sábado, 18 de abril de 2009

TREM DAS CINCO

A matéria começou no início da noite anterior, no banheiro da redação, quando um gesto atolado levou o papel de enxugar rosto ao olho. No dia seguinte, às 4h45, o carro do jornal parava na frente de casa, com destino a Japeri. O olho estava vermelho, lacrimejava um pouco, e nem colírio nem lenço estavam resolvendo o negócio.

O jornal tinha feito pesquisa sobre os transportes públicos da cidade e a pior avaliação era dos trens, administrados na época pelo governo do estado. A pauta era conferir essa avaliação in loco. Escolher um dos ramais, no caso Japeri, achar alguém que fosse até o fim da linha, na Central, e pegar o primeiro trem ao lado do personagem. Fomos eu e o fotógrafo Marcelo Sayão, sujeito que, ao meio-dia no verão do Rio, já traçou uma feijoada completa antes de uma pauta em Bangu.

Em Japeri, às 5h10, foi fácil achar a personagem. Na primeira abordagem, apareceu dona Cirlene. O olho incomodava, ardia, e ela faria a viagem até a Central, num trajeto que repetia há 13 anos. Conversamos bastante até a terceira estação. Depois ela continuou sentada e eu fiquei em pé, com a batata da perna encostada na perna de outra senhora sentada, um dos braços colado na costela de um sujeito ao lado e o queixo a milímetros do couro cabeludo de uma dona baixinha, que se agarrava à barra onde eu também segurava.

Ninguém se movia, praticamente, e pro Sayão foi mais difícil; mas ele resolveu o problema enfiando meio corpo pra fora do trem e fazendo uma foto bem ilustrativa de mais um novo dia nessa nossa cidade maravilhosa. De um lado, imagens borradas de barracos na beira da ferrovia, efeito da velocidade nem tão alta assim do trem. Do outro, gente espremida numa janela, em primeiro plano o sujeito de olho fechado, tentando abstrair alguma coisa, e a senhora encarando a câmera com cara de zangada. Ao fundo, três metades de corpos pra fora da porta, de costas pra lente, a vislumbrar o horizonte onde os últimos vagões faziam a curva e, lá atrás, o sol começava a despontar. E o olho doía.

Hoje o sistema ferroviário do Grande Rio é privatizado. Não tive a oportunidade de voltar a andar de trem desde então, mas, pelo que aconteceu na quarta-feira, acho que não mudou muita coisa.

A matéria abaixo foi publicada dentro de uma arte que mostrava os trilhos e as estações. Cada estação era um quadradinho de texto acompanhando o trajeto do trem. Por isso essa estrutura. Quanto ao olho, só ficou bom após consulta médica, aplicação de pomada e dois dias de visão tapada, sem tirar o curativo, pra cicatrizar a ligeira lesão na córnea que o papel do banheiro da redação havia provocado, segundo o oftalmologista.

Jornal do Brasil, edição de domingo, 18 de agosto de 1996:

“Já teve homem que puxou o revólver só pra pegar o lugar do outro. Também já vi uma mulher pegar uma tesoura e ameaçar um cara que tava se esfregando nela. Esse tipo de coisa é normal aqui”

5h10, estação de Japeri. A empregada doméstica Cirlene Pereira, de 51 anos, espera uma amiga para entrar no trem que, se tudo correr bem, a levará até a Central em uma hora e meia de viagem. “Não dá pra confiar no trem porque a gente nunca sabe se ele vai quebrar”, diz, com a autoridade de quem segue a mesma rotina há 13 anos.

5h35. Cirlene já está sentada no trem, que parte com cinco minutos de atraso. Sentar, aliás, é um luxo restrito aos moradores de Japeri e aos mais rápidos de Engenheiro Pedreira, a segunda parada do percurso. “Depois disso, achar lugar é o mesmo que ganhar na loto”, compara Cirlene, que da Central ainda pega um ônibus em direção à Zona Sul, onde trabalha.

