domingo, 18 de dezembro de 2011

NO MESMO DIA II

Sérgio Britto e Joãozinho Trinta morreram no mesmo dia. Ontem.
A entrevista com o ator foi feita na casa dele, em Santa Tereza. Já com o carnavalesco foram duas entrevistas no mesmo lugar, no antigo barracão da Acadêmicos do Grande Rio, na Gamboa. A segunda foi para uma série da revista, em que a vida de alguém era contada em capítulos, um por semana. A última matéria, lá embaixo, foi o primeiro capítulo dessa série.

Revista Istoé Gente, edição 229, de 22 de dezembro de 2003

“Disse a eles: ‘Não se impressionem com o tombo. Foi de propósito. Caio todo dia num lugar’. E saí de cena.”

Além de atacar os pulmões, a anemia congênita herdada da família por Sérgio Britto, 80 anos, provoca um desequilíbrio inesperado, como um empurrão. Por conta disso, o ator teve cinco pneumonias em 2001. Curou todas, mas não escapou do “empurrão” no mês passado, quando encenava Sérgio 80, na lona cultural de Guadalupe, subúrbio carioca. Diante de 700 pessoas, ele caiu do palco e fraturou quatro costelas. Após alguns segundos de silêncio, levantou-se e, sozinho, subiu os quatro degraus de volta. Sob aplausos, avisou que continuaria a peça.
A determinação mostrada no episódio não é muito diferente da que fez o jovem estudante do quarto ano de medicina decidir pelo teatro. Mesmo que até hoje ele não saiba por que aceitou entrar no Teatro Universitário de Jerusa Camões, em 1945. Acompanhando um amigo à sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), no Rio, o rapaz tímido que começava a admirar as peças de Ziembinski e Nelson Rodrigues, mas ainda preferia o cinema, foi surpreendido por Jerusa. “Ela me achou simpático e perguntou se eu queria fazer teatro. Acho que o ‘sim’ que falei estava contido em mim há tempos”, conta.
Na primeira peça, Romeu e Julieta, Sérgio estreou junto com Sérgio Cardoso, ator morto em 1972. Na época, o teatro ainda era brincadeira para o médico residente que dividia seu tempo entre os ensaios e o trabalho no pronto-socorro do Hospital Souza Aguiar. Com os colegas da segunda peça, Hamlet, não era muito diferente, com exceção de Sérgio Cardoso. “Ele já era um ator. O Sérgio foi uma inspiração, o culpado de eu estar fazendo teatro”, resume Britto.
Quatro dias antes da estréia de Hamlet, em 6 de janeiro de 1949, o ator se formava em Medicina, mas nunca foi buscar o diploma. Sucesso no Rio, a peça viajou por São Paulo, e foi em Campinas que Sérgio Britto abandonou a medicina. Pressionado pelo pai, o funcionário público Lauro, teve com ele a conversa definitiva:
– Você está há três meses fazendo Hamlet. E a medicina?, quis saber o pai.
Após uma noite sem dormir, o ator respondeu no dia seguinte, dizendo que iria fazer teatro.
– Mas você disse que não era ator, retrucou seu pai.
– Também acho que não sou, mas vou tentar ser, disse Sérgio.
Logo depois, Britto e Cardoso montaram, com outros amigos, o Teatro dos 12, que marcou o início da carreira profissional dos dois. As dúvidas sobre se teriam o apoio da família se dissiparam na primeira montagem do grupo, um novo Hamlet. “Faltou o bilheteiro um dia e meu pai o substituiu”, conta Sérgio.
Por falta de dinheiro, a companhia durou um ano. Convidado para interpretar em São Paulo, em 1950, Sérgio participou da fundação do Teatro de Arena, de José Renato Pécora. Depois ingressou na companhia teatral de Maria Della Costa, onde encontrou Gianni Ratto, o diretor que em 1954, em O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, o faria considerar-se, definitivamente, um ator. Jovem e bonito, Sérgio foi escalado para viver o Delfim, feio e frágil. Seguindo os conselhos do diretor, conseguiu deformar o próprio corpo, livrando-se do estigma de galã. “O Gianni trabalhou em mim uma emoção verdadeira, não em cima da minha beleza.”
Em São Paulo, Sérgio também conheceu Fernanda Montenegro e Fernando Torres, num período rico em idéias e diversão. Após cada espetáculo, os atores jantavam e caminhavam a pé, de madrugada, para tomar café no ex-tinto Jeca, na esquina da Rua Ipiranga com Avenida São João. Compravam os jornais do Rio e iam dormir, com o dia claro. “Foi um período de grandes e maravilhosas memórias, quando começamos a sonhar uma companhia”, lembra Fernanda Montenegro.
Montado com Fernanda, Fernando, Gianni e, mais tarde, Ítalo Rossi, o Teatro dos Sete começou a surgir num momento difícil para Sérgio Britto. Com a saída de Gianni Ratto da Cia. de Maria Della Costa, o ator se viu obrigado a optar entre duas pessoas queridas. “Foi terrível, mas não traindo a Maria, trairia a mim mesmo.”
Depois de uma passagem pelo Teatro Brasileiro de Comédia, no Rio, Sérgio e seus futuros sócios decidiram montar o Teatro dos Sete. Para isso, o antigo galã precisou usar seus dotes de sedução. Como o grupo acumulava as peças com o trabalho na televisão desde 1956, no Grande Teatro Tupi, Sérgio, que dirigia o programa, entrava no início pedindo contribuições para a futura companhia. “Fui um sedutor canalha. Dizia: ‘Vocês vão poder nos assistir de perto, ir nos bastidores para um autógrafo, quem sabe um beijinho’, uma conversa muito safada”, diverte-se.
Na estréia de O Mambembe, em 1959, o Teatro Municipal do Rio estava lotado. Entre novos sucessos e um fracasso de público, O Cristo Proclamado, de Francisco Pereira da Silva, o grupo chegou ao Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, em 1961, quando Sérgio acumulou as maiores vaias da carreira. Na pele do jornalista Amado Ribeiro, dizia falas como “minha empregada fez aborto com talo de mamona. Tá num morre, não morre”. A vaia era estrondosa. “Com o tempo eu ficava esperando a vaia”, conta o ator. Mas com a renúncia de Jânio Quadros, o público caiu muito.
Por sorte, havia a televisão, apesar das dificuldades das gravações ao vivo. Numa delas, Sérgio dirigia Fernanda Montenegro. A cena terminava com a atriz olhando pela janela, com malícia, mas o diretor de câmera, Mário Provenzano, acostumara-se a finalizar cada ato com uma mulher chorando. “A câmera ficou quase um minuto na Fernanda, até que falei para ela chorar”, lembra Sérgio.
No palco, um dos maiores apertos aconteceu no Irã, em 1974, durante apresentação dos Autos Sacramentales de Calderon de La Barca, na Planície das 50 Colunas, monumento da antiga Pérsia. Com a tensão da estréia agravada pela proibição do nu dos atores, imposta pelo xá Reza Pahlevi, Sérgio acabou cuspindo durante a primeira fala o pivô que substituía um dente recém-perdido. “Continuei o espetáculo e, quando tudo tinha acabado, achei o pivô incrustado numa madeira, na platéia vazia.”
Ao longo da carreira, o ator só não foi assíduo no cinema. Em 1951 e 1952, fez roteiro e assistência de direção nos estúdios Maristela e Multifilmes, em São Paulo, mas a falência dos dois mudou sua trajetória. “Acho que o cinema não tinha que vir para mim”, diz Sérgio, que foi sondado para o lugar de Paulo Gracindo em Terra em Transe, de Glauber Rocha, e lembra-se de ter feito dois filmes, Society em Baby-doll e O Desafio.
Se o cinema não vingou, a paixão pelo teatro marcou a vida do ator a ponto de fazê-lo, mesmo sem muita convicção, tentar o suicídio logo no início da carreira. Com 23 anos, Sérgio acumulava a dúvida entre teatro e medicina com a descoberta da homossexualidade, hoje admitida publicamente pelo ator. Embriagado na volta de um baile de Carnaval, cortou-se com uma gilete. “Não foi com a fúria de quem quer se matar”, admite o ator, que tirou suas lições do episódio. “Fiquei sábio depois daquele dia.”
E era sobre a sabedoria de envelhecer o texto dito por Sérgio Britto nos 10 minutos finais de sua apresentação em Guadalupe, quando a dor das costelas quebradas, que não o incomodara até ali, começou a latejar com força. Com a determinação mostrada em 58 anos de carreira, levou o espetáculo até o fim, e ainda brincou com a platéia antes de se despedir, quase sem agüentar mais de dor. “Disse a eles: ‘Não se impressionem com o tombo. Foi de propósito. Caio todo dia num lugar’. E saí de cena.”

