segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A ÚLTIMA ENTREVISTA

As recomendações da chefe antes da entrevista beiravam o terrorismo. A Cássia Eller era muito difícil, tinha acabado de derrubar um daqueles pingue-pongues gigantescos da Playboy, contava a chefe, porque não gostou de uma pergunta da repórter. Ouviu a pergunta e encerrou a entrevista, no começo dela, deixando a repórter plantada. Além disso, continuava a chefe, a Cássia era ruim de falar, tímida em entrevistas simplesmente porque não gostava daquilo, e a cantora confessava isso sempre que perguntada. Pra arrematar, o horário da revista com ela seria o último de uma série marcada na sede da gravadora. Cássia Eller passaria a tarde inteira no mesmo lugar, fora de casa, fazendo algo que não gostava; e quando ela já estivesse mais do que saturada disso, haveria ainda mais um repórter, no caso eu, para fazer a última entrevista do dia.

O interesse de tantos jornais e revistas era mais do que justificado. Cássia Eller vivia o melhor momento de sua carreira. Depois de anos de marginalidade bem criticada, a cantora conhecia o sucesso, de vendas e de público, no nono disco, e por isso estava visivelmente cansada quando nos encontramos, ainda no pátio da gravadora, eu chegando e ela saindo da sala de entrevistas, achando, sinceramente, que seu suplício já tinha terminado. Quando a assessora disse que haveria ainda mais uma entrevista, a última, Cássia jogou a cabeça pra trás e deu um desses suspiros de quem se prepara para sofrer um pouco mais, antes do alívio final. Talvez tenha chegado a dobrar os joelhos no gesto, mas a reclamação ficou apenas no corporal. A cantora voltou resignada à sala de entrevistas e, durante pouco mais de uma hora, revelou uma despreocupação com as próprias respostas rara em entrevistados. Parecia bem à vontade.

A matéria abaixo foi publicada doze dias antes de Cássia Eller partir dessa

Revista Istoé Gente, edição número 124, de 17 de dezembro de 2001

"Sempre acreditava que iria me tornar uma artista popular, mas cada disco que fazia quase nunca ficava um ano em turnê. Já tinha desistido. Me conformei em ser meio maldita"

Cássia Eller virou cantora popular. Depois de 11 anos de uma carreira sempre elogiada pela crítica, mas com um quê de marginal, a cantora de 38 anos acaba de atingir a marca de 400 mil cópias vendidas com seu nono CD, Acústico MTV. Tudo bem diferente de quando a filha do sargento pára-quedista do Exército Altair Eller e da dona-de-casa Nanci começou a cantar pelos bares de Brasília músicas de Cazuza, Beatles e da vanguarda paulista. A nova fase só não fez com que a carioca criada em Minas perdesse por completo a timidez, que confunde quem assiste às apresentações da artista escrachada e sempre à vontade no palco. Companheira de Eugênia há 14 anos e mãe de Francisco Ribeiro Eller, o Chicão, oito anos – seu filho com o percussionista Jorge Felipe, que morreu antes do menino nascer –, Cássia admite que até recentemente ficava apavorada com a idéia de dar entrevistas. “Tenho tentado melhorar, ficar mais civilizada, e acho que estou conseguindo.”

Você esperava todo esse sucesso?
Sonhei com isso há muitos anos. Sempre acreditava que iria me tornar uma artista popular, mas cada disco que fazia quase nunca ficava um ano em turnê. Já tinha desistido. Me conformei em ser meio maldita. Tinha respeito do público, da crítica e dos outros artistas. Estava mais do que satisfeita. Ainda estou meio na onda do susto, não me acostumei. Lógico que é bom, mas até hoje me assusto quando vou a um lugar aberto e tem 30 mil pessoas me vendo. Não era assim até o ano passado comigo. Suava para botar mil pessoas num lugar.

Teve problemas com gravadoras?
O terceiro disco (Cássia Eller) foi feito na base da troca. Eu queria gravar uma coisa e eles falavam “só se você gravar tal coisa”. Tive que trocar. Metade do disco era meu, metade deles. Agora estou no meu melhor período de relação com a gravadora. Temos mais diálogo, mais condição de conversa. Briguei para nunca mudar meu estilo por causa das tendências do mercado. Valeu a pena.

Sempre quis ser cantora?
Na minha casa se ouvia muita música. Minha avó materna tocava bandolim, todos na família da minha mãe tocavam instrumento e ela cantava. Cresci ouvindo minha mãe cantando enquanto arrumava a casa e comecei a cantar com ela. Aprendi a tocar violão com primos. Mas ninguém na família quis ser profissional.

Quando virou profissional?
Com 18 anos, em Brasília, fiz um teste para um espetáculo do Oswaldo Montenegro. Passei e trabalhei com ele um ano. Depois cantei num trio elétrico, fiz dois anos de ópera e tinha um grupo de samba com os músicos da guarda presidencial. Com eles, cantava, tocava surdo e fazia o carnaval dos bailes. Tinha 19 anos e só queria saber de cantar. Em 1986, formei uma banda e cantava em bar, com repertório de quem eu gostava, Beatles, Caetano, Luís Melodia, Gil, Barão Vermelho e Cazuza, principalmente. Também cantava o som dos caras de São Paulo, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé.

Trabalhou no Ministério da Agricultura?
Tentei, né? Fui despedida com dois dias, acho. Substituí uma amiga minha que pediu licença para fazer uma cirurgia no olho. Só que demorei horas para escrever uma carta na máquina elétrica. Aí o chefe falou: “Pega seu violão, minha filha, e vai embora”. Tinha uns 21 anos e já estava na música. Fiz o bico pela grana. Também fui garçonete nessa época. Ganhava para o cigarro e o ônibus.