5h42, estação de Queimados. O trem chega à 3ª estação do ramal de Japeri e já está lotado. Espremida no banco, Cirlene estranha a tranqüilidade da viagem. “Já teve homem que puxou o revólver só pra pegar o lugar do outro. Também já vi uma mulher pegar uma tesoura e ameaçar um cara que tava se esfregando nela. Esse tipo de coisa é normal aqui”, conta. Medo mesmo ela só sente há pouco tempo, com a divulgação das suspeitas de sabotagem no sistema da Flumitrens. “Todos aqui estão preocupados”, afirma a doméstica.

5h57, estação de Nova Iguaçu. Depois de passar por Comendador Soares e Austin, o trem chega à sexta estação do ramal. De Nova Iguaçu, o carro segue viagem abarrotado e já com passageiros pendurados do lado de fora das portas, que não mais serão fechadas até o fim do trajeto. Apesar da superlotação, os passageiros garantem que o trem está vazio. “Hoje tá muito bom, dá até pra se mexer”, diz um deles, revelando o bom humor necessário para suportar a viagem.

6h30, estação de Cascadura. A situação começa a melhorar. Depois de quase uma hora de viagem e de passar por 16 estações, o trem já não está superlotado, e deve seguir assim pelas três estações restantes, até a Central. “Só é assim quando não tem atraso, ou o trem não quebra, o que é raro”, se apressa em alertar Cirlene.

7h, Central do Brasil. Após passar uma hora e meia espremida entre centenas de pessoas, a doméstica sai comemorando o que, segundo ela, foi uma das melhores viagens de trem da sua vida. Apesar da felicidade momentânea, Cirlene não pensa duas vezes antes de dar uma nota para os trens urbanos: “É zero”.

terça-feira, 14 de abril de 2009

TRAPALHÃO

O cara botou Novalgina e Sonrisal no nome de um personagem e deu certo; escreveu cenas que jamais saíram da memória de quem as viu; pulverizou, com a ajuda de Mussum e Zacarias, qualquer idéia que Chico Buarque tenha tentado passar pra quem escuta Teresinha; quintuplicou a popularidade de Amelinha com uma paródia; e ainda por cima é Vasco. Por que, então, esse cara não pode escrever um romance?

Quando Renato Aragão resolveu estrear na literatura e publicou Amizade Sem Fim, um romance com cenas de sexo e violência, a crítica caiu de pau, com direito a resenha irônica em revista de circulação nacional. O livro foi um dos ganchos da entrevista, feita na casa dele, enquanto uns gatos circulavam entre os sofás da sala que dava pra uma piscina. O outro gancho era a proximidade dos 70 anos do cara que escreveu, entre dezenas de roteiros, Saltimbancos Trapalhões, O Cangaceiro Trapalhão e Os Trapalhões e o Mágico de Oroz. E que escreveu também – por que não? – Amizade Sem Fim, se bem que o romance dele eu não li ainda.

Revista Istoé Gente, edição número 276, de 22 de novembro de 2004:

"Sou um palhaço, vou morrer fazendo humor infantil, circense, primário, humor de palhaço. Para isso não como carne, gordura, fritura, bebo só socialmente. Para conservar o meu físico, poder pular, saltar janela, porque o meu humor é visual. O dia que eu não puder fazer tudo isso, vou parar."

Os fãs de Didi Mocó que aguardem. Renato Aragão, que completará 70 anos em janeiro, lança na quarta-feira 17 seu primeiro romance, Amizade sem Fim, pela editora Mondrian. A história, que aborda temas religiosos, mostra a violência carioca e cenas de sexo, desconstrói a imagem do humorista cultivada há décadas. Há dois anos ele escreveu um livro de pensamentos, Meus Caminhos. Dessa vez se propôs um desafio maior. Pai de cinco filhos (Paulo, 43, Ricardo, 41, Renato Jr., 38, Juliana, 26, e Lívian, 5) e avô de oito netos, Renato garante: essa é mais uma de suas facetas. Casado há 13 anos, com Lílian Taranto, 37, mãe da filha caçula, ele não pensa em abandonar o humor circense que o tornou famoso. Só não gosta de rever seus filmes antigos, por um único motivo. “Tenho muita saudade”, resume, referindo-se aos companheiros Mussum e Zacarias, já falecidos.

