segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

PAUTA ESTRANHA

Não dá pra lembrar o motivo, o que aconteceu no Rio de tão importante para Niterói, mas o fato é que veio a ideia, oriunda muito provavelmente da cachola do chefe da redação na época, idiota completo. O jornal passaria a ter uma sucursal no Rio, que funcionaria na fiat Uno pilotada pelo valente Itamar, motorista dos melhores que até já saiu nas páginas do jornal, de dorso nu, em frente à bela Lagoa de Itaboraí, em foto que ilustrava a matéria sobre o abandono do local.

Seria uma sucursal móvel, dotada de motorista, fotógrafo e repórter, que passaria a sair da redação por volta das 7h30, à caça do que fosse notícia no Rio, e pobre da chefe de reportagem, obrigada a arrumar o que fazer já tão cedo para a nova equipe. Foram tempos esquisitos, de acordar com o céu escuro, pegar ônibus, barca, e voltar logo depois pro Rio, para fazer pautas que até então jamais seriam entregues a qualquer repórter de um jornal que se preocupava, essencialmente, com o lado de lá da Baía de Guanabara.

E aquela pauta eras dessas que, de acordo com as prioridades da reportagem do velho e bom O Fluminense, não fazia o menor sentido. Consistia em deixar de lado os valões de São Gonçalo, os camelôs de Alcântara e as delícias de Niterói, cidade maravilhosa, para atravessar a ponte e fazer a mesma matéria que as agências de notícias, baluartes do editor de um jornal pequeno, enviariam dali a algumas horas. O País vivia tempos diferentes, com novos ventos na economia. Depois de um período curto em que a moeda brasileira passou a ser uma sigla, a URV (Unidade Real de Valor), o Real começava a se consolidar. Nas ondas do sucesso do plano, Fernando Henrique percorria o Brasil andando de jegue e comendo buchada, com chapéu de cangaceiro, prestes a vencer Lula já no primeiro turno das eleições de 1994. No lugar dele, no Ministério da Fazenda, assumiu Ciro Gomes, e a pauta era a primeira visita dele ao Rio como ministro, em evento concorridíssimo no auditório da associação comercial da cidade, lotado de jornalistas, entre eles um repórter do velho O Fluminense, sem gravador.

Abaixo, a matéria.

Jornal O Fluminense, edição de sábado, 10 de setembro de 1994

“O presidente Itamar Franco colocou os bois adiante dos carros, onde eles têm de estar. Eu entro agora no Ministério para trabalhar com a mesma equipe que elaborou o plano e dar continuidade a esse programa”

O ministro da Fazenda, Ciro Gomes, garantiu ontem, em encontro na sede da Associação Comercial do Rio de Janeiro, que os fundamentos da estabilização econômica serão mantidos e que os preços permanecerão estáveis. O ministro esteve na associação para fazer um balanço sobre o programa econômico do governo e foi ouvido por cerca de 300 pessoas, entre empresários, líderes sindicais e representantes de classe. Ele também ouviu perguntas e sugestões de alguns líderes empresariais e sindicais, na palestra que começou por volta das 11h e durou duas horas. Ciro Gomes estava acompanhado dos ministros da Justiça, Alexandre Dubeyrat, e da Comunicação, Djalma de Moraes.
O ministro da Fazenda afirmou que o Plano Real é fundamental para o Brasil, já que nenhuma abordagem dos problemas estruturais do País seria possível diante do quadro de hiperinflação que estava se formando. “O presidente Itamar Franco colocou os bois adiante dos carros, onde eles têm de estar. Eu entro agora no Ministério para trabalhar com a mesma equipe que elaborou o plano e dar continuidade a esse programa”, disse.
Em resposta ao presidente da Confederação Nacional do Comércio, Antônio de Oliveira Santos – que reclamou das críticas generalizadas que os comerciantes vêm recebendo da opinião pública e da imprensa, que os acusam de buscar o lucro a qualquer custo –, Ciro Gomes disse que em qualquer área existem pessoas boas e más. “Há comerciantes honestos e desonestos, e acredito que os primeiros são maioria. A princípio, acreditamos em todas as pessoas, mas todos podem ter certeza que o governo será duro com aqueles que agirem contra a lei”.
Questionado pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio, Arthur João Nonato, sobre a necessidade de estímulos à manutenção e aumento dos níveis de emprego, o ministro afirmou que esse problema é a grande chave para acabar com a miséria e, conseqüentemente, um dos principais objetivos da política econômica do governo. “Essa questão é importantíssima, mas vale ressaltar que, hoje, a administração do Ministério da Fazenda é semelhante àquele número de circo dos pratos: o equilibrista roda os pratos nos pinos e não pode deixar nenhum cair. Nós também estamos tendo de cuidar de vários assuntos ao mesmo tempo”.
Ciro Gomes também recebeu o apoio da Federação das Associações de Donas de Casa do Rio e do presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção Civil do estado, José Boaventura Ferreira. Este último aproveitou para pedir a volta de uma política de financiamento que diminua o atual estado de abandono em que se encontra o setor, não só no Rio, mas em todo o País. O ministro concordou com Boaventura e disse que a decadência da indústria da construção civil é mais um exemplo do colapso em que se encontra todo o País.
O ex-governador do Ceará revelou sua esperança de que o presidente Itamar acelere o processo de saneamento financeiro da Caixa Econômica Federal, mas confessou que não se pode esperar muito de um ministro que chega para garantir, fundamentalmente, a estabilização econômica. “Acredito que no ano que vem, quando não estarei mais servindo o governo como ministro, o Brasil já possa apresentar um grande crescimento econômico, o que vai gerar maiores ofertas de emprego e moradia, por exemplo. Estamos trabalhando para isso”, afirmou.
Depois de ouvir o presidente da Associação Brasileira de Supermercados, Levi Nogueira, o ministro homenageou todos os donos de supermercado que permitiram a queda dos preços, e aproveitou para pedir a adesão daqueles que ainda não estão agindo dessa maneira. “A grande maioria dos donos de supermercados está colaborando com o governo. Eles estão agindo de acordo com as determinações do presidente, que prevêem um plano sem sustos, sem choques”.
Ciro Gomes aproveitou o discurso do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, Luiz Oliveira Rodrigues, para tratar de dois temas também considerados fundamentais: a privatização e o entendimento entre trabalhadores e empresários. O ministro afirmou que Itamar foi o presidente que mais avançou na questão das privatizações em toda a história do País, e citou o exemplo da CSN, hoje a maior companhia privada do País.
Apesar disso, Ciro avisou que nem ele nem o presidente Itamar vêem a privatização como um modismo neoliberal. “A privatização não é um fim, e sim um meio importante para reduzir as dívidas do País. Está provado no mundo inteiro que ela é um instrumento eficaz para fortalecer a capacidade gerencial. No entanto, não se deve afrouxar o controle sobre a manipulação do patrimônio público. Não vamos jogar esse patrimônio pela janela”.
Quanto ao entendimento entre as câmaras setoriais, o ministro espera que se encerre o falso conflito entre trabalhadores e empresários. “O trabalho e o capital podem ter um espaço comum de atuação, com a valorização do diálogo”, concluiu.
O presidente da Associação dos Exportadores do Brasil, Marcus Vinícius Pratini de Moraes, pediu ao ministro providências para diminuir as três principais dificuldades dos exportadores brasileiros: os tributos excessivos (PIS, Cofins, IPMF), os altos custos dos juros e a lentidão das leis portuárias. Ciro Gomes prometeu lutar para diminuir os obstáculos à exportação no Brasil.
Quanto à questão tributária, o ministro afirmou que a intenção do presidente é desonerar ao máximo o produto brasileiro na direção do exterior. “O mercado lá fora é muito competitivo e o Brasil não pode exportar impostos”, disse. Além disso, Ciro contou que o governo já está debatendo, há algum tempo, medidas para diminuir os custos de transferência e tornar as leis portuárias menos lentas.
No que diz respeito aos altos custos de juros, Ciro Gomes disse que, antes do governo Itamar, esses juros eram de 51% ao mês, e agora eles não passam de 3,8%. “Nós temos que comparar esses juros aqui dentro do País. É perverso compará-los com o mercado internacional por razões macroeconômicas”, explicou o ministro, que lembrou ainda o risco que representaria uma queda maior na taxa de juros. “O consumo pode extrapolar na base do crédito e do acesso fácil e, com isso, perderíamos todo o espaço conquistado até agora”.
Ciro Gomes avisou que o plano é expansionista e admitiu que o governo vai precisar aumentar a oferta preventivamente. “Faremos isso com parcimônia, sem os erros dos governos passados, que tentaram correr atrás de um aumento de oferta quando não era mais possível”, disse, sem explicar como o aumento seria feito.
Ao fim do encontro, o ministro deixou a Associação Comercial e falou muito pouco. Questionado pelos jornalistas sobre a reportagem de um jornal de São Paulo, que acusou sua administração no governo do Ceará de crime eleitoral, ele limitou-se a negá-la. “Isso é futrica. No meu governo nunca houve isso”.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

HONÓRIO, O GURGEL - A FESTA

As cubanas eram superiores, mais fortes e mais chatas, mas o primeiro set foi nosso, e o Hipódromo começava a tomar ares de Bar Esperança, o chope descendo redondo, gelado, mesas lotadas, unidas no mesmo ideal, e aquele adorável tráfego típico do Baixo Gávea, pra lá e pra cá, pra lá a loura de cabelo curtinho, vestido de alcinha, tamanquinho e duas flores no tornozelo, pra cá a morena de jeans e camiseta, e nenhuma delas, a exemplo dos garçons, sem sequer resvalar o olhar na direção da nossa mesa, nem para mim, nem para meu amigo Salomão, o que não tinha a menor importância. Olhar já era suficiente, ainda mais durante um jogaço daqueles, as cubanas um pouco melhores no segundo set, e a porrada começando a cantar naquela semifinal da Olimpíada de Atlanta.

Eis que chega Bê Moreno, com seu brinco de brilhante na orelha, senta com a gente e lança a proposta, irrecusável segundo ele. Uma festa espetacular, mulher a rodo, bebida liberada, comida também, tudo numa cobertura de um prédio em Niterói, há pelo menos meia hora de carro de onde estávamos. Nesse momento, as cubanas já tinham boa vantagem no segundo set, a poucos pontos de fechar, e também por isso, mas principalmente porque Bê Moreno insistia, com seu sorriso metálico, que a festa era imperdível, que a conhecida dele, dona da festa, só tinha amiga gata etc etc etc, resolvemos deixar aquela bela atmosfera do Baixo Gávea e seguir para a travessia da Baía de Guanabara.

