terça-feira, 30 de junho de 2009

HONÓRIO, O GURGEL - O CASAMENTO

Sábado de sol, às nove e meia da manhã. Eu de blazer e o copiloto de terno e gravata. O Gurgel rodando macio pela Tijuca e passando em frente ao Maraca, o que motiva a pergunta que talvez seja a mais estúpida da vida do copiloto. No ano do centenário – e da Libertadores –, o cara vira e manda do banco do carona, com a maior naturalidade, o Gurgel já alguns metros depois do estádio:

Você já foi ao Maracanã ver jogo?

Em ato reflexo, bem perto da entrada para o Alto da Boa Vista, o sinal do cruzamento acabando de abrir, apelo para o tradicional soco no braço. Exagero um pouco na força, ou nem tanto, porque perguntar isso a um sujeito de 26 anos no período de glória maior do time dele merece uma resposta contundente. E nesse caso, nada como uma boa porrada, daquelas que machucam mas não danificam.

A subida do Alto da Boa Vista estava chata, em marcha lenta. O engarrafamento era provocado pelo pessoal que invadiria a Praia da Barra, enquanto eu e o copiloto cumpríamos uma obrigação social, por livre e espontânea vontade. O casamento, marcado para as 10h de um sábado, nem era de gente muito íntima, mas a noiva era muita amiga de uma mulher bem próxima na época, baixinha arretada, e o noivo era um canalha dos mais gente finas. Por isso estávamos ali, eu e o copiloto, de ressaca mas determinados a curtir aquela festa, como manda o manual da juventude feliz. Até que Honório resolveu aprontar uma das suas.

Naquele irritante revezamento entre a primeira marcha e o ponto morto, avançando cinco metros por minuto, debaixo do sol das 10h, o Gurgel resolveu que não queria mais funcionar. Apagou tudo no painel. Virava a chave e o único barulho que se ouvia era das buzinas atrás. Virei uma, duas, três vezes a chave, até cair na real. Era sábado de manhã e estávamos, eu e o copiloto, dentro de um carro de fibra de vidro, que enguiçou na subida de uma ladeira e no meio de um engarrafamento. Pra arrematar, eu estava de blazer e o copiloto, de terno e gravata.

Tirei o blazer, o copiloto tirou o terno, dobramos as mangas e iniciamos o exercício inimaginável para aquela manhã de ressaca: Começamos a empurrar o Gurgel ladeira acima, no meio do engarrafamento. Para nossa sorte - se é que podemos falar em sorte numa situação dessas - havia um recuo próximo, coisa de uns cinquenta metros, e conseguimos levar Honório até aquele pouso tranquilo, debaixo de densa vegetação.

Perto dali, uma casa tinha aspecto de oficina, mas não encontramos o que procurávamos. O sujeito na casa disse que o único mecânico por perto se chamava Odir e morava no fim de uma descida perto do recuo. Só que já passava da hora marcada para o casamento e decidimos chegar na cerimônia a pé. O problema com o carro que ficasse para mais tarde.

Chegamos com a igreja já lotada e os noivos lá dentro. Era pequena a igreja, e cor de rosa. Estávamos ligeiramente suados da caminhada de quinze minutos do Gurgel ao casório e decidimos pela situação mais cômoda, depois de tanto incômodo naquele sábado ensolarado. Ficamos do lado de fora esperando o regabofe, que seria ali mesmo, nos jardins da igreja cor de rosa. Conosco, no pátio, só outro convidado que também chegou a pé: Um negão rastafari, que carregava uma sacola plástica dos supermercados Disco, de saudosa memória.

Os noivos saíram, fizeram aquela festa tradicional, jogaram arroz neles, cumprimentamos os dois e passamos à recepção no jardim. Mas não ficamos muito tempo. Havia um problema a ser resolvido. Honório precisava voltar a funcionar para nos levar de volta. E para isso acontecer precisávamos encontrar Odir. Saímos então, no exato momento em que alguém deixou cair no chão uma garrafa de Red Label, eu de blazer, o copiloto de terno, os dois com uma missão a cumprir.

Achar a casa foi fácil, mas demorou até que tivéssemos certeza de que era ali mesmo. O portão parecia de uma daquelas propriedades de história do Stephen King. Era de ferro e arame, e estava, além de torto, meio arrebentado. Mas logo depois apareceu uma casa "normal", e uma senhora gentil, gordinha atarracada, nos atendeu e disse que Odir não estava. Tinha ido fazer um serviço, mas voltava logo. Será que não queríamos esperar no terraço? Queríamos, sim, e então fomos levados por ela ao terraço, uma laje onde só havia duas cadeiras de plástico, além de uma aranha que começava a tecer sua teia num canto do telhado.

A teia estava pronta quando Odir chegou, uns quarenta minutos depois de nos acomodarmos nas cadeiras, munidos de uma garrafa com água gelada e dois copos, tudo fornecido pela gentil senhora.

Odir era magro, tinha cabelos grisalhos e usava boné de algum time da NBA (provavelmente o Chicago Bulls). Vestia bermuda jeans e mocassim sem meia, e chegou numa pick up quase do tamanho daqueles caminhões da Vale, que carregam minério de ferro. Estava visilmente mau-humorado, porque, aparentemente, alguma coisa tinha atrasado o tal serviço. Quando explicamos nosso problema, o sujeito revelou toda a sua educação e seu profissionalismo. Em vez de nos mandar à merda, por atrapalhar ainda mais o sabadão dele, nos mandou entrar no carro gigantesco, e nos levou ao local onde Honório descansava.

No caminho até lá, Odir só falou uma frase: "Paciência tá curta", disse, enquanto esperávamos uma brecha para entrar na estrada do Alto da Boa Vista. Até hoje não sabemos se o cara se referia ao trânsito intenso àquela hora, seis e pouco da tarde - que nos fez esperar quase três minutos até sairmos da rua para a estrada - ou se falava da gente mesmo. Preferimos não perguntar.

Diante do motor traseiro, Odir não gastou nem dois minutos para resolver o problema. Colocou um fio solto no lugar, emendou com fita isolante e falou a segunda frase desde que entramos na pick up gigantesca. "É 20 reais". Paguei de bom grado, e antes de entrarmos no bom e velho Honório, novamente ressuscitado, o copiloto mostrou que, ao lado do carro, no asfalto daquele recuo, uma galinha e cinco pintinhos devoravam uma cobra coral. Mais uma cena estranha, de um sábado muito estranho.