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Revista Istoé Gente, edição 187, de 3 de março de 2003

"Antes da isquemia tive milhões de avisos. Me sentia mal, tinha uma dor no peito que levou quase 10 anos. Hoje não dou conselhos, porque ninguém escuta. A quem eu vejo repetindo meus erros, desejo boa isquemia. Porque sobrevivi a uma e mudei."


O lado direito do corpo está paralisado desde a isquemia cerebral sofrida em 1996, mas é com desenvoltura que o carnavalesco Joãosinho Trinta circula pelo barracão da Acadêmicos do Grande Rio, escola que defende há dois anos. Afinal, a rotina de preparar um desfile de escola de samba acompanha há 40 anos o filho da operária Júlia Jorge Trinta e do mestre de obras José de Almeida Trinta, morto quando Joãosinho tinha 2 anos.
Antes de fazer história ganhando cinco Carnavais seguidos, de 1974 a 1978, no Salgueiro e na Beija-Flor, o maranhense de São Luís realizou o sonho de ser bailarino do Teatro Municipal cinco anos após sua chegada ao Rio, em 1951, sozinho num navio. Hoje, ele tem uma explicação bem-humorada para sua ligação com a maior festa popular do Brasil. “Nasci em novembro. Portanto, fui concebido em fevereiro. Sou filho do Carnaval.”

Em 40 anos, qual foi o seu Carnaval mais marcante?
O de 1989 na Beija-Flor, com o enredo Ratos e Urubus. Apesar de não ter ganho (a Beija-Flor perdeu o título para a Imperatriz Leopoldinense por meio ponto), as pessoas me falam desse desfile até no Exterior. Ter entrado para a história compensa. Lamento somente ter esquecido de mostrar o lixo de algum jurado do desfile, porque mostrei os lixos de diversos setores da sociedade.


Naquele ano, a Beija-Flor saiu com uma imagem do Cristo Redentor coberta por ordem da Justiça. O que acha dessa nova polêmica da escola, que queria mostrar Jesus atirando no diabo?
Não tomei conhecimento, mas posso perguntar: será que não estão querendo reeditar a polêmica?

Ultimamente seus desfiles não causam tanta polêmica. Por quê?
Nunca busquei sensacionalismo. Ele surge de vez em quando, mas a intenção não é essa. É claro que se busca no Carnaval o inusitado, algo que possa surpreender como o astronauta sobrevoando a avenida no último desfile da Grande Rio. Mas a polêmica quem faz são os outros.

O apoio de empresas ao desfile tirou a identidade do Carnaval?
Esse tipo de pensamento é romantismo barato. Como manter um espetáculo grandioso sem estrutura? Quem fala isso nunca assistiu a um desfile de escolas do quinto grupo nos subúrbios. As escolas cariocas não são apenas as da Marquês de Sapucaí que a tevê mostra. Para mostrar tem de ser um espetáculo internacional, precisa estrutura. A Grande Rio está dando um exemplo de como trabalhar com a colaboração de empresas sem se deixar influenciar pelo merchandising.

De que forma isso ocorre?
Esse ano a Vale do Rio Doce está colaborando com a escola, mas tivemos cuidado de evitar merchandising no desfile. Não precisa. A mineração no Brasil é um assunto vasto. É só 
saber fazer, porque não dá para dispensar o apoio das empresas. Só com a verba que a Liga das Escolas de Samba repassa hoje, fica difícil de fazer, com o dólar disparando. Algumas escolas podem ter exagerado no merchandising em outros desfiles, o que gerou comentários.

A frase “pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”, afinal, é sua ou do jornalista Elio Gaspari?
Me arrependo de não ter guardado um artigo do Elio Gaspari no jornal no ano passado, em que ele deixava claro que a frase é minha.

Continua pensando assim?
Continuo. Me referi não ao luxo superficial de riqueza, mas ao luxo que o povo gosta, da emoção, alegria, criatividade. E falava dos pseudo-intelectuais, que diziam que eu não retratava a realidade do Brasil. A miséria existe mas o Brasil não é miserável. Tem riquezas para dar e sobrar. Quem torna esse país miserável são políticos, corruptores e ladrões, homens contados a dedo.

A quem se refere exatamente?
Preciso citar? Não preciso. Vocês da imprensa sempre denunciam.

Qual o real poder de um carnavalesco na escola?
A Grande Rio tem um patrono, um presidente executivo e uma diretoria, que administram a escola. Na parte artística fica tudo comigo. Chego no barracão às 9h e, quando precisa, fico até de madrugada.

O que mudou após a isquemia?
Tinha padrões errados tanto de alimentação como com o meu corpo. Não descansava, não me alimentava direito. Hoje como regradamente e faço a sesta religiosamente. Não atendo ninguém depois do almoço e ainda tomo um vinho tinto por recomendação médica, porque é benéfico para o coração. Também fiz reciclagens mentais depois da doença.

Que tipo de reciclagens mentais?
Tinha bloqueios e com a isquemia fui entender muita coisa por intuição. Jung dizia que muita gente morre antes de ter nascido completamente, porque carrega as mazelas da infância e até de vidas passadas, e não recicla nunca. Envelhece porque carrega um fardo pesado. Esse ano faço 70 anos e estou me reciclando dos problemas que tive na vida. Depois de uma isquemia e duas pontes de safena e uma mamária (em 1997), me sinto melhor do que há 40 anos.

Teve medo de morrer?
Nunca. A isquemia te dá uma noção de que você está perigando, que não é brincadeira. Mas no hospital sua intuição lhe esclarece muito, você entende os conselhos que te davam e, principalmente, os conselhos do seu corpo. Antes da isquemia tive milhões de avisos. Me sentia mal, tinha uma dor no peito que levou quase 10 anos. Hoje não dou conselhos, porque ninguém escuta. A quem eu vejo repetindo meus erros, desejo boa isquemia. Porque sobrevivi a uma e mudei.

A paralisia influi no seu trabalho?
A isquemia paralisa metade do corpo. É um certo esforço no desfile, mas nem sinto diante da emoção do povo. No barracão, antes eu metia a mão na massa, hoje sou forçado a delegar poderes.

Pensa em parar?
Planejo viver mais 70 anos. Pretendo fazer uma cirurgia no cérebro a laser e tenho certeza que os movimentos voltarão ao normal. Não sei que tipo de Carnaval farei nos próximos 70 anos, mas quero continuar vivo. Trabalho com o divino. A palavra divino vem do verbo advir. Então divino para mim é o futuro, o que há de vir.

Quando entrou na Beija-Flor tinha conhecimento que ela era financiada pelo jogo do bicho
Claro que tinha. Graças a Deus o bicho financiava, porque o governo, que devia tomar conta do evento que traz turistas e melhor representa o Brasil lá fora, nunca fez nada. O governo foi relapso, os banqueiros do jogo do bicho não foram.

Não fica constrangido em ter o Carnaval financiado pelo jogo do bicho?
Constrangido eu deveria ficar diante dos governos que não são sensíveis ao Carnaval. As escolas estavam morrendo e só os banqueiros do bicho tomaram conhecimento. Se não fossem eles, ninguém estaria lamentando o fim do Carnaval porque simplesmente ninguém iria conhecer essa festa maravilhosa que é o desfile das escolas de samba.

Como começou no Carnaval?
Em 1963 fui ser assistente de Arlindo Rodrigues no Salgueiro. Tinha know-how de montagem de óperas, porque vinha do teatro. Ainda como bailarino me interessava pela cenografia e pelo figurino, tanto que nos anos 70 cheguei a montar óperas no Teatro Municipal, como Aída e O Guarani.