Bê Moreno sugeriu que fossemos todos no carro dele, novo, motor possante, mas preferimos, eu e Salomão, manter nossa autonomia de ir e, principalmente, voltar de Niterói sem depender de ninguém. Por isso fomos na frente no Honório e o Bê Moreno foi atrás, na velocidade do Gurgel, porque ele não sabia como chegar em Niterói, e como eu só sabia chegar lá pela Perimetral, o caminho foi mais longo. Saímos da Gávea, passamos pelo Jardim Botânico, adentramos pelo Humaitá e atravessamos a Voluntários da Pátria, no rumo da Praia de Botafogo, e rapidamente chegamos à Praia do flamengo e dali ao elevado da Perimetral, de onde Bê Moreno avistou as luzes amarelas da Ponte Rio-Niterói e decidiu nos passar.

Sumiu em pouco tempo, a toda velocidade, e a tarefa de achar o caminho até a festa ficou comigo e com meu vasto conhecimento da terra de Araribóia, fruto dos anos passados no velho e bom O Fluminense. Conhecia bem a área, de fato, e fazia questão de mostrar isso ao bom Salomão, enquanto saíamos da ponte e caíamos na Jansen de Mello, depois Marques de Paraná, ou vice-versa, e depois na Amaral Peixoto, para fazer o contorno e sair na Roberto Silveira, passando por aquela rua que, eu conhecia, claro, mas estava um pouco diferente, menos iluminada, mais estreita, até que, do nada, surgiu um meio-fio, e em menos de dois segundos Honório estava com suas quatro rodas em cima de uma calçada, que por sorte era bem larga.

Um pequeno contratempo, somente, incapaz de atrapalhar a chegada à Miguel de Frias, onde ficava o prédio da festa, colado na reitoria da UFF. Na portaria, a primeira decepção. O porteiro, magro, calvo, o bigodinho ralo, disse que a festa não era na cobertura. Era no play. Na tevê dele, menos de 14 polegadas, brasileiras e cubanas continuavam quase engalfinhadas em Atlanta, e o placar dos quatro sets até ali mostrava números como 33, 29 e 31.

Do elevador, o barulho da música era de festa grande, animador, mas a chegada ao playground foi esclarecedora. Numa mesa de armar, a única fora da salão de festas, quatro ou cinco pessoas permaneciam sentadas, e caladas, uma parecia a mãe, outra o avô, e as outras duas os primos adolescentes. Em volta deles, nada. Ninguém. Dentro do salão, mais duas mesas, uma com a aparelhagem de som (na verdade um daqueles três em um com caixas de som acopladas) e outra com croquete frio e demais salgadinhos sem gosto.

Com a nossa chegada, o público presente dentro do salão suplantou o da mesa do lado de fora. Éramos nós dois e mais duas meninas, uma gordinha sorridente, simpática até demais, e outra mais interessante, mas que certamente ainda não tinha completado o ginásio. Na pista de dança, a dona da festa, bonita, bem bonita, dançava animadamente com Bê Moreno, ele que, com seu sorriso metálico, seu brinco de brilhante, pegava a moça pela cintura, abraçava e beijava na boca durante a música, possivelmente alguma do George Michael.

E continuava fazendo isso quando saímos da festa, pouco menos de quarenta minutos depois da chegada. Na portaria, a tevê de menos de 14 polegadas mostrava as brasileiras chorando, com raiva, tristes, e as cubanas comemorando mais uma vitória, lógico.

domingo, 31 de outubro de 2010

O PREFEITO

As paredes do gabinete estão tomadas por cartazes de propaganda soviética. Na mesa de trabalho, colado nela na verdade, ao lado, o computador não para. O prefeito dá entrevista com desenvoltura, é bom nisso, e de tempo em tempo se vira para o computador, mostra alguma coisa na tela ou apenas checa os emails, sem parar de responder a pergunta. Estava no meio do segundo de seus três mandatos e mantinha popularidade suficiente para ser reeleito com folga no ano seguinte, no primeiro turno, até pela ausência de adversários decentes.

No total, foram 12 anos à frente da Prefeitura do Rio e o início foi, sim, promissor. Mesmo resvalando um pouco além da conta pra direita, se é que ela ainda existe, conseguiu dar uma arrumada na cidade, ainda que tenha sido na base daquele velho discurso de busca pela ordem que sempre remonta a Orwell, Big Brother, a Hitler, Stalin, Mussolini, e a qualquer guardinha de rua todo-poderoso. Mas tinha também o humor involuntário, ou nem tanto. O picolé no açougue, o casaco azul da Lacoste, a resistência heroica pelo horário de verão e outros factóides.

De qualquer maneira, o primeiro governo do prefeito teve projeto, boas ideias como o favela-bairro e, o melhor de tudo, teve investimento em Saúde. Hospitais municipais como o Souza Aguiar e o Miguel Couto passaram a funcionar direito, a olhos vistos. Já no segundo mandato, a história foi diferente. Para vencer o pupilo, colocado por ele na Prefeitura, precisou fazer muitos conchavos, prometeu muita coisa pra muita gente, o que prejudicou sua administração. A saúde começou a degringolar, entre outros problemas, e o prefeito passou a ser alvo constante de todos os jornais.

Começou a virar vilão, mas conseguiu se reeleger mesmo assim, para, sob bombardeio intenso da mídia, perder de vez a popularidade em seu terceiro mandato. No último ano, nas eleições para sua sucessão, sua candidata teve votação pífia. No pleito deste ano, o prefeito tentou uma das duas vagas de senador. Ficou em quarto lugar, com 1,5 milhão de votos a menos que o terceiro colocado.

Abaixo, a entrevista

Revista Istoé Gente, edição 191, de 31 de março de 2003

"Qualquer político tem como objetivo ser secretário-geral da ONU, presidente dos Estados Unidos, se for americano, ou papa, se estiver na hierarquia da Igreja Católica. O político que não tem ambição maior não tem motivação no estágio em que está. Mas ninguém planeja ser presidente. O senador Antônio Carlos Magalhães diz: 'Ser prefeito é questão de competência, ser governador é questão de oportunidade e ser presidente é questão de sorte'. Depende das conjunturas."

Em seu segundo mandato como prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, 57 anos, tem mostrado que continua fiel ao estilo que o transformou num dos principais líderes do PFL. Preocupado com a violência do Rio, o prefeito não poupa críticas a adversários políticos como o ex-governador fluminense Anthony Garotinho, ao mesmo tempo em que acena com uma trégua com a atual governadora e mulher de Garotinho, Rosinha Matheus. Na segunda-feira 18, ocupou o noticiário ao acertar o empréstimo ao Estado do Rio de R$ 230 milhões para o pagamento da folha salarial, num acordo que prevê ainda a cessão de R$ 100 milhões do município para o combate à violência.

A onda de violência que tem atingido o Rio de Janeiro poderia ser evitada?
Poderia, se, no início dos anos 80, o governo federal tivesse consciência do que estava acontecendo em matéria de tráfico de drogas no Brasil. Na primeira metade da década de 80, os governos democraticamente eleitos nos Estados entraram enfatizando prioridades sociais e reduzindo as aplicações em Segurança Pública. Natural, se nem eles, e nem o governo federal, sabiam dos problemas nessa área, mas isso terminou produzindo o quadro dramático que se vê hoje, principalmente no Rio e em São Paulo.

Quem é responsável pela crise de segurança no Rio?
O fracasso da Segurança Pública a partir de 1999 é atribuível a quem hoje responde pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, o senhor Luiz Eduardo Soares. Ele deu a ordem de levantar a repressão ao narcovarejo de drogas, num momento em que a ação repressiva no final do governo Marcello Alencar (1998) tinha reduzido os índices de criminalidade e criado condições para a implementação de uma política que combinasse modernização e inteligência com repressão.

Por que isso não aconteceu?
O senhor Luiz Eduardo Soares trabalhou com a ilusão de que, sem repressão, as gangues se estabilizariam nas suas regiões, como aconteceu com a contravenção. Cada vez que havia disputa à bala por bocas de fumo, ele entrava reprimindo, como castigo. A linha era de liberação do tráfico, desde que não houvesse disputa à bala entre eles. Foi um desastre, e acho gravíssimo o presidente nomear quem produziu esse desastre como secretário nacional de Segurança Pública.

Não acredita no plano do PT para a Segurança?
Não sei se o ministro da Justiça está adotando aquelas idéias, nunca mais vi aquele livrão que eles gastaram meses para produzir e apresentaram na campanha eleitoral. Se o ministro for influenciável por Luiz Eduardo Soares, Deus me livre. É distribuir colete à prova de bala para todo mundo.

Por que o senhor defendeu recentemente que se atirasse nos bandidos para matar?
Respondi uma pergunta sobre a rebelião em Bangu 1 (em setembro de 2002, quando presos comandados por Fernandinho Beira-Mar mataram colegas de cela e tomaram o presídio). Eram 16 presos rebelados e a polícia negociou com eles durante 16 horas. Em qualquer lugar do mundo, numa situação de rebeldia, os presos têm de se deitar de bruços, de calção ou nus, e se alguém tentar fazer o que está ameaçando, a polícia atira para matar. Não no dedão do pé de um homem com uma arma na mão. Se não fizeram isso, perderam a autoridade.

O senhor é a favor da pena de morte?
Não é eficaz. O ato de delinqüir está mais relacionado com a velocidade da punição, e com a probabilidade de que ela venha, do que com o nível da punição. Vivemos no Rio uma banalização da vida que todos esses bandidos sabem que, se não forem presos, vão morrer, ou na mão de outros bandidos ou da polícia. E introduzir a pena de morte gera uma sofisticação legal enorme, com vários cuidados adicionais na área de Justiça. Não é prático.

Como vê o governo Lula?
Não começou ainda. O governo Lula ainda está em campanha. Raro é o dia que não vejo o Lula num comício. Ele recebe prefeitos, faz comício, vai para porta de fábrica, faz outro. Se fosse o partido do governo federal, ele estaria cumprindo seu papel, de presidente do Partido do Governo Federal. Em muitos momentos ele é um chefe de Estado qualificado. Tem enfrentado questões com muita coragem, mas o País não tem governo porque não há chefe de governo.