Por que decidiu escrever um romance?
A idéia surgiu da minha prática com roteiros. Escrevi 37 dos mais de 40 filmes que fiz. Nos últimos, surgiam idéias que não eram para temas infantis, não tinha como encaixar o Didi nelas. Comecei a perceber que aquilo daria um livro. O tempo foi passando e fui criando mais coragem. Por que não podia fazer um livro? Não era uma coisa errada. Tenho projeção nacional como palhaço, mas tinha também a pretensão de escrever pelo menos um romance.

Não tem receio da crítica?
Tenho medo de se aproveitarem do Didi. Eles já vêm pra cima de mim como se fosse um livro do Didi Mocó, mas estou calejado. Nos meus filmes, estou acostumado a levar porrada. Quanto mais eu levava porrada mais bilheteria dava. O que tenho a dizer é que fiz um livro com seriedade e com minha experiência de redação nos roteiros. Se você entra na praia dos outros, acham que é um invasor. Mas me sinto um convidado, e garanto que não vou jogar papel nem garrafa na praia dos outros.

O livro tem cenas de violência e sexo. Não teme chocar seu público infantil?
Quem escreveu o livro foi o Renato Aragão. Meu público vê o Didi Mocó. Essa é a minha saída. Não quero deixar meu público infantil, mas o romance é outra faceta minha que não queria deixar guardada num canto. Tenho o direito de fazer alguma coisa diferente.

Nunca pensou em mudar de profissão?
Sou um palhaço, vou morrer fazendo humor infantil, circense, primário, humor de palhaço. Para isso não como carne, gordura, fritura, bebo só socialmente. Para conservar o meu físico, poder pular, saltar janela, porque o meu humor é visual. O dia que eu não puder fazer tudo isso, vou parar.

A chegada dos 70 anos o incomoda?
Não fala disso, não. É tanta idade que eu até nem sei mais. Minha mulher quer comemorar essa data, mas eu não gosto disso, não. Sei lá, principalmente esse número. Não sei o que vou fazer com esse número. Pula isso aí.

Alguma crise?
Não, eu sou como cabrito. Vou até o último berro. A idade cronológica não me interessa. Me interessa a idade física, o que eu posso fazer no momento. Faço ginástica, passo fome, sempre fiz dieta, passei minha vida toda me policiando. Afinal, uso o corpo para fazer as crianças rirem, é minha ferramenta de trabalho.

Como mantém a forma?
Jogo futebol uma vez por semana e caminho sempre que posso, de 30 a 40 minutos. Aliás, eu dou conselho a qualquer um: troque seus remédios, seus comprimidos por um par de tênis, porque ele resolve todos os seus problemas físicos, mexe com tudo, seu corpo, sua cabeça. Aquela insônia, aquela depressão que às vezes você tem, tudo passa.

Em algum momento de sua vida se achou velho?
Tive a crise do vovô. Foi terrível. Me senti velho mesmo, foi a única coisa que me derrubou. A enfermeira chegou com minha neta dizendo “olha aí o vovô”, e eu disse “que que é isso?”. Queria já sair na porrada com a enfermeira. Foi difícil na época, mas hoje em dia já esculhambou tudo, tenho oito netos. Me acostumei. A tudo você se acostuma, né? (a neta mais velha de Renato é Inara, 22 anos, filha de Ricardo).

Ser pai aos 64 anos rejuvenesce?
Isso é verdade. Quando pensei que tinha encostado a chuteira vi que iria começar tudo de novo. Na verdade é isso. A liberdade que você tinha acaba. É o único problema. No resto, é maravilhoso, parece que você revive, renasce. Vou ter que viver o suficiente para dar uma boa educação a Lívian. Isso é a única coisa com a qual me preocupo.