Você sofreu preconceito por ser bailarino?
Da família, não, mas claro que teve. Era tão apaixonado pela dança que não entendia a reação preconceituosa das pessoas.


Qual foi seu primeiro enredo?
Em 1974, fui campeão com O Rei de França na Ilha da Assombração, no Salgueiro. No ano seguinte fomos bi, mas já estava perturbado pelas mudanças sociais no Rio e principalmente no Morro do Salgueiro. 

Que mudanças?
Vi um garoto de 12 anos, que tinha o apelido de Pedro Marreco e era presidente da ala das crianças da escola, virar o maior bandido do morro em dois anos. A bandidagem e o tráfico tinham se instalado e vi que as crianças eram as mais atingidas. Queria fazer um trabalho social, porque naquela época tive a intuição do inferno que o Rio ia se tornar, mas a diretoria do Salgueiro achava que só fazer Carnaval já era demais.


Por isso foi para a Beija-Flor?
O contrato que fiz com o Anísio previa a obra social. Em 1976 vencemos o Carnaval numa época em que só as quatro grandes (PortelaMangueiraSalgueiro e Império Serrano) ganhavam. Quando saí da escola, 17 anos depois, estava instalada uma creche para 450 crianças, um educandário 
para 500 e um centro comunitário, entre outras melhorias. Agora na Grande Rio também fazemos um trabalho social intenso, com diversos cursos profissionalizantes.


Quantos meninos tirou do tráfico de drogas com os trabalhos sociais nas escolas de samba?
Não sei especificar quantos, mas já ajudamos centenas. Isso porque só trabalhávamos com crianças carentes e já delinqüentes. Quem não se recuperou, morreu porque a expectativa de vida no tráfico é muito pequena. Quem ficou conosco sobreviveu e mudou de vida.


A motivação hoje é a mesma?
Trabalho ainda com o Carnaval como quem cumpre uma missão importante para o Brasil. Enquanto o mundo se prepara para uma guerra de cobiça, onde vai predominar a morte, aqui no Brasil estamos preparando a guerra da alegria.

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Revista Istoé Gente, edição 237, de 23 de fevereiro de 2004

“Ficou uma fantasia sei lá de quê, mas entrei no baile.”

Do formigueiro no quintal ao carcomido muro da casa onde passou parte da infância, em São Luís, tudo era motivo para despertar a imaginação do menino João Clemente Jorge Trinta. Aos cinco anos, o filho da operária tecelã Júlia Jorge Trinta passava horas observando o trabalho das formigas. Já os buracos do muro se transformavam, na visão do garoto, em palácios, numa antecipação do que a mente do futuro carnavalesco criaria nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. “Minha infância foi cheia de surpresas. Me assombrava a todo momento com pequenas descobertas”, lembra Joãosinho.
Quarto de cinco irmãos (três mulheres e o caçula), João não se lembra do pai, o mestre-de-obras José de Almeida Trinta, morto quando o filho tinha dois anos. Nascido a 23 de novembro de 1933, numa casa da Praça Silva Jardim, morou também na Rua do Alecrim e na Rua da Paz durante a juventude marcada pelas dificuldades financeiras, mas facilitada pelo esforço da mãe mesmo quando a comida era pouca. “Quando só tinha restos de arroz, achava tão gostoso que não sentia a tragédia”, conta ele.
Entre as lembranças da Praça dos Remédios, da igreja no mesmo local e dos coretos da antiga São Luís, o carnavalesco se recorda especialmente das tardes passadas no Teatro Arthur Azevedo. Com 12 anos, já era freqüentador assíduo do local, onde assistia a ensaios de companhias como a de Procópio Ferreira. Apesar do começo trabalhando com teatro amador e teatro de bonecos, por volta dos 16 anos, foi o balé que atraiu definitivamente o futuro carnavalesco para o meio artístico. “São Luís nem tinha academia de dança. Não tenho justificativa, mas essa minha paixão pela dança foi muito forte”, recorda Joãosinho.
Tão forte que o jovem freqüentador das rodas de intelectuais da capital maranhense, que reuniam o ex-presidente José Sarney e o poeta Ferreira Gullar, entre outros, aproveitou a primeira oportunidade para viajar ao Rio de Janeiro, sonho de todo aspirante a artista da época. Promovido de office-boy a auxiliar de escritório de uma financeira, a Cosmos, João conseguiu uma transferência para o Rio. Com suas economias, comprou a mais barata passagem de um velho Ita do Norte, o barco que costumava levar retirantes do Norte e do Nordeste para a então Capital Federal.
Antes de o navio partir, porém, teve um susto e uma grata surpresa. Instalado no fundo do Ita do Norte, foi chamado à sala do capitão. O medo de ser retirado da embarcação por ser menor de idade durou até a chegada diante do comandante, que, mostrando um documento, informou ao passageiro que ele deveria mudar de lugar. “Ele me
disse que, por ser menor de idade, estava sob sua responsabilidade e iria viajar num camarote ao lado do dele”, conta o carnavalesco.
Após 20 dias de um viagem cheia de mordomias inesperadas, Joãosinho Trinta desembarcava no Rio em pleno domingo do Carnaval de 1951. Mal levou suas coisas para a casa de dona Zizi, maranhense amiga da operária Júlia Trinta, foi ao Teatro Municipal do Rio com um firme objetivo: participar do baile que seria realizado ali no dia seguinte e era um dos maiores acontecimentos do Carnaval.
Após conversar com um eletricista do teatro, obteve a promessa de ter a entrada facilitada no baile caso aparecesse com uma fantasia. Uma intensa busca por trapos velhos na casa de dona Zizi resolveu o problema, mesmo que até hoje o carnavalesco não saiba definir o que representava a primeira fantasia que criou. “Ficou uma fantasia sei lá de quê, mas entrei no baile.”
Passado o Carnaval, a primeira providência foi se matricular numa academia de dança, mas o sonho de ingressar no corpo de baile do Teatro Municipal só seria realizado cinco anos depois. Aprovado em concurso, Joãosinho estrearia como bailarino no fim de 1956, como parte do elenco da ópera Coventina. Antes disso, ainda amargaria duras experiências.
Assim que passou no concurso do Municipal, João pediu demissão da financeira. Só não contava com a demora em ser chamado para o balé. No primeiro mês ainda conseguiu pagar o aluguel da pensão onde morava, no Catete, zona sul carioca. Despejado, passou três meses dormindo no bonde que ia do centro da cidade ao Leblon, na zona sul. “Pagava uma passagem e o condutor me deixava dormir no banco de trás, indo e voltando pelo trajeto”, lembra.
Apesar de se alimentar com as amêndoas da Praça Paris, na Glória, João mal saciava a fome. Já desesperado e sem forças, lembra-se de ter suplicado a ajuda de Deus sentado num banco quando o vento provocado pela passagem de um ônibus pelo local levou aos seus pés uma nota de 50 cruzeiros. “Foi um momento de uma súplica e de um atendimento. Fiquei aberto para a energia altamente sábia de Deus”, conta o carnavalesco, que logo depois foi chamado para o Municipal.
Não demorou para que o bailarino começasse a se interessar pela montagem dos espetáculos. Ainda no fim da década de 50, virou chefe do guarda-roupa, cargo que passou a acumular com o trabalho na escola de samba do Salgueiro, onde chegou em 1963. Levado por Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, dois ex-cenógrafos do Municipal, Joãosinho participou da equipe que revolucionou o Carnaval carioca. “O Carnaval era o chamado samba do crioulo doido. O Pamplona e o Arlindo organizaram mais o desfile e começaram a fugir dos temas oficiais para abordar o negro, por exemplo”, explica o carnavalesco.
Com a experiência de quem chegara a montar óperas no Municipal como Aída, no fim da década de 60, Joãosinho deu sua contribuição à equipe numa época em que preparar um desfile era bem mais difícil que nos dias atuais. “Hoje as técnicas, os materiais, está tudo codificado, mas naquele tempo não tinha nada. Tivemos de descobrir tudo”, explica ele que, após a ida de Pamplona e Arlindo para a Mocidade Independente, em 1973, assinou sozinho o Carnaval do Salgueiro de 1974. Com o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração, Joãosinho Trinta conquistou seu primeiro Carnaval e abriu seu caminho.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