Por que o senhor diz isso?
O presidente não dedica parte substantiva de seu tempo a gerir a administração, que é complexa. Pego o Rio de Janeiro, segunda maior cidade do País, mas que perto do governo federal é um cisco, e vejo o tempo que tenho que me dedicar à gestão. Fico surpreendido que o Lula não precise dedicar esse tempo à administração.

Outros membros do governo não estão fazendo isso?
O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, podia estar de primeiro-ministro, mas está tratando acanhadamente da sua esfera de responsabilidade. José Dirceu podia estar fazendo, não está. Ele tem poder político de nomear cargos em comissão. É um governo de muitos tentáculos não coordenados. Cada um atira para um lado.

Qual a expectativa para o governo Rosinha?
A administração pública estadual está desintegrada praticamente em todos os segmentos. Numa crise grave como essa, não cabe fazer oposição, e sim discutir medidas concretas para que o Estado recupere sua capacidade de autogerir-se. Senão caminhamos para um segundo momento que é de intervenção, o que nenhum de nós deseja. Espero que a administração de Rosinha seja diferente da de Garotinho.

A ex-governadora Benedita da Silva tem culpa na atual crise?
Propus à Benedita que ela, quando assumisse, fosse à Assembléia Legislativa e pedisse a ruptura com a situação que recebera. Alertei que ela tinha de fazer a tomada de contas naquele momento, porque a responsabilidade para enquadramento na Lei de Responsabilidade Fiscal e no Código Penal seria dos últimos oito meses do governante. Ela não fez porque não quis, e porque não tinha consciência do que receberia. Devia ter, porque os números estavam no Diário Oficial do Estado, não eram secretos. Quando viu que era grave, Benedita agravou a situação com medidas que incharam mais a folha de pagamentos. Portanto, ela é agente desse processo de desintegração financeira do Estado.

Acredita que ex-governadores como Itamar Franco, Benedita da Silva e Olívio Dutra deveriam ser punidos por descumprirem a Lei de Respondabilidade Fiscal?
O artigo 42 da LRF é combinado com artigo próprio do Código Penal e prevê pena de 1 a 2 anos de prisão. Se não for aberto processo e eles não forem julgados para alguma condenação neste intervalo, a LRF estará sendo desmoralizada.

A família Garotinho é uma força política a ser considerada?
Não quero falar da Rosinha porque ela não é a matriz. Ela diz que cumpre uma missão para o marido. Mas esses ciclos de populismo estão pelo País há décadas. À medida em que a política ganha envergadura, que é exigida da administração pública não um cargo de cabo eleitoral, mas uma administração profissional, o oportunismo perde espaço. Minha ascensão no Rio correspondeu a esse movimento, nosso grupo ganha eleição na cidade há 10 anos. Espero que o Estado se vacine também contra o populismo.

Anthony Garotinho é um populista?
Certamente, mas um populista sem estofo, sem raiz. É diferente do ex-governador Leonel Brizola. Brizola tinha clareza de que a resposta para a pobreza passava pela Educação. O Garotinho imagina que a resposta passa pelo cheque-cidadão, pelo sopão, e depois pelo reino dos céus. Você sobrevive por conta de políticas assistencialistas e ascende por conta de políticas divinas. Essa é a combinação do populismo dele. O resultado disso deve estar afligindo muito a governadora, até porque ela não tem pele grossa de político, porque nunca foi vereadora.

Acha que a governadora pode dissociar-se da imagem de Garotinho?
Não é fácil, mas pode. Uma remontagem do governo com quadros técnicos de primeira qualidade, suprapartidários, ia ser uma forma de dar uma resposta à situação. Não se dá resposta a essa crise fazendária se, como gestor de uma Secretaria de Finanças, não tiver um quadro que dê absoluta tranqüilidade à sociedade, senão você vai achar
sempre um Silveirinha.

Pensa em se candidatar ao governo?
Não, quero ser prefeito de novo. Quero ajudar a eleger o próximo governador, apresentar mais uma vez nosso programa de governo, que já foi derrotado duas vezes, discutir, apoiar e ajudar o governo, se precisar.

Tem ambição de ser presidente?
Qualquer político tem como objetivo ser secretário-geral da ONU, presidente dos Estados Unidos, se for americano, ou papa, se estiver na hierarquia da Igreja Católica. O político que não tem ambição maior não tem motivação no estágio em que está. Mas ninguém planeja ser presidente. O senador Antônio Carlos Magalhães diz: “Ser prefeito é questão de competência, ser governador é questão de oportunidade e ser presidente é questão de sorte”. Depende das conjunturas.

O governo estadual não seria um caminho para a Presidência?
Não precisa mais passar pelo governo estadual para ser candidato a presidente, principalmente nas grandes cidades, que são pólos propagadores do desenvolvimento. Marta Suplicy pode ser candidata à sucessão do Lula. Jacques Chirac foi prefeito de Paris e presidente da França. Jorge Sampaio, prefeito de Lisboa e presidente de Portugal.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A FUTURA GOVERNADORA

Ela era negra, pobre e favelada. Virou vereadora, depois deputada, e quase foi prefeita do Rio, mas perdeu de virada para César Maia, naquela que foi a primeira grande vitória eleitoral do prefeito mais longevo da cidade na história recente. A popularidade, no entanto, foi suficiente para que Benedita da Silva se tornasse a primeira mulher negra eleita senadora e, quatro anos depois, garantisse a vaga de vice-governadora na chapa vitoriosa de Garotinho, nas eleições de 1998. A entrevista aconteceu quando ela estava prestes a se tornar a primeira governadora da história do Rio de Janeiro, mas Benedita minimizava o fato. Dizia que feliz, mesmo, ela ficaria se vencesse as eleições para o governo, dali a sete meses. Acabou perdendo no primeiro turno, para outra mulher, e terminou sua curta experiência no Palácio Guanabara com a desagradável marca de ter deixado de pagar o décimo terceiro salário dos servidores, entre outros problemas. Acusou o antecessor de ter deixado a bomba estourar na mão dela. Pode até ser, mas também a digníssima governadora não soube se cercar de bons quadros no governo. Na Secretaria de Fazenda, por exemplo, botou uma raposa, que graças aos meandros de nossa política estadual conseguiu se colocar novamente, dessa vez no galinheiro instalado no saudoso Vasco da Gama, hoje transformado em covil de aproveitadores com o beneplácito da mídia que sempre odiou o clube. Mas é claro que a Benedita, eleita agora deputada federal, com pouco mais de 60 mil votos, não tem nada a ver com isso.

Abaixo, a entrevista

Revista Istoé Gente, edição 136, de 11 de março de 2002

"Sei muito bem quando estou sendo vítima de um preconceito e quando estou sendo vítima de uma disputa. Você vê isso na medida em que vai galgando posições. É um preparo constante de saber reagir. O que não pode é entrar numa paranóia de achar que essa ou aquela ação são preconceituosas."

Ela nasceu na favela da Praia do Pinto, no Rio, cresceu e morou 57 anos no Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, zona sul carioca, só entrou na faculdade aos 40 anos e hoje, prestes a chegar aos 60, se prepara para ser a primeira mulher a governar o Estado do Rio de Janeiro. Na expectativa de substituir o governador Anthony Garotinho – que deverá licenciar-se do cargo em abril, para disputar as eleições presidenciais – a vice-governadora Benedita da Silva terá nove meses para mostrar serviço. Sem tirar os pés do chão, Bené transfere os louros de seu sucesso ao trabalho coletivo do PT. Mas, candidata ao governo estadual nas próximas eleições, avisa que não vai esconder a satisfação pessoal se ganhar a disputa. A ex-empregada doméstica, que já se destacava em organizações como a Associação das Mulheres do Chapéu Mangueira e a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, começou na política em 1982, como vereadora. De lá para cá, foi deputada federal duas vezes e senadora. Nada que fizesse a mãe de dois filhos e avó de quatro netas deixar a família de lado. Viúva duas vezes, faz questão de, quando tem tempo, preparar a comida do marido, o ator Antônio Pitanga.

É uma vitória pessoal assumir o governo do Estado do Rio, mesmo por nove meses?
Nem pensar. A vitória se deu quando fomos eleitos. Governar nove meses é um desafio grande para o PT. Foi o PT, junto com o povo do Rio de Janeiro, que me elegeu para representá-lo nesse momento. A vitória é resultado de um trabalho coletivo.

Nem uma ponta de orgulho? Nem quando foi eleita para o Senado (Em 1994, foi a primeira mulher negra eleita senadora, com 2,2 milhões de votos)?
A vitória nunca pode ser atribuída unicamente aos seus méritos. Na política há outros componentes que formam esta constelação. Na eleição para o governo estadual, a vencedora foi a política de aliança (Benedita foi vice na chapa do governador Anthony Garotinho, na época ainda no PDT). Quando saí senadora, o PT não tinha representação no Senado no Rio. Foi para fortalecer o partido que saí candidata. Nunca coloco essas vitórias como um patrimônio da Benedita.

E qual a sensação da Benedita mulher quando a candidata vence?
Como representante dessa política, fico muito feliz quando sou vitoriosa. E quando perco, como nas disputas para a prefeitura do Rio (Benedita perdeu em 1992 e em 2000 para César Maia), tenho que administrar. Quando se ganha, a vitória é de todos. Mas quando se perde, a derrota é só sua. A política me deixa na posição de assumir o governo por nove meses. Agora é só complementar esse período e disputar para ganhar o governo do Estado do Rio de Janeiro. Quero ser governadora eleita. Aí pode ter certeza que vou ficar muito contente.

Frei Betto disse que nove meses é muito tempo e que dá para fazer até gente. O que acha?
Concordo. Só que neste caso será um parto prematuro. Terá menos de nove meses.

A senhora vai morar no Palácio Laranjeiras (residência oficial do governador do Rio)?
Essa não é uma decisão colocada como prioridade. Mas, se necessário for, morar mais perto é sempre melhor do que morar longe. Moro em Jacarepaguá (Zona Oeste do Rio), mas não tenho dificuldades em chegar no horário. Mas é de domínio público que o palácio é um espaço para o governador. Nesse caso, poderá ser um espaço onde a governadora estará.