É um pai presente?
Vou buscar no colégio sempre que posso e já fui até a festa de criança na escola. Foi uma festa caipira. Para mim é complicado ir a essas festas. A criançada cai em cima, fica aquele tumulto. Adoro, mas quando a coisa aperta eu saio fora. Dessa vez não podia decepcionar, todos os pais estavam lá. Eram mais de mil pessoas. Ainda bem que tinha gente do colégio que compreendeu a situação. Cheguei lá, dei um tchau pra Lívian, ela piscou pra mim, e quando a garotada veio eu atendi rapidamente e saí logo depois. Cumpri minha missão.

Restringe os programas que a Lívian assiste na televisão?
Nem eu nem a Lílian deixamos ela ver violência ou programas impróprios. Você hoje assiste um desenho animado japonês e o cara desmancha a cabeça do outro com uma pistola do futuro, o futuro dela. Se você for ver todos os canais, tevê aberta e a cabo, vai ter uns 80 assassinatos por dia, um mau exemplo danado. Mas a gente também não diz “sai daí”, não, porque o proibido atrai. Quando começa a passar algo que achamos ruim falamos “Lívian, dá licença um instantinho, vamos ver o que tem ali no outro canal?”.

Como se sentiu ao ser acusado pelo Grupo Gay da Bahia (em julho passado) de insultar os homossexuais com suas piadas?
Quem faz humor tem que ser irreverente. Não se pode, em lugar nenhum, ser 100% politicamente correto num veículo de comunicação. Mas eu policio tudo, procuro não sacanear muito as pessoas gordas, nem as feias ou os homossexuais. Mas, enfim, o humor vive disso, então temos de dar uma pincelada sem agredir ninguém. Agora, quem de vez em quando não dá um escorregão? Às vezes, você acha que não atingiu ninguém com uma piada e atingiu. Há muitos anos, ainda na Tupi, fiz um super-homem que bebia óleo e tomava sopa de prego, era o homem de ferro. Não percebi nada, nem o diretor do meu programa, mas alguém viu e lembrou que as crianças em casa podiam, de repente, pegar um bocado de prego ao alcance da mão e botar na água para tomar. Olha o problema criado. Temos que ter muito cuidado com isso.

Acha que a cobrança em ser politicamente correto está maior hoje em dia?
Hoje não poderia metade das piadas dos Trapalhões. O Mussum, por exemplo, tomava umas e assumia. Isso era verdadeiro e era ótimo. Ele dizia: “Vim do morro, posso tomar pinga e não vou esconder, que é pior”. Mas o Mussum tinha uma cumplicidade com os espectadores que mostrava que só ele podia fazer aquilo, o resto, não, porque só quem se estrepava na piada era ele. Hoje nem comentar isso em televisão você pode, e eu sou o maior fiscal disso. Vejo nas novelas o ator chegar em casa e pegar um copo de uísque. Os amigos vão a um bar conversar e já tem cerveja. Não pode fazer isso. Você tá induzindo inconscientemente o adolescente que tá começando na vida a chamar o amigo para ir a um bar, está fabricando alcoólatras.

Você concorda com quem diz que A Turma do Didi está parecida com os antigos Trapalhões?
Foi coincidência isso. Decidi montar uma curriola exatamente para não ficar parecido, porque na época que começamos A Turma a Globo estava reprisando os Trapalhões. Aí o Jacaré e o Tadeu Mello se identificaram com Mussum e Zacarias. Só faltava trazer o Dedé Santana, se bem que o Marcelo Augusto também ficou um pouco parecido com ele. A garotada gostou deles, mas é o pessoal que não conheceu os Trapalhões e não compara, porque o duro é a comparação. Ninguém iria aceitar se fosse uma substituição. Tem substituto para o Mussum? Para o Zacarias? Para o Dedé? Não, eles são eles.