BANDIDO DAS ESTRELAS

Quando o repórter chegou para seu primeiro plantão de madrugada no jornal de renome, na redação histórica, enorme, o bandido das estrelas já tinha ficado meio que famoso, ao chamar jornalistas pra dar entrevista. A edição de domingo já estava indo pras bancas e pra mudar alguma coisa só se fosse até onze ou meia-noite, no máximo, e só se fosse o avião do papa, como gostava de dizer o secretário gráfico que ainda não tinha voltado ao jornal nessa época. O plantão era, portanto, tranqüilo, e assim foi até um pouco só depois da fatídica meia-noite, quando, quase em frente ao meio do grande H que era a redação do velho JB na época, no lugar da chefia de reportagem o repórter foi avisado, pelo super Nelsinho, então na escuta, da fuga do bandido das estrelas que só pôde entrar na edição seguinte. Depois o bandido das estrelas virou livro de outro repórter, este já consagrado, e em 2003, no mesmo ano em que a história de sua vida foi lançada, morreu na prisão, vítima de uma emboscada.

A matéria abaixo foi assinada também pela Ana Cláudia Costa e pelo Wilson Aquino. A foto que abre o texto é do Jorge William.

Jornal do Brasil, edição de segunda-feira, 28 de outubro de 1996

"O Marcinho VP e o próprio tráfico no Dona Marta não têm expressão. Se fosse importante no esquema de venda de drogas, não revelaria seu rosto para a imprensa, como fez na ocasião".



O chefe de Polícia Civil, delegado Hélio Luz, minimizou ontem a fuga de sete presos da carceragem da Polinter, na Zona Portuária. Luz fez questão de dizer que os três fugitivos mais conhecidos - Marcinho VP, Lambari e Rogerinho - são homens do terceiro escalão do tráfico de drogas no Rio e não têm a importância que o noticiário está dando a eles. O secretário estadual de Segurança Pública, general Nilton Cerqueira, fez coro às declarações do chefe de Polícia.
Marcinho VP (Márcio Amaro de Oliveira) ganhou fama depois que desafiou o governo do estado e negociou um salvo-conduto para o cantor Michael Jackson e sua equipe filmarem um clipe no Morro da Dona Marta, em Botafogo (Zona Sul). Os traficantes Lambari (Marcus Vinícius da Silva) e Rogerinho (José Rogério Soares) integram o grupo que controla o tráfico no Jacarezinho, na Zona Suburbana.
Hélio Luz frisou que, se Marcinho VP fosse uma grande figura do tráfico carioca, não teria se exposto tanto no caso da gravação de Michael Jackson. "O Marcinho VP e o próprio tráfico no Dona Marta não têm expressão. Se fosse importante no esquema de venda de drogas, não revelaria seu rosto para a imprensa, como fez na ocasião", ressaltou.
Já no caso da fuga de Lambari e Rogerinho, o chefe da Polícia Civil demonstrou maior preocupação. Embora insista em negar que estejam na linha de frente do tráfico, ele reconheceu que os dois são importantes no esquema do Jacarezinho. "Deu trabalho para prender esses homens e vai dar mais ainda para recapturá-los".
Apesar da fuga, Luz disse que a polícia continua ganhando a guerra contra o tráfico, já que os principais traficantes estão presos. Segundo o delegado, os únicos que ainda estão em liberdade são Robertinho de Lucas e Ulisses de Vigário Geral. "E só estão livres porque fugiram do Rio".
Quanto ao suborno ao detetive e carcereiro Aroldo Veloso Dias, o Paquetá, para que facilitasse a fuga, Luz disse que o caso não vai ameaçar a posição do diretor da Divisão de Capturas, Enéas Sá Freire. O delegado afirmou que, a princípio, Enéas Sá Freire permanece, a menos que fique comprovada alguma negligência. Luz disse que o comando das investigações está a cargo do delegado Paulo Maiato, subchefe de Polícia Civil.
Para o secretário de Segurança Pública, general Nilton Cerqueira, a fuga da Polinter é preocupante. Mas ele deu total apoio à posição do chefe de Polícia Civil sobre a falta de expressão dos fugitivos. Nilton Cerqueira lembrou que se Marcinho VP fosse uma liderança expressiva do tráfico, estaria em Bangu I e não na Polinter.

Duzentos reais. Ninguém na polícia tem dúvidas de que o detetive e carcereiro Aroldo Veloso Dias foi subornado para facilitar a entrada de Arlete Monteiro Carvalho, de 32 anos, presa pouco depois, e da mulher conhecida apenas como Janete, que seria namorada do traficante Téia (Francisco Dias Filho), o fugitivo que teria recebido a pistola usada para a fuga.
A arma estava escondida sob as roupas de seu filho, Clêiton, de 2 anos, que Janete levava no colo. Arlete, que não conseguiu escapar com a confusão, foi encontrada na cela 12, a mesma em que estava o detetive Paquetá. Ela confirmou que o policial recebeu R$ 200 para deixá-las entrar. "A gente tinha vindo de manhã, mas o outro policial (o detetive Jorge Firmino de Araújo, conhecido como Marron) não quis conversa. Aí, o seu Paquetá mandou a gente voltar depois das quatro da tarde", contou Arlete, jurando que não sabia do plano de fuga. "A Janete só me contou sobre a arma quando a gente já estava na carceragem", revelou ela, que receberia R$ 100 por ter feito companhia a Janete.
Já o inspetor Rubens Paladini, chefe de operações da Polinter, disse que o detetive Paquetá se refugiou sozinho na cela 12 da carceragem, após ser rendido por Téia. Paladini contou também que os presos queriam matar os outros dois carcereiros que estavam de plantão. Um deles, Cléber Jorge do Nascimento, foi baleado no rosto por Rogerinho, porque se recusou a abrir uma das portas. "O Rogerinho queria matar todos os policiais, mas foi dissuadido pelo Marcinho VP". O outro carcereiro, Emanuel Nascimento de Albuquerque, foi salvo por um preso de confiança, que o ajudou a se esconder. Paquetá e Emanuel estão presos.
A fuga só não foi em massa porque o detetive Marron, que pela manhã barrara a entrada das mulheres, reagiu a tiros. O inspetor Paladini contou que Marron ouviu quando Rogerinho atirou num dos carcereiros e cercou a saída do prédio. O policial trocou tiros com os bandidos, que haviam roubado uma metralhadora, um fuzil, duas escopetas e dois revólveres do paiol da Polinter.
Até ontem, apenas um dos detentos tinha sido recapturado, o homicida Luís Paulo Lopes. Enquanto o chefe de Polícia Civil, delegado Hélio Luz, procurou minimizar a gravidade da fuga, Paladini mostrava preocupação, especialmente por causa de Rogerinho. "É um assassino que gosta de dar tiro em policial".
Segundo Paladini, a polícia não realizou nenhuma grande operação para recapturar os fugitivos porque sabe que eles não voltaram para seus redutos, devendo estar em outros esconderijos. Além de Marcinho VP, Rogerinho, Lambari e Téia, escaparam também os traficantes Márcio de Azevedo Doréa e Camilo Zaider Filho.

sábado, 3 de dezembro de 2011

CASAL TELEJORNAL



Num dia primeiro de dezembro, a Rede Globo anunciou com pompa e circunstância: Fátima Bernardes deixaria a bancada do Jornal Nacional, que apresentava ao lado do marido, William Bonner, há sei lá quantos anos. O anúncio teve entrevista coletiva e edição especial do JN, com a carreira de Fátima sendo revista diante de milhões de brasileiros e brasileiras, um pouquinho antes da novela das oito. A repercussão foi enorme. Das revistas semanais ditas sérias às de celebridade, dos jornais diários à internet, a notícia foi replicada milhares de vezes. Todo mundo ficou sabendo, pelo menos em território nacional.