Imaginava chegar onde chegou quando começou na política?
Nunca passou pela minha cabeça que eu pudesse sequer ser candidata a vereadora em 1982, mas minha história política vem da base. Até as universidades que fiz – sou formada em Serviço Social e Estudos Sociais – foram em função da luta que travava. Não nasci em berço de ouro, mas acredito que a inteligência e a sabedoria vêm de Deus, da natureza do ser humano. O segredo é como aproveitar essa inteligência na adversidade.

Que característica marcou sua trajetória na política?
Sempre fui muito modesta. Ser modesto não significa que você não seja ousado. Às vezes os colegas me acham fria diante de uma boa notícia, mas não é isso. Sou calorosa, mas vivo cada dia, porque se carrega um peso grande na hora em que as coisas não dão certo. Não sou de soltar foguetes antes e muito menos de ter o passado como a impossibilidade do presente. Tem gente que olha para trás e não consegue avançar, porque o passado foi ruim. Tenho o passado como uma grande lição. No presente vou preparando um futuro, que na política sempre é projetado, mas que na minha cabeça depende muito do hoje, porque você sai de casa e não sabe o que vai acontecer. Posso ter sonhos, mas nada que me faça regozijar por algo que ainda vai acontecer. Parece frieza, mas não é. Tenho o pé no chão.

Sua ascensão política representa uma quebra de preconceito?
O preconceito racial brasileiro é gritante, mas você não pode assimilar isso diante dos desafios. O preconceito não é meu, é de quem tem. Cabe a mim seguir em frente e mostrar que é possível a convivência com as diferenças e construir um mundo de paz. Estamos perto de grandes vitórias nessa área, e não falo só de negros e indígenas. Se somamos no Brasil uma maioria de não brancos, então isso vai ser bom para todo mundo.

A senhora já sofreu preconceito na política?
Sei muito bem quando estou sendo vítima de um preconceito e quando estou sendo vítima de uma disputa. Você vê isso na medida em que vai galgando posições. É um preparo constante de saber reagir. O que não pode é entrar numa paranóia de achar que essa ou aquela ação são preconceituosas.

E como reage?
Procuro me pronunciar. Há momentos em que você nem reage, tal é o nível de ofensa. É um estado de choque. Já tive reações diversas, dependendo do ambiente, porque você tem que pensar muito rápido.

Pode dar exemplos?
Prefiro não falar. Mas a coisa é tão maléfica que a reação tem de ser de autoridade, porque as justificativas são logo “não, não é nada disso'”. Então ataco com autoridade mesmo, senão é bem capaz de ter de dar explicações sobre a reação. Como se um cachorro te mordesse e alguém dissesse: “Quem mandou passar por aqui?”. Então você fala: “Aqui não pode passar? Quem pode passar?”.

Como concilia a dona-de-casa com a política?
Sempre estou próxima da minha família. Outro dia eu e minha irmã Celeide (70 anos) pensamos a mesma coisa sobre o Pitanga, sem saber. Ele está trabalhando em O Clone, faz o personagem Tião e come muitos pastéis em cena. Ela pensou em fazer os pasteizinhos para ele levar e eu pensei a mesma coisa, porque nós duas somos ótimas cozinheiras e o conquistamos com nossos pastéis.

Foram seus pastéis que conquistaram Antônio Pitanga?
Não é bem isso. O Pitanga gostava demais dos pastéis quando começou a freqüentar nossa casa. É uma tradição na minha família tratar bem quem chega lá em casa, e você dá aquilo que sabe fazer melhor. Então eu fazia uns pasteizinhos para o Pitanga, e ele gostava demais. Estou muito sem tempo, mas sempre faço uma comidinha que ele e nossos filhos gostem. Não quero abrir mão disso, porque na política é tudo passageiro.

O que conseguiu dar aos netos que não teve na infância?
Pelo menos eles estão estudando na época certa. Eu fiz o primário e depois fui autodidata. Batalhei para completar o segundo grau e só fiz a universidade com 40 anos. Meus netos estão estudando de acordo com a faixa etária. A mais velha, Ana, está com 18 e fazendo o pré-vestibular. Ela acabou de voltar dos Estados Unidos, onde ficou um ano fazendo curso de inglês. Ela e os outros três (Benito, 16, Ettiene, 15, e Diego, 11) têm muito mais chances do que eu.

O que acha de Roseana Sarney, a primeira mulher a se candidatar, com chances, à Presidência?
Ela é uma política e está perseguindo sua trajetória. A observação que faço é sobre o que ela representa: não é um projeto de renovação, que possa dar combate às desigualdades sociais do País. Não estou tratando de política de gênero e muito menos racial. Me colocaria da mesma forma sobre a candidatura de um negro ou de uma negra.

E qual a expectativa de disputar o governo com a primeira-dama Rosinha Matheus?
Espero ganhar. Vou tratá-la como estarei tratando os demais candidatos. Não escolho adversários.

A senhora já trabalhou com Garotinho. Ele daria um bom presidente?
Meu candidato é Luiz Inácio Lula da Silva.

Dia 8 é o Dia Internacional da Mulher. O que mudou para você?
Sou uma vitoriosa. Na família, na política e na relação com os amigos. Nesse 8 de março, podemos levantar bandeiras que ajudaram na trajetória de cada uma de nós. Estamos um pouquinho aquém, mas houve grandes evoluções. O ano que passou foi pesado para as mulheres, com guerras, mortes. Espero no próximo 8 de março festejar com mais alegria. Não deixo de agradecer por mais essa data, sem esquecer que a luta continua.

domingo, 26 de setembro de 2010

CHAPA BRANCA

A matéria era sobre uma grande mulher, mãe de nove filhos, cinco deles adotados. Era o perfil da mulher do governador do Rio de Janeiro, num momento em que ela adentrava na vida pública para nunca mais sair. Nos jardins do Palácio Laranjeiras, Rosinha Garotinho contou como conciliava a administração do lar com os compromissos no governo. Contou também bastidores de seu relacionamento com o então governador Anthony Garotinho e otras cositas más, tudo num tom descontraído, de felicidade plena, de harmonia sem fim com a vida.

Denúncias contra o então governador? Intrigas da oposição? O jogo sujo da política estadual? Não, não havia espaço pra isso na matéria, que foi assinada também pela Vivianne Cohen e está aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 41, de 15 de maio de 2000

“A gente não sabe o dia de amanhã, mas não tenho pretensão política”

