e não o levou. “Mima” continuou na Sambaíba, sem incomodar ninguém, até ser expulsa por uma obra no terreno da casa onde costumava se esconder. Desde então, tem sido vista com mais freqüência no Leblon, nas redondezas do número 149 da Rua Timóteo da Costa.
No último dia 30, a macaca atacou Ricardo, de 6 anos, quando o menino voltava da escola. “Meu filho aproximou-se da macaca porque ela estava na calçada e, sem ter feito nada, foi atacado. Ela arranhou e mordeu a perna dele”, conta a comerciante Patricia Marcondes, de 36 anos, moradora do número 215 da Timóteo da Costa. Patricia chegou a pedir que o Ibama tomasse alguma providência em relação ao animal, mas não obteve resposta. “Tenho ligado diariamente pra lá, mas eles não fazem nada”, protesta.
Sem ser incomodada, “Mima” continua exercitando sua ousadia pelas casas do Leblon. Um de seus passatempos prediletos é invadir o apartamento do diretor de fotografia Luís Paulo Peixoto, no quarto andar do número 91 da Sambaíba. “Ela aparece de vez em quando na varanda, para roubar a comida do meu cachorro, e causa um tumulto enorme. Fica a macaca gritando de um lado e o cachorro latindo do outro”, conta Luís Paulo.
De acordo com o biólogo Valdir Ramos Júnior, da Fundação Rio Zôo, o macaco-prego é uma espécie comum na Mata Atlântica e costuma alimentar-se de frutas. “Chega a ser comum a criação dessa espécie em residências. Mas seus dentes são muito grandes e uma mordida certamente causa problemas sérios”, explica o biólogo.
A atual casa da macaca-prego do Leblon fica ao lado de uma produtora de vídeo, onde “Mima” já é mais do que conhecida. “Trabalho aqui há um ano e sempre vi essa macaca. Quem está há mais tempo no bairro diz que ela é antiga na área. Muita gente a alimenta, mas ninguém é dono dela”, diz a secretária da produtora, Lúcia Cosenza, de 31 anos.
Alimentada por uns e odiada por outros, o certo é que “Mima” não deverá desfrutar da vida de moradora de um dos bairros mais valorizados do Rio por muito tempo. “Na sexta-feira (amanhã) vamos deslocar um carro para recolher a macaca”, garantiu, ontem, o chefe de Fiscalização do Ibama, Luís Antônio Ferreira.

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Jornal do Brasil, edição de sábado, 14 de setembro de 1996

“Toda a rua está de sobreaviso. Se o Ibama chegar, vamos descer e impedir que levem a macaca. Ela é mansa e só mordeu o garoto porque os meninos costumam jogar pedras nela”.

Uma campanha de moradores do Alto Leblon pode fazer com que o Instituto Brasileiros de Recursos Naturais e Renováveis (Ibama) desista de recolher a macaca-prego que há sete anos habita um dos bairros mais prestigiados do Rio. Denunciada pela comerciante Patricia Marcondes – que teve o filho arranhado pelo animal –, a macaca seria recolhida pelo Ibama ontem, mas os técnicos do instituto preferiram reavaliar a situação.
Enquanto o Ibama decide se recolhe ou não o animal, os ecologistas de ocasião do Alto Leblon se mobilizam para defender a “vizinha” contra os moradores que não agüentam mais a ousadia da macaca, também acusada de invadir casas para roubar comida e objetos. “Toda a rua está de sobreaviso. Se o Ibama chegar, vamos descer e impedir que levem a macaca. Ela é mansa e só mordeu o garoto porque os meninos costumam jogar pedras nela”, diz Lia Machado Portela, 73 anos, moradora do número 179 da Cortes Sigaud, que alimenta a macaca diariamente com ovos, banana, milho e amendoim.
Além de colecionar simpatizantes e desafetos, a macaca-prego do Leblon é pródiga em nomes. Mima, Chiquinha e Monkey são apenas alguns dos apelidos que ganhou ao longo dos sete anos de convivência com os “vizinhos”. A primeira moradora da área a batizar o polêmico animal foi a psicoterapeuta Márcia Gruber, de 54 anos, dona da primeira casa da macaca no Leblon, no número 68 da Rua Sambaíba. “Nós a chamávamos de Monkey (macaco em inglês). Ela ficava no forro do sótão da casa e convivia perfeitamente conosco e com nossos cachorros. Depois, mudamos para um apartamento e ela ficou sem ter para onde ir”, conta.
Apesar da simpatia que angariou junto a moradores como Lia, Monkey não é acusada apenas por perturbar a ordem no Alto Leblon. “Ela já invadiu meu apartamento várias vezes e roubou um canivete do meu filho, que até hoje não consegui recuperar”, denuncia a empresária Márcia França Gomes, de 46 anos, moradora do número 215 da Timóteo da Costa. A assessoria de imprensa do Ibama informou ontem que o instituto ainda está estudando o que fazer com a macaca-prego mais famosa da zona sul carioca. Enquanto isso, ela continua a circular pelo Leblon, e agora pode estar armada.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

HONÓRIO, O GURGEL – A OFERTA

Como de praxe, os caronas não paravam de tripudiar do carro. Eram dois colegas de trabalho e uma amiga, bela amiga. Voltávamos todos do velho JB, hoje um esqueleto que, dizem, vai virar hospital, e desde o rock in rio – o estacionamento do jornal, cujo chão de terra, em dias de chuva, lembrava o charco do primeiro festival – os três só sacaneavam o bom e velho Honório.

Um falava do barulho de coisas pendentes, marca registrada do carro; outro reclamava de andar encurvado, da falta de espaço; e a outra ria do teto solar amarrado com barbante. Ficaram nisso o tempo todo, da Avenida Brasil a Laranjeiras, achando defeitos aqui e ali no valente Gurgel, até que no final da Pinheiro Machado, ao lado da pedreira, emparelha conosco um sujeito num Del Rey prateado.

Estávamos em 1997 e o Del Rey já havia saído de linha há quase tanto tempo quanto o Gurgel. A identificação entre os dois veículos já seria natural, mas o motorista do Del Rey, que trafegava sozinho e parecia o James Belushi, resolveu aproximar de vez os laços entre os dois carros. Com a cabeça pra fora da janela, nós dois a uns 50 por hora, gritou:

Muito maneiro esse teu carro, cara! Quer trocar?

O sujeito estava visivelmente transtornado e o problema devia ser no casamento dele, porque quando sua primeira oferta foi recusada, já entrando na Muniz Barreto, ele emendou com um lance maior, definitivo:

O carro e a minha mulher! Vai?

Nova recusa, ainda a 50 por hora, e o trânsito tratou de nos separar para toda a eternidade. Dentro do Gurgel, todos gargalhavam e ninguém mais falava mal do carro.

Esse texto é uma homenagem um tanto tardia a João do Amaral Gurgel, o sujeito que simplesmente inventou o Gurgel, essa maravilha da indústria automobilística nacional. João morreu no último dia 30 de janeiro. Fica aqui a homenagem do Relatos ao grande empreendedor.