A entrevista com a Fátima foi feita por telefone, com a conversa sendo devidamente gravada. O Brasil acabava de ser penta no Japão e ela, depois de virar musa da cobertura da Copa, voltava com fama de pé-quente, o que não deixa de ser natural. Afinal de contas, Fátima é Vascão.

Com William Bonner foi ainda mais fácil. A matéria era a capa da edição de fim de ano e ele era o grande homenageado. Nas outras duas revistas do grupo, os homenageados eram Lula e Fernando Henrique Cardoso, e haveria uma festa em São Paulo onde os dois presidentes, o de fato e o eleito, estariam presentes. Os dois e William Bonner, os três sendo homenageados no mesmo nível. A matéria foi tratada com ele pelo diretor da revista, o big boss, e como o Bonner gostou da ideia e resolveu ajudar, foi só chegar e entrevistar.

Revista Istoé Gente, edição 155, de 22 de julho de 2002

“Em casos como o meu, a dilatação do útero dá um sinal para o organismo de que está na hora de nascer bem antes dos nove meses. Então tinha que ficar deitada, tomando remédio para não ter contração. Fiquei parada dois meses e meio, até meus filhos nascerem, com sete meses e meio de gestação”.

Dias atrás, a jornalista Fátima Bernardes, 39 anos, almoçava com o marido William Bonner, seu colega de bancada no Jornal Nacional, num restaurante do Rio de Janeiro. A todo momento a conversa do casal era interrompida por crianças que saíam e voltavam de uma festa infantil ao lado apenas para gritar o nome de Fátima. A história ilustra a que ponto chegou a popularidade da apresentadora do telejornal de maior audiência no País, depois dos 42 dias de cobertura da campanha vitoriosa da Seleção Brasileira na Copa do Mundo.
Eleita musa da Seleção pelos jogadores, a carioca que aos 10 anos sonhava em ser bailarina ao mesmo tempo em que já brincava de jornalista com uma máquina de escrever, hoje é uma celebridade. É parada nas ruas e recebe centenas de e-mails e telefonemas de telespectadores opinando sobre o seu corte de cabelo ou as roupas que veste. Prestes a completar 15 anos de Rede Globo e há 12 casada com Bonner, a jornalista que comandou no JN, ao lado do marido, a rodada de entrevistas dos quatro candidatos a presidente jura que não se incomoda com o assédio dos fãs. Ela só não abre mão do tempo para ficar com os trigêmeos Beatriz, Laura e Vinícius, de 4 anos.

Como foi entrevistar os presidenciáveis no Jornal Nacional?
Como estivemos tão presentes na Copa e em todos os momentos importantes do País, queríamos também estar presentes nessa eleição. A gente tem de mostrar ao público que esse é o assunto do momento. As pessoas têm de entrar nessa discussão, se informar e saber em quem votar. É ótimo estar no Jornal Nacional quando ele está atendendo a isso. Temos noção de que a tevê é a fonte de informação e diversão da grande maioria da população. Não temos a pretensão de fazer entrevistas definitivas, mas ficamos felizes em colaborar.

Dedicar o mesmo tempo aos quatro candidatos principais e mostrar imparcialidade é uma forma de o JN se recuperar depois da acusação de favorecer Fernando Collor nas eleições de 1989?
Não discuto o passado, quando eu nem estava no Jornal. Quero discutir agora. Todos estão dando espaço para as eleições e não poderia ser diferente com a gente. Estamos cientes e tranqüilos de que estamos cumprindo o nosso papel da forma mais isenta e séria possível.

Já tem candidato a presidente?
Não dizia nem se achava que o Romário tinha que ser convocado para a Copa. Jamais falaria em quem vou votar ou qual candidato acho que tem mais chances de ganhar. Formador de opinião não deve fazer isso.

Como você e William Bonner fazem para separar trabalho e vida pessoal no dia-a-dia?
Não temos tempo para discutir assuntos pessoais no Jornal. Em casa, a ordem antes era para não falar de trabalho, mas vimos que não funciona porque, como não temos tempo de discutir no Jornal, ficaríamos sem comentar assuntos importantes. O normal é conversarmos no carro até chegar em casa, quando entramos no domínio das crianças. Mas não somos tão rígidos nisso.

E depois do “boa noite” no JN, o que vocês conversam?
Ali é sempre uma coisa qualquer sobre o Jornal, é rápido.

São viciados em jornalismo?
Essa profissão não tem jeito. No domingo que antecedeu a semana das entrevistas com os presidenciáveis nos preparamos juntos, em casa, vendo nosso material de pesquisa. Nós dois não abrimos mão de ler sempre os jornais e revistas, e de entrar na internet para ler notícias sempre que temos uma folga.

O rótulo de Casal 20 a incomoda?
É inevitável que falem isso, mas pra gente é fundamental ter a noção de que cada um tem sua história. Trabalhamos no Jornal da Globo de 1989 a 1992, depois o William foi editar o Jornal Hoje e eu fui para o Fantástico. Nos reencontramos no JN, mas cada um cuida do seu.

O que fazem para relaxar?
O William gosta de correr. Eu faço ginástica três vezes por semana e gosto de ler antes de dormir. Adoramos ver filmes no vídeo ou no DVD e somos muito caseiros.

Foi difícil suportar a saudade da família durante a Copa?
Chorava praticamente todo dia depois de conversar com as crianças por telefone. O pior é que, por mais franca que você seja, elas não têm noção de espaço e tempo. Aí ficava arrasada porque não conseguia fazer com que as crianças entendessem o quanto eu ia demorar para voltar.

E como as crianças agüentaram tanto tempo sem a mãe?
O William fez um calendário de 40 a 0. Cada criança tinha um adesivo de uma cor e cada dia um colava no calendário. O William também comprou um globo terrestre para mostrar onde eu estava. Eles foram vivendo esses 40 dias em torno disso.

William deu conta da rotina da casa durante a Copa?
Deixei um manual com todos os horários dos filhos, da natação de um, da fonoaudióloga da outra, dos deveres de casa que eles trazem na sexta-feira e devem ser feitos no domingo, porque na segunda fica apertado, tudo. Ele seguiu bem, depois engrenou e fez no ritmo dele, e as crianças estavam ótimas quando voltei.

Em dias normais ele ajuda?
Quando os bebês eram pequenos ele ajudou muito, desde trocar fralda a dar mamadeira durante a noite. Mas depois que ele assumiu a chefia do JN não posso cobrar isso, porque a carga de trabalho dele é enorme.

Assustou-se ao saber que teria trigêmeos?
Estávamos preparados para ter até quatro. Na primeira vez colocamos três embriões e nenhum vingou. Botamos quatro na segunda para aumentar as chances. (O casal fez um tratamento de fertilização em 1997). Seis semanas depois, numa ultra-sonografia, o médico perguntou se estávamos preparados para uma emoção mais forte. Percebemos que seriam gêmeos, mas o médico disse: “Acho que vem mais emoção”. Aí gritei: “São três, William!”. E o William ainda falou para o médico: “Procura o quarto aí, que tem mais um”. Mas ele confirmou que eram três. Digo às crianças que pedi a Deus para ter três filhos e elas me dizem que papai do céu deve gostar muito de mim, porque me deu os três de uma vez só.

Qual foi o momento mais difícil da gravidez?
Quando tive de parar de trabalhar, com cinco meses e meio. Me sentia ótima, mas recebi cartão vermelho da médica. Em casos como o meu, a dilatação do útero dá um sinal para o organismo de que está na hora de nascer bem antes dos nove meses. Então tinha que ficar deitada, tomando remédio para não ter contração. Fiquei parada dois meses e meio, até meus filhos nascerem, com sete meses e meio de gestação.

Quanto engordou?
Engordei 14 quilos. Usava uma cinta especial, com material usado na recuperação de queimados, para diminuir o peso, e fiquei bem. Vomitei só no início e enjoei de doce e café.

Como se convenceu a parar de trabalhar?
Visitei uma UTI neonatal e saí de lá sem conseguir andar direito. Levei um susto ao ver recém-nascidos com 800 gramas de peso. Ali, vi como estava botando em risco minha gravidez mantendo uma atividade normal. Você vê sempre bebês rosadinhos e gordinhos nas revistas e quando ele nasce prematuro não é assim. Nasce com risco de vida, parece que não está formado mesmo.