O ano era 1994. Derrotado na eleição para o governo do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho acabara de se converter à religião evangélica e conversava com o pastor Antônio Carlos Costa em sua casa. Garotinho se lamentava de que a mulher, Rosângela Barros Assed Matheus, não aceitava sua conversão. Nesse exato momento, ela entrou na sala e, indignada, expulsou o pastor de sua casa. Hoje, evangélica, Rosinha, 37 anos, ainda conserva a mesma personalidade forte. Em meio à crise enfrentada pelo governador Anthony Garotinho, motivada por denúncias de corrupção na sua administração, ela assumiu a Secretaria de Ação Social e Cidadania há duas semanas. Na pauta de prioridades estão a reforma dos abrigos que recolhem a população de rua e a criação de cursos profissionalizantes e de uma segunda clínica de dependentes químicos. “Ele estava precisando de mim nessa hora”, argumenta Rosinha. “Eu só posso contratar quem eu puder demitir”, diz Garotinho. “Se um dia eu tiver de demiti-la, minha vida estará destruída”, conclui o governador.
Ao assumir o posto, Rosinha realizou um antigo desejo de Leonel Brizola. Desde 1986, quando Garotinho se elegeu deputado estadual, o cacique do PDT queria incluir a atual primeira-dama entre os candidatos do partido. A preocupação com os filhos, no entanto, sempre falou mais alto. Até agora. “A gente não sabe o dia de amanhã, mas não tenho pretensão política”, garante. Na nova função, Rosinha teve de abrir mão de alguns hábitos. Contar histórias para os filhos e almoçar em casa, por exemplo, são compromissos que não se encaixam mais em sua agenda. “Disse aos meus filhos que seria por pouco tempo e eles entenderam.”
Na vida pública Rosinha é estreante. Mas a matriarca dos Matheus é uma veterana em assuntos domésticos. Em casa, ela conseguiu a proeza de organizar a vida em família na atual residência do governador, o histórico Palácio Laranjeiras, recheado de móveis antigos, quadros valiosos e outras relíquias. No primeiro andar, somente a cozinha e dois quartos podem ser freqüentados pela garotada. O restante é área proibida. “Quando fomos morar no palácio, levei todos para conhecer a parte onde eles não poderiam ir”, conta Rosinha. “Mostrando, a gente mata a curiosidade”, explica. As regras não param por aí. Andar de biquíni fora da área da piscina é terminantemente proibido.
Na área residencial do palácio, os filhos dividem os quartos. No primeiro, dormem Vladimir, 15 anos, e Altamir, 23, o irmão caçula que a primeira-dama adotou como filho quando sua mãe morreu, há 17 anos. O segundo pertence a Anthony, 10, e a Wanderson, 8, filho da babá, Mara, também adotado. Clarissa, 17, dorme sozinha, depois que Aparecida (outra filha adotada), 25, se casou e foi morar em Campos. Os outros três – Clara, 5, Amanda, 13, e Davi, de 1 ano – dividem o mesmo quarto. Amanda é filha de outra babá, Neti, e Davi foi adotado ainda recém-nascido, durante um jantar na casa de um correligionário do governador, que é dono de uma creche. “Ele tinha sido abandonado e decidimos ficar com ele”, diz Rosinha.
A princípio, a primeira-dama não queria morar no palácio, mas a necessidade a fez mudar de idéia. “Onde iria arrumar um lugar para abrigar todos os meus filhos com o salário do governador?”, questiona. E explica: “Não queria que meus filhos achassem que morar num palácio era a melhor coisa do mundo.” Rosinha também preparou os filhos para enfrentar o preconceito. Segundo ela, não foram poucas as vezes em que Aparecida e Wanderson – ambos negros – foram discriminados por convidados. A mãe de uma colega de Amanda do tradicional Colégio Sion, no Rio, proibiu a filha de brincar com a amiga quando descobriu que ela era adotada. “Sempre converso com meus filhos sobre o que pode acontecer”, diz a primeira-dama. “Quando acontece, eles já estão preparados.”
Não foi diferente durante a crise recente no governo. Quando foram publicadas nos jornais as primeiras denúncias, Rosinha chamou os filhos e explicou que eles poderiam ouvir gozações e ofensas ao pai. A estratégia teve efeito prático. Durante um seminário na Faculdade Cândido Mendes, onde Clarissa cursa o primeiro período de Direito, um dos palestrantes falava mal do governo Garotinho. A filha do governador pediu a palavra no fim da preleção e defendeu o pai. “Ela foi mais aplaudida do que o palestrante”, conta a primeira-dama. Clarissa, aliás, é a filha que mais gosta de política na família. Na última eleição, ela chegou a subir ao palanque em Campos, enquanto os pais faziam campanha no Rio. Em casa, ela cumpre as regras estipuladas pela mãe. “Tenho hora para chegar em casa, senão levo bronca e fico de castigo”, confessa.
No palácio, a rotina das crianças em nada lembra a dos príncipes. Vladimir, por exemplo, não tem moleza. Acostumado a ficar em recuperação na escola, ele trabalha como digitador no Palácio Guanabara e ganha o salário mais baixo pago pelo governo. Antes disso, ele teve aulas com os garçons que trabalham no palácio. A idéia partiu de Rosinha. “Meus filhos ficam muito presos em casa. Têm de aprender a se virar de alguma forma.”
Desde que Garotinho começou a se destacar na política, os filhos não saem sem seguranças por perto. A falta de tempo do casal fez com que Rosinha contratasse uma orientadora para os três filhos menores – Anthony, Wanderson e Clara –, mas ela não deixa de participar da educação. “Vou na escola nas reuniões de pais e assino as cadernetas.” Conversas sobre namoros, cuidados com doenças e puberdade também são freqüentes. Tudo é dividido com o governador. Nos fins-de-semana, Rosinha aproveita para sair com os filhos e os amigos deles. De uma vez só, levou 16 crianças ao teatro.
A harmonia do casal só é quebrada nos detalhes. “Garotinho gosta de banho frio e minha água é fervendo”, diz a primeira-dama, citando apenas um exemplo das divergências. Na praia, as diferenças também aparecem. Enquanto o governador gosta de sol e de ficar na água, Rosinha fica embaixo da barraca. Nada que provoque alguma discussão séria. “São 18 anos de casamento. Já tínhamos muito em comum e fomos nos moldando com o tempo.”
A afinidade vem desde os tempos do teatro, quando os dois se conheceram, em 1979. Garotinho acabara de levar para Campos o teatro do oprimido, depois de fazer um curso com Augusto Boal, no Rio. A dupla chegou a fazer sucesso até em performances dentro dos ônibus da cidade. Numa campanha contra um aumento da passagem, os dois simulavam discussões dentro do ônibus e incitavam os passageiros a se rebelar. “A Rosinha levava bronca da mãe porque passava o dia inteiro no teatro”, conta Maria Helena Gomes da Silva, 42, amiga da primeira-dama.
Nessa época, Garotinho ainda era Bolinha, o apelido que ele ganhou ao nascer, com cinco quilos. Já o codinome de Rosinha foi criado pelo marido, em uma das inúmeras poesias que ele escreveu para a mulher. Eram tempos difíceis. No início dos anos 80, o atual governador era radialista e despontava na política, mas chegou a ficar desempregado duas vezes. “Sofremos perseguições porque Garotinho era uma liderança nova”, lembra Rosinha. O que sustentou a família na época foram doações da população mais pobre de Campos. “Cheguei a fazer uma panela de arroz 22 vezes num dia, porque as pessoas davam comida mas ficavam pra almoçar.”
A única grande crise atravessada pelo casal aconteceu em 1994, quando o governador virou evangélico, após sofrer um acidente de carro. Rosinha não aceitou a troca do antigo discurso materialista pelas orações. Enquanto a primeira-dama não perdia um baile de sábado no Carinhoso, antiga gafieira de Ipanema, o marido a acompanhava a contragosto. A situação só mudou depois de dois anos, quando a primeira-dama se converteu. A resolução de uma crise que quase impediu a segunda candidatura de Garotinho à Prefeitura de Campos foi o motivo. “Foi a primeira vez que rezei, e deu certo.”
Atualmente, Rosinha freqüenta os cultos toda semana, dá 10% do que ganha na Secretaria para a igreja e tem três bíblias. Mas não deixou a vaidade de lado. Depois da lipoaspiração na barriga em fevereiro, ela aguarda para voltar às aulas de alongamento. Visitas semanais ao salão de beleza e idas esporádicas ao spa também fazem parte de sua rotina. Tudo para continuar mantendo a família em ordem, tocar os projetos da Secretaria e apoiar o marido sempre. Sem perder a pose. “Ela é o braço direito da família inteira”, diz Wilma Barros, tia e madrinha de Rosinha. A primeira-dama aceita ser considerada o braço direito da família, mas que ninguém diga perto dela a velha máxima de que atrás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. “Ao lado é melhor”, conclui.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

POLÍTICA, COM O PERDÃO DA PALAVRA

De quatro em quatro anos, é sempre a mesma coisa. Acaba a Copa do Mundo e eles entram em cena, com sorrisos impecáveis, simpáticos toda vida, ou sérios, o olhar para o horizonte, a mirar futuras realizações; alguns de terno engomado, a gravata italiana e o rosto sem rugas, outros deliberadamente despojados, com a cara do povo. E todos com o mesmo objetivo: o seu voto, amigo eleitor.

Depois de uma série dedicada ao velho esporte bretão, no embalo da Copa na África do Sul (em que perdemos de novo, dessa vez graças a uma falha bisonha do tal “melhor goleiro do mundo”), o Relatos pede licença – e desculpas – à multidão de leitores para desovar por aqui algumas matérias sobre essa gente estranha, que infesta as ruas das nossas cidades em fotografias de rostos sorridentes, ou sérios, altivos, com olho fixo no horizonte de novas conquistas, ainda que estas sejam apenas um salário de deputado e a possibilidade de nomear algumas dezenas de assessores.

Serão duas séries de reportagens dessa vez, entremeadas por mais uma imperdível aventura de Honório, o Gurgel. A primeira série será dedicada à política local, com matérias protagonizadas por alguns dos personagens que ajudaram a transformar nosso amado estado do Rio de Janeiro nisto que vemos hoje. Depois o foco será a política nacional, os últimos 16 anos, em que muita coisa melhorou e outro tanto continuou na mesma.

Pra começar, esta matéria despretensiosa sobre os primeiros três meses de governo do prefeito Luiz Paulo Conde, cria de César Maia, quando as conquistas da primeira administração do prefeito maluquinho, que lhe renderiam mais duas vitórias eleitorais, começaram a ruir. Assinado também pelo Renato Cordeiro, o texto não deixa de ser mais uma humilde homenagem deste blog ao inesquecível JB, que a partir de hoje não existe mais, pelo menos em sua mais que centenária edição impressa.

Jornal do Brasil, edição de domingo, 30 de março de 1997

“Meu lema será o mesmo de César Maia. Vamos governar na ordem e na lei”

Prestes a completar três meses de governo, o prefeito Luiz Paulo Conde começa a enfrentar problemas que pareciam extintos pela mão-de-ferro de César Maia. A volta gradual dos camelôs a Copacabana, o tumulto causado pelas vans e táxis no trânsito e a depredação de equipamentos do Rio Cidade são exemplos de que, pelo menos no início de sua administração, Conde tem dificuldades em conciliar seu estilo bonachão com o dia-a-dia agitado do Rio. Apesar de continuar bem distante do estilo César Maia, o prefeito se esforça para mostrar que as coisas não vão mudar muito no Rio nos próximos quatro anos. “Meu lema será o mesmo de César Maia. Vamos governar na ordem e na lei”, afirma.
Para provar o que diz, Conde anuncia um novo plano de ação para a Guarda Municipal, marca registrada da prefeitura de César Maia. “Estamos fazendo um concurso para recrutar mais 2 mil homens e já pedi um plano de ação ao Amêndola (coronel Paulo César Amêndola, superintendente da Guarda Municipal), principalmente para o Aterro do Flamengo e Copacabana”, disse o prefeito, na última quinta-feira.
O anunciado reforço da Guarda Municipal nunca foi tão necessário para a continuidade do governo César Maia. Afinal, nos últimos três meses o afrouxamento na repressão levou os camelôs de volta à Zona Sul e facilitou a ação de vândalos, que não se intimidaram em destruir equipamentos do recém-inaugurado projeto Rio Cidade.
Em Copacabana, os camelôs continuam longe das vias principais, como a Nossa Senhora de Copacabana e a Barata Ribeiro, mas voltaram a armar barracas em outras sem o menor constrangimento. As calçadas da Rua Bolívar, por exemplo, viraram ponto de concentração dos vendedores, que disputam espaço com os pedestres e os buracos da expansão da NET. “Eles estão retornando. Só espero que o bairro não volte a ser o que era”, diz o aposentado Adalberto de Castro, 62 anos.
Não são apenas moradores de Copacabana que temem pelo futuro do que consideram boas realizações da prefeitura. “Está havendo um choque. Tínhamos um governo cheio de obras e novidades e, agora, temos um totalmente paralisado”, critica a guia de turismo Adriana Páscoa, 27, moradora de São Conrado. O paisagista aposentado Alberto Attademo, 71 anos, critica a conservação do Rio Cidade. “Está faltando uma boa fiscalização para evitar a degradação do projeto”.
Alberto tem razão. Nas últimas semanas, diversos abrigos de pontos de ônibus foram depredados na Avenida Ataulfo de Paiva, no Leblon, onde o Rio Cidade foi inaugurado em outubro do ano passado. Já em Botafogo, os pilares de concreto que serviriam de base a outros abrigos ficaram abandonados na Rua Voluntários da Pátria. Conde aposta no reforço da Guarda Municipal para acabar com o vandalismo e retirar os camelôs definitivamente das ruas. “Com a volta às aulas aumentamos as rondas escolares, mas vamos tirar a Guarda do trânsito, que ficará a cargo só da PM e da CET-Rio, e reforçar o patrulhamento urbano”, diz o prefeito.
O trânsito, aliás, é mais um dos problemas enfrentados por Conde neste início de governo. Desde que assumiu, o prefeito se viu às voltas com a guerra das tarifas dos ônibus intermunicipais – os donos das empresas se recusaram a cobrar a tarifa única de R$ 0,55 nos limites do Rio, conforme estipula o decreto 15.578 da prefeitura –, com anúncios de reajuste nas passagens dos ônibus municipais e com a polêmica envolvendo as vans.
“Encomendamos um estudo à Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ e em 15 dias receberemos a proposta deles para reorganizar as linhas de ônibus. Quero discutir com os empresários e apresentar o melhor plano possível à população, dentro de seis meses”, conclui o prefeito.

sábado, 21 de agosto de 2010

HONÓRIO, O GURGEL – A BLITZ

A impressão hoje é que a rotina durou uma década, mas na verdade não chegou a completar dois anos. À meia-noite em ponto, ou alguns minutos antes dela, ou alguns minutos depois, o homem da madrugada adentrava no cubículo da escuta do saudoso Jornal do Brasil. Chegava como que do nada e aparecia na porta com seus quase 1,90m de altura, o corpo esguio, os cabelos grisalhos e a pele, negra, a exibir as rugas, nem tantas assim, de uma vida inteira atrás da notícia, e fugindo dela também, porque trabalhar de meia-noite às sete sem ao menos uma soneca no meio do expediente – ou um filme de três horas no vídeocassete – era, de fato, humanamente impossível.