Tinha apoio da família para cantar?
Achava legal. Eles diziam que eu era persistente e davam valor a isso. Só que meu pai falava que as músicas que eu cantava não agradavam a ninguém. Ficava me dando conselhos para mudar o repertório.

O Chicão segue tocando com você?
Ele tocou no Rock in Rio e não quis tocar mais esse ano. Espantou-se com o público, ficou nervoso antes de entrar no palco. A mão dele suava diante daquele mundo de gente. O lance dele é jogar futebol. Faz escolinha no colégio e é bom, viu? Faz gol todo jogo, isso é que é matador.

Quer que ele siga sua carreira?
Lógico. A gente sempre quer puxar a brasa pra nossa sardinha. Mas tenho certeza de que ele é muito sensível, que vai descobrir algo de que goste. O Chicão tem uma bateria, a gente costumava fazer um som de bobeira, mas agora ele não tá muito ligado nisso. Tem tocado cada vez menos. Até pensei em colocá-lo numa escola de música, mas já perguntei e ele não quer. Só quer jogar bola.

Como você é como mãe?
Não sou muito coerente. Às vezes sou muito rígida com o Chicão e, no outro dia, na mesma situação já sou mais tranqüila, relaxo mais. Mas ele também é meio doidinho, acho que entende isso. Presto atenção nessas coisas de fazer o dever de casa, arrumar o quarto, escovar os dentes. Coisas que menino não gosta, que precisa mandar mesmo, ficar em cima. Isso eu gosto de prestar atenção, porque só com a repetição ele vai aprender, não tem jeito. Tenho que encher o saco do cara até que um dia ele faça sozinho.

O fato de ter um filho criado numa relação não convencional atrapalha?
Ele leva na boa. A gente nunca parou um dia e contou pra ele. Vivemos nossa vida desde que o Chicão nasceu. Ele sabe de tudo da gente e convive bem com isso, não mentimos. Ele é respeitado na escola também. Eu já cansei de procurar saber. Muitas vezes neguinho faz piadinha e ele nem liga, balança os ombros e sai andando. Acho bacana porque ele se impõe. O Chicão adora a nossa relação, minha e da Eugênia. Fica feliz em ver nós duas juntas, dá para perceber isso. É muito legal.

Qual o segredo para manter uma união de 14 anos?
Tem que ter muita paciência, respeito. Claro que cobramos fidelidade uma da outra, pra caramba. E tem que ter vontade de estar junto! Não consigo me imaginar sem ela.

Vocês já sofreram preconceito?
Já, mas a gente nem liga. Com a família, por exemplo, foi bem difícil. O preconceito era velado, mas meu pai não aceitava minha opção sexual. Hoje tá superlegal, minha mãe aceita na boa, meu pai, meus irmãos. Meu pai diz que meu casamento é o melhor da família.

Você gosta de ser dona-de-casa?
Adoro cozinhar, principalmente nesses dias em que tenho viajado muito. Chego em casa e me dá uma vontade louca de fazer meu rango. Quando o Chicão era pequenininho eu cozinhava mais, também trabalhava menos. Agora tenho gostado de cozinhar de novo. Nada especial, só arroz com feijão, sopa, macarrão, frango com cebola.

Gal Costa disse certa vez que acha a geração dela, Bethânia e Elis imbatível. Você concorda?
Concordo. Acho difícil essas três aí. Tá fogo pra nós. A Bethânia marcou mais pela força da interpretação. Todas elas têm isso muito forte, mas a Bethânia tem uma força única. A Elis Regina nem se fala. É uma das maiores cantoras que já ouvi na vida. O jeito de cantar dela me impressiona até hoje. A Gal Costa foi a primeira cantora moderna do Brasil. Com certeza abriu um caminho que, se não fosse ela, a gente estaria meio atrasada na forma de cantar.

A apresentadora Soninha foi demitida da TV Cultura por admitir que já tinha fumado maconha. Qual sua opinião sobre isso?
Ainda existe esse tipo de hipocrisia quando o assunto é droga. Acho que a Soninha foi muito corajosa. Alguém tem que falar a verdade. Ela foi só a primeira a falar na posição dela. Daqui a pouco vai pipocar mais dois, três. Ela abriu o caminho, foi legal.

Mas você sempre falou abertamente sobre droga...
Mas sou cantora, não tenho patrão para me mandar embora.

Como anda sua relação com as drogas?
Eu cheirava muita cocaína. Parei total, graças a Deus. Fiquei um tempo sem beber também e isso me fez bem. Não foi nem exatamente por causa do Chicão que parei, meu corpo não estava mais agüentando. Durante a gravidez parei porque, milagrosamente, enjoei de cigarro, café, maconha, de tudo. Cocaína, então, lógico. Não ia fazer uma coisa dessas. Aí o Chicão nasceu, amamentei e depois caí de novo na farra.

Quando decidiu parar com a cocaína definitivamente?
Fiz um tratamento de desintoxicação no fim de 1998 e no início de 1999. Esqueci o absorvente lá dentro, vinte dias. É o fim da picada! Estava com um sangramento esquisito e fui ao ginecologista. Ele olhou e disse: “Tem alguma coisa aí”. O cara tirou meio com nojo. Isso é estado crítico total, não pode uma coisa dessas. Aí me lembrei do dia em que coloquei o absorvente e da situação. Estava cheirando numa festa. Eu embalava dois, três dias sem parar. Aí deu um clique, fiquei pirada com a história. O meu problema hoje é que eu bebo, entorno uma cana. Eu gosto de birita.