Quanto tempo seus filhos ficaram na UTI?
Laura e Vinícius ficaram 23 dias e a Beatriz, 25. Mas não houve riscos. Foi só para ganhar peso. Lembro que vi um bebê de 3 kg enquanto estava lá e achei que fosse uma criança que já tinha nascido há um tempo. Era tanta diferença para meus filhos de 1,3 kg que não acreditei que um bebê pudesse nascer daquele tamanho.

O que mudou com a maternidade?
Nunca tinha pensado em morte. Agora sei que posso morrer, e que tenho que ficar viva para criar meus filhos. No resto nada mudou. Nem minha relação com o trabalho, nem com o William, nem com a vida. Pelo contrário, tudo ficou mais colorido.

Mudou a casa para recebê-los?
Trocamos logo o fogão de quatro bocas por um de seis, mudamos a geladeira para uma dúplex e compramos mais uma. Também compramos uma secadora de roupa.

Ter se tornado uma celebridade a incomoda?
Entendo bem isso, por mais que eu saiba que não sou artista. Tudo bem que as pessoas que me vêem na casa delas achem que eu sou, desde que prestem atenção no que eu digo. Óbvio que tenho limitações quando estou na rua com as crianças, mas não me incomodo de dar autógrafos de vez em quando.

Já gostava de futebol antes da Copa do Mundo?
Com 10 anos ouvia jogos no rádio e depois as resenhas da noite. Meu pai (o militar Amâncio Bernardes) sempre me incentivou a gostar de esportes, e minha primeira matéria na carreira, no jornal de bairros de O Globo, foi sobre um jogo de futebol de salão, em 1983. Sou vascaína, mas infelizmente não dá para ir aos jogos.

É verdade que você tem fama de pé-quente?
Nas Olimpíadas de 1992, coincidiu de eu trabalhar em três medalhas do Brasil. Fui à Copa de 1994 e fomos tetra. Fui em 1996 e o Brasil conseguiu o maior número de medalhas em Olimpíadas. Na Copa de 1998 e nos Jogos de 2000, quando o Brasil não conseguiu ouro, não fui por causa dos filhos. Fui de novo à Copa e fomos penta. Mesmo que eu não queira, o povo acha que eu sou pé-quente.

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Revista Istoé Gente, edição 176, de 16 de dezembro de 2002

“Quando vi meu espermograma com o índice de 200 mil cheguei a comemorar, dizendo que tinha um Maracanã lotado. Até que o médico disse que o ideal seriam 60 milhões”

Ele foi o único jornalista a participar do debate que encerrou o segundo turno da disputa presidencial de 2002, transformou-se no principal nome da imprensa durante a campanha, quando entrevistou os quatro principais candidatos no Jornal Nacional, mas nunca deixará de dar valor a outra eleição, bem menos importante e ocorrida há 10 anos. Foi num longínquo plantão de madrugada com notícias sobre a corrida pelas prefeituras do País que William Bonner, 39 anos, começou a dar a volta por cima. Naquele tempo, o comportamento “arrombador de portas”, como ele mesmo define, tirou-o das principais coberturas da Globo.
Na época no Jornal da Globo, Bonner começou 1992 deixando de apresentar o Jornal Nacional aos sábados. Depois, não lembraram dele na hora da cobertura da
ECO 92, a conferência sobre meio-ambiente que reuniu os principais líderes mundiais no Rio. “Me achei bom demais naquele momento. Arrumava encrenca, discutia e meti os pés pelas mãos no relacionamento com colegas e com a chefia”, lembra o jornalista.
Com o bom trabalho no plantão das eleições municipais, Bonner reconquistou a confiança de seus superiores, mas guardou a lição. “Fiquei na geladeira um bom tempo para nunca mais esquecer”, afirma. Talvez seja este o motivo de o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional fazer questão de atribuir seu sucesso em 2002 ao trabalho coletivo da cobertura eleitoral. “Tenho isso na cabeça por justiça aos meus colegas e para que não me perca numa egotrip de achar que sou sensacional, porque não é fato.”
O jornalismo da Globo firmou ousadia, independência e equilíbrio na cobertura da eleição deste ano e Bonner, o rosto mais visível dessa orientação editorial, consolidou-se como um dos profissionais mais respeitados do País. Nada mal para quem começou a carreira, pelo menos a de apresentador, graças ao mais absoluto acaso. Em 1984, então estudante de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), ele pensava em se sustentar por meio da escrita - já tinha um emprego de redator publicitário - quando gravou a locução de um programa de rádio para o trabalho de um grupo de colegas. No dia da gravação, o diretor da Rádio USP FM passou pelo estúdio, gostou do que ouviu e convidou o aluno para apresentar um programa de rock.
No ano seguinte, o recém-formado aposentou a barba rala dos tempos de faculdade e aceitou o convite para trabalhar na Rede Bandeirantes. No começo, não aparecia na tela, apenas lia notícias no programa Oito e Meia. Em seguida, apresentou o Jornal de Amanhã. Com apenas um ano de formado, em 1986, chegou à Rede Globo, sepultando definitivamente os sonhos juvenis de se tornar engenheiro mecânico. “Queria construir carros, mas odiava cálculo. Ainda bem que a vida me corrigiu”, conta.
William, no entanto, mantém a antiga paixão. Não constrói, mas adora dar consultorias aos colegas que estão prestes a adquirir um automóvel e tem um prazer especial em comprar um carro. Em sua casa, são três: o dele, o da mulher, a também jornalista Fátima Bernardes, e o que o casal usa quando sai com os três filhos. Atualizado com os novos lançamentos e atento a cada detalhe, Bonner já chegou a fazer seis test-drives em um mês até escolher seu último carro. Quando o assunto é automóvel, só não consegue influenciar a própria mulher. “Ele sugere, dá palpite, mas para mim é tudo igual”, diz Fátima, revelando um dos poucos pontos que o casal não tem em comum.
A maneira de se vestir também chegou a ser uma diferença entre os dois, mas desapareceu ao longo dos 12 anos de união. “Era mais largado. Melhorei porque a Fátima é tão elegante que comecei a me sentir incomodado”, conta o jornalista. Hoje, ficaram no passado histórias como a vez em que William entrou numa farmácia de Ribeirão Preto (SP) vestindo bermuda surrada, camisa amarrotada, com barba por fazer e óculos para os seis graus de miopia. “Depois a Fátima foi à mesma farmácia e a vendedora disse que o marido dela tinha ido lá antes, disfarçado. E eu estava autêntico”, lembra Bonner, que no JN usa lentes de contato.
Na época, os dois estavam em Ribeirão Preto para o tratamento de fertilização in vitro que possibilitou ao casal ter os trigêmeos Laura, Beatriz e Vinícius, 5 anos, assunto que William trata com o mesmo espirito esportivo. “Quando vi meu espermograma com o índice de 200 mil cheguei a comemorar, dizendo que tinha um Maracanã lotado. Até que o médico disse que o ideal seriam 60 milhões”, conta.
O bom humor foi fundamental para superar um momento efetivamente duro: o jornalista sentiu-se culpado por só descobrir que o problema era com ele, após a mulher fazer dois exames. A necessidade de Fátima tomar hormônios no tratamento contribuiu para esse sentimento. “A gravidez foi de risco porque foi fertilização in vitro, e foi assim porque a produção do pai era baixa. Me senti culpado um tempo, mas acabou quando deu tudo certo, e a gente é muito feliz hoje”, diz.
E essa felicidade está longe de ser ameaçada. Nem mesmo o assédio, que ele garante não receber, representa um risco. “Não sou mais um homem desejável. Sou o cara do Jornal Nacional. Na melhor das hipóteses sou o marido da Fátima”, diz o homem que foi tímido até 1982, quando se rebelou contra a decisão de uma professora da faculdade. “Ela queria que comentássemos um trabalho de colegas. Fiz um discurso contra aquilo, ninguém entendeu, mas descobri que podia dizer o que pensava.”
Hoje o jornalista não se aborrece nem ao lembrar do preconceito que sofria por ser apresentador. “Fui ser chamado de jornalista há meses”, diz, ressaltando a injustiça com que grande parte da mídia trata apresentadores sem funções editoriais. “Achavam que quem estava ali era um mero leitor, mas profissionais como Cid Moreira têm uma qualidade insuperável em seu ofício.”
Como editor-chefe do JN, Bonner é bem diferente da imagem séria vista diariamente pelos mais de 30 milhões de espectadores do telejornal. “O William parece sério no ar desde os 24 anos, mas na redação está bem próximo do jeito brincalhão de casa”, conta Fátima. A descontração costuma ser a marca das reuniões comandadas por Bonner, onde há espaço para brincadeiras em meio à discussão de assuntos sérios. “Minha equipe é jovem e não precisa estar condenada a fazer uma reunião barra pesada todo dia”, diz.
William, porém, enfrentou uma barra em 1999, logo que assumiu o JN. Debaixo de forte pressão nos três primeiros meses, que ele atribui a uma conjugação de vaidades feridas pela sua escolha, pensou em desistir. Um período de férias o fez mudar de idéia. “Se continuasse a ter discussões homéricas, me deixando influenciar por aquele clima, transformaria a vida de todos ali num inferno.” A solução foi sublimar a pressão até que ela desaparecesse. “Isso eu consegui, e considero uma grande vitória pessoal” diz Bonner, dando, enfim, uma trégua à modéstia.