Surgia com certa cara de sono, fazia a saudação habitual e a pergunta de todas as noites, à espera da resposta que em 99% dos casos era aquela que ele queria ouvir:

Tudo tranquilo.

Dito isso, eu e o co-piloto podíamos nos considerar livres, pendurar nossas bolsas a tiracolo e atravessar, de ponta a ponta, o lado maior do H da redação do JB na Avenida Brasil, 500, até o hall dos elevadores, dois de um lado, dois do outro, sem esquecer de dar boa noite ao boêmio alemão, que ficava ali no traço de ligação entre as duas retas do H, na primeira página, a exercer a função de secretário-gráfico, e que às vezes nos encontrava uma ou duas horas depois, no Lamas, ou no Cervantes, ou, mais provavelmente, no Bukowski.

Do elevador, no térreo, eram apenas mais alguns passos até o estacionamento, muito bem apelidado de Rock in Rio, onde Honório nos esperava em meio à terra batida, aos tufos esparsos de mato ralo e, não raramente, à lama. Toda noite era a mesma coisa. Honório nos atravessava para o outro lado do túnel Santa Bárbara, onde buscávamos no chope gelado (o co-piloto no Jack Daniel`s, quem diria) o merecido relaxamento após a bruta labuta noturna.

Naquela noite, porém, o co-piloto esqueceu o casaco, o que obrigou Honório a pegar o retorno para o jornal e dar de cara, bem embaixo da perimetral, com uma blitz da valorosa Polícia Militar do Rio de Janeiro. O PM fez sinal e eu, sem um documento sequer do carro que estivesse em dia, com um estepe que já havia ultrapassado em muito a condição de careca, encostei o Gurgel.

Para escapar, era preciso ser rápido, e antes que o digníssimo policial solicitasse a documentação do veículo, eu e o co-piloto sacamos de nossos crachás de prestadores de serviço do JB, ambos verdes, retangulares e vencidos, o dele há alguns meses, o meu há mais de um ano. E funcionou. Ao olhar a logomarca do JB, com o prédio da Av. Brasil praticamente à nossa frente, o gentil PM sensibilizou-se. Nos deixou seguir na direção do jornal, sem pedir um documento sequer, e ainda nos recomendou cautela com o estepe, que, guardado do lado de fora, na traseira do Gurgel, ostentava, numa superfície totalmente lisa, um tufo de borracha do tamanho de uma bola de sinuca, a sair do que parecia ser, sim, e era, um buraco.

Agradecemos a preocupação do guarda e seguimos viagem, sem um documento do carro sequer, salvos pelo JB, pelo saudoso JB da Avenida Brasil.

A matéria abaixo é bem típica do amor que o velho, aristocrático Jornal do Brasil nutria pelo Rio, sim, também, mas muito mais pela Zona Sul, Ipanema principalmente.

Jornal do Brasil, edição de terça-feira, 8 de abril de 1997

"Não vou ficar correndo atrás da areia para achar meu ponto"

Nos últimos três meses, as areias que viram surgir a tanga, o fio dental, o apitaço e outros modismos deixaram de ser apenas cenário para participar ativamente do verão carioca. Sumindo do Arpoador, aumentando de tamanho no Leblon e saindo de fininho de Ipanema, o balanço da principal matéria-prima da mais badalada praia do país surpreendeu os mais experientes banhistas, virou atração para turistas e vem preocupando os freqüentadores da orla.
Nos últimos dois dias, a ressaca que atingiu a orla da Zona Sul deixou até os mais céticos moradores de Ipanema temerosos de que a praia, que já carregou as Dunas do Barato, tivesse o mesmo destino do Arpoador de hoje. Alheios às explicações de especialistas que se esforçam para tranqüilizá-los, esses freqüentadores não conseguem se acostumar com a nova ordem e temem perder o espaço que melhor traduz a irreverência e o bom humor de quem vive no Rio.
Para o estudante de Comunicação Social Júlio César Vasconcellos, de 23 anos, a ressaca dos dois últimos dias, que reduziu consideravelmente a faixa de areia de Ipanema, é motivo de alerta. "Parece que até a areia está desaparecendo. Só falta isso aqui ficar igual ao Arpoador; vai ser o caos", diz o estudante, alarmado com a possibilidade de perder sua principal área de lazer. "A praia é nossa ´nica diversão gratuita e vem agora a natureza querer tirar ela da gene. Isso não pode acontecer", completa o morador de Ipanema e freqüentador do Posto Nove.
O programador de computação Jeferson de Oliveira, de 20 anos, faz coro com Júlio César. "A prefeitura tinha de fazer em Ipanema o mesmo que foi feito no Leblon. Se deram um jeito lá também vão dar aqui", sugere. Já a professora de vôlei Tatiana Kelab, 19, tem outra solução para acabar com qualquer ameaça contra a praia. "Basta alargar os canais do Jardim de Alá e da Rua Visconde de Albuquerque", afirma.
Paulo César Rosman, professor de Engenharia Costeira e Oceanográfica da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, vê na ressaca não uma ameaça, mas uma volta à dinâmica natural do litoral do Rio. Para ele, os fenômenos registrados nesse ano foram causados exatamente pela ausência de ressacas como a de domingo no ano passado e pela falta de chuvas em janeiro e fevereiro deste ano, que atrapalharam a migração natural das areias cariocas.
Longe de ser motivo de susto para quem mora na praia, o vaivém da areia faz parte do processo litorâneo normal. "Todo ano, uma quantidade equivalente a 50 mil caminhões de areia transita de um lado para o outro, levada pelas ondas. O problema é que não choveu o bastante em janeiro e fevereiro para que as ressacas, que também costumam ocorrer nessa época do ano, devolvessem a areia para o Arpoador. Essa última ressaca é um indício de que a situação começa a se normalizar", diz Paulo César.
Segundo Paulo César, a ressaca realmente levará de volta a areia ao Arpoador, deixando o Leblon de novo mais magro. "A chuva e o mau tempo geralmente trazem com eles o vento Sudoeste, que forma as ondas que levam a areia do Leblon ao Arpoador. Essa situação ocorre predominantemente entre os meses de abril e setembro. No resto do ano, o movimento do vento e das ondas costuma ser o inverso", explica o professor.
Toda a enorme faixa de areia que fez a festa dos moradores do Leblon no verã desapareceu durante a ressaca, mas o fenômeno registrado no domingo não é um sinal de que as 684 mil toneladas de areia despejadas pela prefeitura no bairro foram inúteis. "Quem diz isso está falando besteira. Da mesma forma que foi embora, a areia vai voltar", diz Paulo Cesar.
Há quem duvide. Impaciente, Júlio César não gosta da idéia de esperar a variação da maré ara ir à praia. "Não vou ficar correndo atrás da areia para achar meu ponto. E prefiro nem pensar na hipótese de ela desaparecer, apesar de ter me assustado com essa ressaca", conclui o estudante., traduzindo a inquietação de quem teme ficar sem praia no fim de semana que vem. E no outro...

sábado, 31 de julho de 2010

O CARA

Na primeira abordagem, o cara riu, depois de uma pelada entre veteranos no Maraca em que o grande destaque foi o alemão Voëller, campeão mundial em 1990. Andava ofegante, as meias arriadas, a camisa para fora da calça, ainda molhada, e ao ser abordado pelo repórter da revista brasileira de celebridades pedindo uma hora de entrevista no dia seguinte, achou fôlego para repetir o tempo pedido, One Hour?!, e rir. O repórter insistiu, dessa vez bem mais modesto, e pediu Half an Our como uma súplica. O cara, eleito o melhor jogador do mundo por três vezes na década de 80, falou para o repórter passar no hotel no dia seguinte.

Craque das Copas do Mundo de 78, 82, e 86, o cara hoje é presidente da UEFA, mas na época iniciava sua carreira política no futebol. Era apenas conselheiro da FIFA, sem poder de voto para nada. Estava no Rio para o primeiro Campeonato Mundial de Clubes da entidade, de belas e fatídicas lembranças, e o evento no auditório do hotel cinco estrelas, nas pedras de São Conrado, era uma espécie de balanço do torneio, na véspera da decisão. Na mesa, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, discorria sobre alguma coisa; o cara, por sorte, estava sentado no meio do auditório, longe da primeira fila e com alguns lugares vagos atrás dele.

Já tinha esquecido do encontro da véspera, com certeza, e por isso foram necessárias mais duas abordagens, a primeira discreta, em sussurros, para a assessora ao lado dele enquanto Blatter falava, sem parar, sobre algum dado importante. Muito educada, na elegância de seu tailleur azul, o corpo esguio, os cabelos escorridos, na maioria amarelos, e o rosto com os vincos naturais da idade, a assessora não passou a menor garantia de que ajudaria, então a segunda abordagem foi direta, depois que Blatter encerrou o evento.
Campeão europeu e mundial de clubes em 1985, quando marcou um dos gols anulados mais bonitos da história, o cara ficou surpreso de novo, mas pareceu ter se lembrado do encontro da véspera, no estacionamento do Maracanã. Disse para o repórter esperar na piscina do hotel e para lá também se dirigiu. Ficou um tempo conversando com dois sujeitos no bar da piscina e depois saiu. Andou ao encontro do repórter, que esperava, gravador em punho, numa fila de espreguiçadeiras. Sentou numa delas, o repórter na outra, o gravador na mesinha de plástico entre as duas, e deu a entrevista, que durou pouco mais de quarenta minutos.