sábado, 29 de outubro de 2011

HONÓRIO, O GURGEL - A VENDA

Foi o recado do porteiro, quando se chegava em casa mais uma vez, que despertou aquelas recordações nada exemplares referentes ao nome José Emir. Nada exemplares porque estúpidas, dignas da imbecilidade esporádica dos anos vinte, aquela época dourada, na flor da juventude, quando o sujeito mais faz merda na vida. No caso em questão, a merda era infringir o maior número possível de regras de trânsito durante a madrugada. Afinal de contas, ora pois, o carro jamais fora devidamente regularizado, estava ainda no nome do José Emir, então tome multa para o Zé Emir, tome pose sorridente, com a cabeça pra fora da janela, para a foto do radar do sinal avançado.

Até que veio o porteiro e entregou aquele pedaço de papel com o número de um celular e um nome do lado: José Emir.

Por sorte, a dívida com as multas era menor do que deveria ser, coisa de quinhentos e poucos reais, e o José Emir mostrou ser um sujeito sensato, honesto, que compreendeu perfeitamente as peripécias de um jovem de vinte e poucos anos, que economizou pra comprar o primeiro carro, o gurgelzinho X12, e só seis meses após a compra percebeu que jamais conseguiria botar o Gurgel em seu nome.

E tudo ficou ainda melhor quando, naquele agradável fim de tarde no Cento e Onze do Cem, nós dois confortavelmente acomodados na varandinha fechada do apartamento, em cadeiras da década de 50, com uma outra mola arrebentada, em frente à mesinha com tampo de mármore, carcomida pela ferrugem, o grande Zé Emir disse que até estava pensando em comprar um carro como o meu, ou dele ainda, ou nosso.

O negócio foi fechado ali, na hora, e todos ficaram felizes. De um lado, um cara de vinte e tantos anos que jamais conseguiria regularizar seu carro, vendendo o Gurgel para o único sujeito que jamais teria problemas de documentação com o veículo; e do outro lado esse mesmo sujeito, que finalmente conseguia se livrar das multas injustas em seu nome, e ainda por cima tinha adquirido um carro por módicos dois mil reais, ou mil e oitocentos, com o desconto do IPVA atrasado.

E assim terminava uma época da vida, um período tão desprovido de preocupações de verdade que até tempo pra batizar carro havia, se bem que essa história de dar nome a um veículo automotor continuou ainda por alguns anos, porque depois de Honório, o Gurgel, veio Bóris, o Niva. Mas isso é uma outra história.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O ENGENHEIRO

A matéria era sobre um prédio. Uma dominical de página inteira sobre a antiga sede do Ministério da Fazenda na época em que o Rio era capital. O prefeito tinha resolvido tombar o Palácio da Fazenda e anunciou a intenção de usá-lo para abrigar repartições municipais. O governador reagiu, disse que já tinha pensado nisso antes e tornou público um ofício enviado três meses antes ao presidente, requisitando para o estado as instalações do edifício suntuoso, que tinha vinte e três mil metros quadrados de mármore e muito espaço ocioso, desde a transferência da capital para Brasília. No meio da briga, o editor chamou o repórter e pediu a matéria de página inteira.

Num tempo sem internet na redação, a salvação foi a lista telefônica. Tinha o nome do engenheiro do Palácio ali, ao lado de um número, só não era muito provável que o sujeito estivesse em condições de dar entrevista quase 54 anos depois da inauguração do prédio que ele tinha construído. Atendeu o filho, que disse que sim, o pai estava vivo e lúcido, aos 93 anos, e poderia dar entrevista, mas que levá-lo pra frente do palácio para uma foto já era um pouco demais. Idéia do editor, disse logo o repórter, tratando de deixar a foto pra lá e marcando a entrevista para o dia seguinte.

E sentado no sofá da sala acarpetada, num daqueles apartamentos antigos de Copacabana, o repórter só precisou esperar uns três minutos até ser recebido pelo senhor sorridente, impecável num terno, que andava sem necessidade de apoio, nem de bengala, e segurava o relatório de construção do Palácio da Fazenda quase como um documento de identidade, e que mesmo ouvindo muito mal, e falando muito baixo, sentou com o repórter no sofá e durante pouco mais de uma hora falou sobre o palácio, lembrou de detalhes da obra, de decisões importantes, e no fim se despediu ainda sorridente, dando a impressão de que, se o repórter quisesse, poderia continuar a falar sobre o palácio, o tempo que fosse necessário.

A matéria abaixo foi um box, separado do texto de abertura

Jornal do Brasil, edição de domingo, 2 de fevereiro de 1997

“O palácio nada tem a ver com o fascismo e não é luxuoso. Se há nele abundância de mármore, é com o objetivo de executar acabamentos adequados à sua finalidade, ou de proteger paredes em locais de grande fluxo de pessoas”

A audição já não é a mesma, mas a memória funciona a todo vapor. Aos 93 anos, perfeitamente lúcido, o engenheiro chefe da construção do Palácio da Fazenda, Ari Fontoura de Azambuja, recorda com satisfação os cinco anos que passou à frente do batalhão de operários que ergueu o prédio. Satisfeito, ele se orgulha de ter concluído a obra com um custo considerado baixo para a dimensão do projeto. “A construção foi barata por causa das 30 concorrências parciais, uma para cada parte do projeto, ao contrário do que costuma ser feito atualmente”, conta Ari.
O engenheiro lembra ainda que teve participação fundamental para que a obra ficasse pronta logo. “A idéia inicial era formar uma comissão de técnicos, todos com o mesmo poder de decisão, como em outros empreendimentos do governo. Fiz valer a minha tese e consegui criar um escritório técnico com diversos especialistas, todos subordinados a mim. Um empreendimento da natureza do Palácio da Fazenda exigia, antes de tudo, pronunciamentos rápidos e firmeza de direção”, diz.
O ritmo acelerado da obra acabou proporcionando a Ari uma nova oportunidade de enriquecer seu currículo. “Fomos convidados para terminar o prédio do Ministério da Educação (o atual Palácio Gustavo Capanema, no Centro), que havia começado dois anos antes da nossa obra e só terminou uma ano depois. Aceitei com a condição de que o projeto original de Oscar Niemeyer e Le Corbusier fosse respeitado, mas saí antes da inauguração”.
Alheio ao interesse despertado pelo prédio que construiu, Ari é contra a mudança de dono pleiteada tanto pela prefeitura quanto pelo governo estadual. “O prefeito e o governador têm direito de querer usar o palácio, mas sou mais pela continuação da atual situação. É uma tradição de mais de 50 anos”, afirma o engenheiro, que por 29 anos foi funcionário do Ministério da Fazenda, até se aposentar, em 1961.
Numa comparação com as antigas sedes de outros ministérios, como o prédio do Tribunal Regional do Trabalho e o Palácio Gustavo Capanema, Ari mostra que sabe dar valor ao seu trabalho. “Nenhum desses projetos se compara ao prédio da Fazenda. A sede da Educação é bem diferente, no estilo moderno, mas o prédio do Trabalho também é neoclássico e não tem a expressão do palácio que ajudei a construir. Isso é até compreensível, já que o Ministério da Fazenda, por suas atribuições, era o que deveria ter melhores instalações”.
O engenheiro também defende o palácio de comentários que relacionam a sua suntuosidade com o fascismo de Mussolini, que teve simpatizantes entre autoridades brasileiras. “O palácio nada tem a ver com o fascismo e não é luxuoso. Se há nele abundância de mármore, é com o objetivo de executar acabamentos adequados à sua finalidade, ou de proteger paredes em locais de grande fluxo de pessoas”, conclui Ari, repetindo as mesmas palavras que escreveu há 53 anos, no relatório de construção do prédio, enviado ao então ministro Artur de Sousa Costa. Uma cópia desse relatório, aliás, é hoje uma das relíquias que o engenheiro guarda em casa, como lembrança da maior e mais importante obra de sua vida.