Revista Istoé Gente, edição número 25, de 24 de janeiro de 2000

"Jogamos duas semifinais contra a Alemanha, em 1982 e 1986. Precisávamos ganhar, mas os juízes não fizeram a parte deles. Em 1982, venceríamos se o juiz tivesse expulsado o Schumacher e marcado penâlti quando ele atingiu Battiston dentro da área. Já em 1986 fiz um gol e o juiz julgou que eu estava impedido. Não estava, mas o que podia fazer?"

Para quem gosta de futebol, o atual conselheiro da Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), Michel Platini, 44 anos, dispensa apresentações. Considerado o melhor jogador da história do futebol francês e um dos melhores do mundo, nas décadas de 70 e 80, Platini fez fama na seleção de seu país e em times como a Juventus da Itália, onde conquistou a Copa Toyota de 1985, o equivalente na época ao campeonato mundial interclubes. Eleito o melhor jogador do planeta por três vezes consecutivas, em 1983, 1984 e 1985, ele só não conseguiu ganhar uma Copa do Mundo como atleta.
Atualmente, o ex-craque trabalha como uma espécie de embaixador do futebol. Em novembro, Platini assistiu à derrota do Palmeiras para o Manchester United, na Copa Toyota. Na semana passada, ele esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro, prestigiando o primeiro Campeonato Mundial de Clubes organizado pela Fifa. Em entrevista a Gente, realizada na véspera da decisão entre Vasco e Corinthians, o francês defendeu a realização da Copa do Mundo de 2006 na África, criticou o individualismo de Rivaldo e relembrou alguns momentos de sua carreira de jogador, como o histórico jogo entre Brasil e França, na Copa do México, em 1986. O ex-jogador também fugiu do futebol para contar que o mais velho de seu casal de filhos, Laurent, foi concebido no Rio, em 1978. A outra filha de Platini é Marine, 9 anos. "Esse lugar é especial para mim", afirma ele, sentado numa espreguiçadeira do Hotel Sheraton, de frente para o mar de São Conrado.

O que você achou deste primeiro Campeonato Mundial de Clubes da Fifa?
O sucesso da competição é inegável, e isso pode ficar provado pelos comentários dos jogadores, da imprensa especializada e até pelos índices de audiência das televisões que transmitiram o campeonato, que foram altos em todo o mundo. Para o futuro, o torneio deverá ficar ainda melhor. Ele veio para ficar.

Em 1985, você ganhou a Copa Toyota com a Juventus de Turim, quando o torneio era considerado o mundial de clubes. Com o novo campeonato da Fifa, qual será o verdadeiro mundial interclubes?
Considero-me campeão mundial de 1985 porque a Copa Toyota valia esse título na época. Só que isso acabou com o novo torneio. A partir de agora, o time campeão mundial sairá do campeonato organizado pela Fifa. A Copa Toyota passará a ser uma disputa entre o campeão europeu e o campeão sul-americano.

Pelo que mostrou ao organizar o mundial de clubes, o Brasil pode sediar a Copa do Mundo de 2006?
O Brasil é um grande país e tem condições de organizar uma Copa. Só que na mesma situação de vocês estão a Alemanha, a Inglaterra, Marrocos e África do Sul (outros países que se candidataram). Não tenho poder de voto na Fifa, mas acho que 2006 seria um ótimo momento para o continente africano, que nunca organizou uma Copa do Mundo. A América do Sul poderia ser beneficiada em 2010. A hora agora é da África. Há tempos que o futebol de lá vem evoluindo e, na minha opinião, merece essa chance, até para se aprimorar ainda mais.

Depois da Copa de 1998, o futebol brasileiro continua sendo o melhor do mundo?
Pelo que já fez e por toda a sua tradição, o Brasil será sempre um dos três melhores do mundo. Mas apontar o melhor é sempre difícil. Vocês podem argumentar que a final do mundial de clubes foi disputada por dois times brasileiros, mas se o campeonato fosse na Europa, a decisão mais provável seria entre duas equipes européias. Então diríamos que o futebol europeu é melhor. O fato é que não se pode apontar um país apenas como o melhor, mas o Brasil será sempre um grande e lindo país do futebol.

Antes de assumir o cargo na Fifa, você chegou a ser técnico da seleção francesa, depois que abandonou o futebol, em 1987. Pensa em voltar?
Não. Fui técnico da França entre 1988 e 1992, peguei o time nas eliminatórias para a Copa de 1990, quando não tínhamos quase nenhuma chance e acabamos eliminados. Depois fizemos uma boa campanha nas eliminatórias do Campeonato Europeu, mas na fase final perdemos da Dinamarca, que acabou sendo a campeã. Não suporto mais ficar sentado no banco, dependendo do que os jogadores estão fazendo dentro do campo. Prefiro ficar com minha função na Fifa. Assim continuo convivendo com meus amigos do futebol, sem tanto estresse.

E no Brasil, quem são os amigos?
Zico é um de meus grandes amigos. Tenho orgulho de ter sua amizade. O Brasil, aliás, é um lugar especial para mim. Foi no Rio de Janeiro que eu e minha mulher (Christel, 43 anos) concebemos nosso primeiro filho, durante umas férias em 1978. Eu e mais alguns jogadores viemos para cá com nossas mulheres depois que a França foi eliminada na primeira fase da Copa do Mundo da Argentina. Voltei em 1979 e 1980 e depois só vim 16 anos depois, já como presidente do comitê organizador da Copa de 1998. Espero voltar muitas vezes.

O brasileiro Rivaldo já ganhou vários prêmios como o melhor jogador do mundo em 1999 e é o favorito para receber o título da Fifa, na eleição do próximo dia 24. Você concorda com essa escolha?
Pessoalmente, prefiro os jogadores mais coletivos. Rivaldo é um excelente atacante e joga sempre para o gol, mas é um pouco individualista para o meu gosto. Ganhei esse título três vezes e posso dizer que acho tudo muito subjetivo. Você pode gostar do jogo de Zidane, e não gostar de Rivaldo. Pode gostar de Ronaldo e não gostar de Zidane. Rivaldo é bom, mas não diria que ele é o melhor do mundo.

E qual é o melhor jogador do mundo, na sua opinião?
Como falei, prefiro quem joga para o time. Poderia citar Zidane, Veron (apoiador argentino que joga na Lazio), Figo (meio-campo português do Barcelona) ou Beckham (armador inglês do Manchester United), mas prefiro não escolher um nome. Talvez em 15 anos eu possa responder essa pergunta, já que o importante será o jogador que ficar na lembrança dos torcedores. Aqui no Brasil temos Pelé, Rivelino, Zico e muitos outros que entraram para a história. Prefiro esperar para ver quais os craques dessa geração que também entrarão.

Ronaldo seria um deles?
Acho que sim. O futebol precisa de Ronaldo. É muito importante que ele volte, readquira a antiga forma e seja novamente considerado um dos melhores ou mesmo o melhor do mundo.

E da sua geração, qual foi o melhor jogador?
Também é difícil dizer. Um termo de comparação seria o campeonato italiano, que reunia os maiores craques do mundo na minha época de jogador. Só que Maradona começou a se destacar depois que eu abandonei o futebol. Zico, por sua vez, foi para o Udinese, um clube sem expressão. Acho que a torcida de Turim me considera o maior. Já os napolitanos acham que foi Maradona. Provavelmente, o pessoal de Udine considera Zico o melhor.

O que lhe deu mais prazer, eliminar o Brasil na Copa do Mundo de 1986 ou ver a França ganhar a Copa em 1998?
Foram dois grandes momentos. O jogo de Guadalajara, em 1986, foi fantástico. Os dois times jogaram muito bem, mas foi um dia de sorte para nós. Já a final de 1998 foi o grande dia do futebol francês. Ganhamos a Copa depois de tantas chances desperdiçadas, em tantos anos. Era presidente do comitê organizador da Copa e, ao entregar as medalhas de segundo lugar para Roberto Carlos, Dunga e Ronaldo, disse para que eles não ficassem tristes. O Brasil já era tetra, mas para nós era a primeira vez. O jogo de 1986, porém, foi significativo para mim. Naquele 21 de junho, eu completei 31 anos e marquei meu último gol pela seleção francesa (a partida valeu pelas quartas-de-final da Copa e terminou 1 a 1. A França ganhou nos pênaltis).

Ficou alguma frustração por não ter conquistado a Copa do Mundo como atleta?
Jogamos duas semifinais contra a Alemanha, em 1982 e 1986. Precisávamos ganhar, mas os juízes não fizeram a parte deles. Em 1982, venceríamos se o juiz tivesse expulsado o Schumacher (goleiro alemão) e marcado penâlti quando ele atingiu Battiston (meio-campo francês) dentro da área. Já em 1986 fiz um gol e o juiz julgou que eu estava impedido. Não estava, mas o que podia fazer? (Em 1982, a França perdeu da Alemanha nos pênaltis. Já em 1986, a semifinal terminou 2 a 0 para os alemães.)

A respeito de Maradona, como você se sente vendo mais esse problema dele relacionado com a cocaína?
Diego Maradona é uma pessoa de quem eu gosto, porque ele é bom. Mas comete muitos erros, e o maior deles é esse envolvimento com a droga. Espero que se recupere. Não falo isso nem pelo futebol que ele jogou, mas pelo próprio Diego Maradona, para o seu bem e de sua família. Joguei muito contra ele na Itália. Não posso dizer que somos amigos porque nunca fomos muito próximos, mas gosto dele porque ele é uma pessoa legal.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O VELHO LOBO SE RETIRA

Zagallo marcou a entrevista no playground do prédio e na hora marcada estava lá, sentando numa cadeira de plástico, com algumas folhas de papel na mão. Era o currículo dele, disse, como se precisasse daquilo para se apresentar. Uns seis meses antes, o Brasil tinha conquistado sua quinta Copa do Mundo, na Coreia do Sul e no Japão. Foi a primeira e até agora única sem a participação de Zagallo, bicampeão em 1958 e 62 como jogador, tri como treinador em 70 e tetra como coordenador técnico em 1994, o que lhe valeu a honra de ser o único técnico da história da seleção brasileira a ganhar o direito de um jogo de despedida dirigindo o Brasil. A entrevista aconteceu menos de um mês depois desse jogo, quando o Velho Lobo já estava plenamente recuperado de uma embolia pulmonar adquirida nas quase 50 horas de voo para ir e voltar da Coreia do Sul, onde o Brasil venceu os anfitriões por 3 a 2. Bem ao seu estilo, Zagallo minimizou o problema de saúde. O importante, mesmo, foi a vitória na despedida definitiva dos gramados. Justa vitória.

Abaixo, a entrevista

Revista Istoé Gente, edição 176, de 16 de dezembro de 2002

"Estou com quatro conquistas nas costas e, se não fosse isso, o Brasil não seria penta. Me considero penta porque todo brasileiro é penta. Cada um de nós tem de botar banca, sim"

Nada melhor do que os números para apresentar Mário Jorge Lobo Zagallo. Aos 71 anos, único homem a ostentar quatro Copas do Mundo no currículo, o alagoano de Maceió que começou a jogar futebol aos 17, no América do Rio, não esconde uma preferência especial pelas estatísticas da sua passagem como técnico da Seleção. Em 154 partidas, Zagallo venceu 110, empatou 33 e perdeu apenas 11. “É difícil alcançar esses números”, diz, sem falsa modéstia. Campeão mundial como jogador em 1958 e 1962, como técnico em 1970 e como coordenador técnico em 1994, o velho Lobo, como é conhecido, deu adeus como técnico da Seleção no último dia 20, dirigindo o Brasil na vitória por 3 a 2 sobre a Coréia do Sul, em Seul. Largar o futebol, porém, ainda não está nos seus planos. “A paixão continua. O futebol é minha vida”, diz o marido da dona-de-casa Alcina de Castro Zagallo, pai de quatro filhos e avô quatro vezes.

Sentiu medo quando foi internado recentemente?
Não, porque tive uma embolia pulmonar em conseqüência do tempo em que fiquei sentado para ir e voltar de Seul. Um coágulo se deslocou da perna e se alojou no pulmão direito. Poderia ocorrer com qualquer um, de qualquer idade. Só senti uma dorzinha quando puxava o ar. Felizmente, tinha um check-up de rotina marcado logo depois e comentei essa dor com o médico. Ele disse que era normal, afinal foram quase 50 horas sentado, na ida, na volta e esperando nos aeroportos. Viajo desde 1950 e só foi acontecer isso agora. Graças a Deus foi tudo bem. Daqui a um mês estarei liberado para jogar meu tênis quatro vezes por semana.

O médico deu alguma outra recomendação?
Disseram-me que em viagem longa tem de andar no avião. Só que ali tem umas 400 pessoas. Já imaginou se todos resolvem andar, como o trânsito ia ficar interrompido? Tem que rir agora, porque o susto já foi embora.

Como foi se despedir da Seleção na Coréia?
O coração até que agüentou bem. Me sinto honrado porque nunca aconteceu uma despedida de técnico como essa no esporte brasileiro. Acabou sendo um evento mundial, porque foi na Coréia, passou no mundo inteiro e foi bom também o resultado positivo. Me despedi com uma vitória e é sempre importante, porque futebol brasileiro é sinônimo de vitória.

Teve medo de perder o jogo final?
Na palestra antes do jogo disse aos jogadores que festa é muito bonita, mas com vitória. Com derrota, não adiantava nada. Foi difícil porque viajamos direto para o jogo, sem tempo de nos acostumar com o fuso horário. Tivemos que correr contra tudo e ainda jogar na casa do adversário, quarto colocado na Copa. Felizmente as coisas não poderiam ter sido melhores. Comecei vencendo e terminei da mesma forma a carreira de técnico da seleção.

Como foi assistir ao Brasil ser campeão do mundo como torcedor?
Sempre disse que, quando ganhávamos a Copa, proporcionávamos um Carnaval em junho e julho aos brasileiros. Demorou mas acabei tendo a alegria de curtir cada vitória na Copa como torcedor, porque lá dentro é uma adrenalina só. Quando você está no comando a responsabilidade é tão grande que você só comemora alguma coisa quando tudo acaba.

O senhor se considera pentacampeão?
Estou com quatro conquistas nas costas e, se não fosse isso, o Brasil não seria penta. Me considero penta porque todo brasileiro é penta. Cada um de nós tem de botar banca, sim, porque quando estávamos mal nas eliminatórias a Argentina estava aí nos gozando. Tiveram de engolir, não é? Agora vamos para o hexa.

Como avalia o trabalho do técnico Luiz Felipe Scolari?
Ele ficou com um rabo de foguete tremendo nas eliminatórias e não podia ser diferente, porque pegou o time numa situação delicada. Mas classificou e depois prosseguiu. Fazia uma variação entre o 3-5-2 e o 4-4-2, escolheu o primeiro e foi feliz. Sempre disse que o técnico tem que escolher um esquema e ir com ele até o fim. Ficar variando de um para outro é querer mostrar que sabe mexer em sistema,
mas o futebol não é isso.

Acredita que os técnicos fazem isso por vaidade?
Acredito que sim. Não tem essa de variar de jogador dependendo do adversário, ou passar alguém da ponta para o meio. Você pode tentar tudo antes de montar o time,
como fiz em 1970, avançando o Tostão, recuando o Piazza e tirando o Rivelino e o Clodoaldo do banco. Mas fiquei dois meses trabalhando em cima da minha idéia antes da Copa. Depois que acertei, não mexi mais e fomos campeões. Futebol é simples. Se há craques no time, eles têm de saber desempenhar a função no esquema.

Hoje, quem é craque?
Temos jogadores que já mostraram que são craques e se firmaram com o tempo. O Roberto Carlos é o melhor na posição dele. O Ronaldinho Gaúcho também se firmou e se desenvolveu ainda mais indo para a França. Ronaldo é outro, um fenômeno.

A recuperação de Ronaldo o redime da decisão de ter confiado nele em 1998?
O meu problema, entre aspas, com o Ronaldo foi a doença dele, o estresse emocional, convulsão ou como queiram chamar. Depois do problema na concentração, ele não estava escalado. Quando voltou da clínica, disse que queria jogar. Não foi vetado pelos médicos e eu o coloquei para jogar. Esse ano o Felipão acreditou nele e eu, nas crônicas que escrevia, apoiei essa decisão. Felizmente, o Ronaldo chegou lá, mesmo sem estar 100%, porque é um artilheiro nato.

Arrepende-se de tê-lo escalado em 1998?
Em absoluto. A doença dele é que deixou a seleção apática. Se não jogasse, o time sentiria da mesma maneira. Se eu não o escalasse, seria o único culpado. Mas escalei
o melhor jogador do mundo, que não tinha sido vetado e disse que queria jogar.

Levaria Romário para a Copa de 2002?
Tenho uma ação na Justiça contra Romário porque, quando ele foi cortado em 1998, inaugurava o Café do Gol e me botou sentado na privada (uma das caricaturas pintadas nas portas dos banheiros da boate de Romário no Rio) e, do lado, o Zico com papel higiênico. Mas o chamaria para a Copa, porque não misturo vida pessoal com profissional. É meu ponto de vista e respeito o do Felipão. Deve ter havido problemas quando o Felipão estava no comando, mas quem tem de falar disso não sou eu.

Ficou magoado com Romário?
Sempre o convoquei, mas quando o cortei ele me detonou. Fiquei magoado porque ele quis desmoralizar a mim e ao Zico. Entrei com ação porque a imagem correu mundo, em jornal e televisão. Já estivemos juntos novamente, nos cumprimentamos, mas ele não me pediu desculpas.

É verdade que o senhor estava trabalhando no Maracanã na final da Copa de 1950?
Estava como soldado da Polícia do Exército. Não fui convocado só para a Seleção. Fui também para o Exército e para tirar madeira do Maracanã. Trabalhei uns três dias retirando as sobras da obra do estádio. Na final, vi o jogo da arquibancada, com a farda verde-oliva, fazendo a segurança. Mas ninguém me falou que tinha de ficar de costas para o campo, vigiando a torcida, e não fiquei. Não ia perder a final da Copa.

Já imaginava o que faria no futebol naquela época?
Fico até arrepiado pensando nisso. Nunca podia imaginar, apesar de já estar jogando nos juvenis do Flamengo em 1950, que um dia seria o único a ser quatro vezes campeão do mundo e uma vez vice. Muitos acham que não, mas chegar à final de uma Copa do Mundo é coisa à beça.

Pensa em continuar no futebol?
Não vou dizer que dessa água não beberei. Como técnico da Seleção, me despedi. Toparia trabalhar como coordenador técnico de clube ou da Seleção. Não quero mais é ficar dentro das quatro linhas, mas pode ser que me dê uma coceirazinha e eu aceite algum convite de clube. No brasileiro desse ano recebi quatro convites, do Inter, do Botafogo, do Palmeiras e do Atlético Paranaense. Quase aceitei o do Atlético, mas achei que não era o momento.

Sua vocação de técnico se manifestou quando?
Comecei na meia-esquerda do América, com 17 anos. Já acompanhava bem o futebol e, naquela idade, tive a intuição de mudar para a ponta-esquerda para, num futuro, chegar à Seleção. Passei a jogar ali pra fugir da concorrência no meio, que tinha gente demais. Em 1958, fui convocado para a Copa, mas todos achavam que ia ser cortado. O Vicente Feola (técnico da seleção de 1958) percebeu que eu fazia a dupla função, jogando na ponta e fechando o meio-campo, e me confirmou como titular. Fui muito criticado, mas o tempo me deu razão. Hoje quem não faz isso não joga, tirando as exceções.

O início de carreira foi difícil?
Meu pai (Aroldo Cardoso Zagallo) era contra, apesar de gostar de futebol e ir aos estádios aos domingos. Na época todos achavam que jogador de futebol era vagabundo. Depois ele acabou deixando e ia sempre me ver jogar. Meu pai morreu em 1958. Até hoje acho que foi por causa das emoções que ele viveu ouvindo os jogos da Copa. Fomos campeões em junho e ele morreu em setembro.

Qual seu time de coração?
Meus dois clubes foram o Flamengo e o Botafogo, onde ganhei os principais títulos. Se disser que sou um ou outro, magoaria os torcedores de um dos dois. Então digo que sou América. Não magôo ninguém e ainda faço justiça com o meu primeiro clube.