sábado, 30 de julho de 2011

NO MESMO DIA

As duas entrevistas foram no mesmo dia. Primeiro, Oscar Niemeyer, na época com 94 anos; depois, Evandro Lins e Silva, que acabava de completar 90. E entre as duas, na espera pelo carro da revista em frente ao prédio do escritório do Niemeyer, na Atlântica, três ou quatro sujeitos mais novos que os dois, sentados em suas cadeiras de rodas, tomavam o banho de sol diário observados, cada um deles, por sua babá particular. Um dormia de cabeça baixa, chegando a babar; o outro parecia entrevado, os olhos arregalados, a boca torta, e babava também.

O carro da revista chegou rápido, e do Niemeyer fomos para o Evandro, para outra entrevista lúcida e bem articulada com o advogado que morreria no fim daquele ano, depois de levar um tombo quando entrava num táxi, ao desembarcar no aeroporto Santos Dumont. Era uma sexta-feira 13 e Evandro voltava de Brasília, onde acabara de ser empossado, pelo presidente Fernando Henrique, como conselheiro da República. Bateu com a cabeça no meio-fio. Qualquer garoto de 18 anos poderia morrer na hora com um tombo desses. Evandro resistiu por mais de três dias no CTI antes de ir embora.

Abaixo, as duas matérias. As imagens do Evandro e do Niemeyer são do Leandro Pimentel, o grande explorador do Recôncavo Baiano

Revista Istoé Gente, edição 131, de 4 de fevereiro de 2002

“Moro em Copacabana e caminho no calçadão pela manhã. Gostaria de caminhar à noite, mas me privo disso para não ser assaltado.”

Aos 90 anos, completados em 18 de janeiro, o advogado Evandro Lins e Silva já foi procurador geral da República, chefe da Casa Civil da Presidência, ministro das Relações Exteriores e ministro do Supremo Tribunal Federal. Nenhum dos títulos, no entanto, parece lhe dar tanto orgulho quanto o que passou a ostentar em 1930, quando iniciou sua carreira: advogado criminalista. “É difícil encontrar algum advogado que tenha defendido o número de causas criminais que defendi”, afirma. O advogado não tem de cabeça a quantidade de processos em que atuou, mas presume que seja um recordista mundial com base nos cerca de mil presos políticos que defendeu no Tribunal de Segurança Nacional, criado para julgar os detidos na Intentona Comunista de 1935 e mantido durante todo o Estado Novo, até 1945.
Evandro ficou famoso atuando em casos de grande repercussão, como a absolvição de Doca Street, acusado de matar a mulher, Ângela Diniz, em 1979. Um dos maiores adversários de idéias como a pena de morte e a prisão perpétua, o advogado acredita que o combate ao desemprego, à fome e à miséria continua sendo a melhor forma de reduzir os índices de violência.

O aumento da violência, principalmente após o assassinato do prefeito Celso Daniel, justificaria a adoção de penas mais severas aos criminosos?
Toda vez que existe um crime de repercussão se forma instintivamente na população o desejo de vingança. Isso é natural, mas deve ser controlado, senão começam a querer restaurar a pena de morte, prisão perpétua. Não se sabe ainda o que houve no caso do prefeito Celso Daniel, mas ninguém vai diminuir a criminalidade aumentando a pena, tornando mais severo o castigo ou botando galés na perna do sujeito. Você resolve o problema dando condições de trabalho, educação, a toda a população.

O senhor já foi assaltado?
Nunca fui assaltado. Deus me protegeu, mas eu deixo de fazer certas coisas por causa da violência. Moro em Copacabana e caminho no calçadão pela manhã. Gostaria de caminhar à noite, mas me privo disso para não ser assaltado.

O senhor continua contrário à pena de morte e à prisão perpétua?
Claro. São dois absurdos. O sujeito tem que viver com a esperança de ser libertado. Posso dizer que sou contra a prisão como método penal. Preso segregado só deve ser quem é perigoso porque pode pôr em risco a vida de outros. O crime contra a propriedade sem violência, não devia dar cadeia. A cadeia não recupera ninguém. Ao contrário, ela despersonaliza e estigmatiza o cidadão, que não pode mais trabalhar. Você tem de encontrar maneiras alternativas de manifestar a reprovação da sociedade contra um crime. Pode ser uma sanção, multa, exílio ou redução de direitos civis, dependendo do caso.

E qual seria a pena para quem comete crimes hediondos?
No caso de alguém que põe em risco a comunidade, a solução é segregar como um louco. Na década de 20, um sujeito chamado Febrônio estuprava e matava meninos na mata da Tijuca, no Rio. O juiz o condenou a permanecer num manicômio judiciário até que ficasse bom. Ele ficou preso durante mais de 40 anos.

O que achou dos indultos concedidos a Guilherme de Pádua e a Paula Thomaz, assassinos da atriz Daniella Perez?
Não vejo problema algum. Eles sofreram punições como deviam, a sociedade manifestou sua reprovação pelo crime. Agora eles já pagaram a dívida. Tem certas pessoas que praticam crimes impulsionadas por um sentimento que não é vil, a distorção da compreensão do amor que leva ao desespero. Cansei de dizer isso no júri. Defendi vários passionais e não tenho um só caso de reincidência entre eles. Nesse tipo de caso, o sujeito quando mata não se reconhece a si mesmo, está movido por uma explosão de ódio que o despersonaliza.

O deputado federal José Genoino, do PT, defendeu a volta da Rota às ruas de São Paulo. O que acha da idéia?
Sou absolutamente contrário a isso. É uma violência.

Qual a melhor maneira de combater o crescimento do crime organizado e o tráfico de drogas nas grandes cidades?
O fundamental é prevenir. Para acabar com o crime, você tem que governar melhor o País. Dar condições a um pai de mandar os filhos para a escola. A distribuição de renda está se tornando cada vez mais injusta. Há no Brasil de 40 milhões a 50 milhões de pessoas que não produzem nada. Hoje o MST está aí, um movimento social que é a continuação do Abolicionismo. Nabuco, Rui Barbosa e Silva Jardim já diziam que era indispensável a reforma agrária quando houvesse a abolição. Claro, porque para onde iriam os negros? Eles só deixaram de ser mercadoria, mas a desigualdade aumentou.

O senhor sugeriria alguma mudança no Código Penal brasileiro?
Quer diminuir a violência? Proíba a fabricação de arma individual. Só permita a requisição do governo para as Forças Armadas e polícias. A arma é o fator preponderante para a prática do crime mais grave, que é o de morte. O difícil é vencer o lobby das fábricas.

Qual foi o processo mais marcante em que atuou?
Procuro sempre dizer que é o próximo. Mas alguns foram curiosos, como quando defendi o cineasta Nelson Pereira dos Santos. O filme dele, Rio 40 Graus, tinha sido proibido pelo chefe de polícia, com o argumento de que denegria a imagem do País porque, segundo o chefe, nunca havia feito 40 graus no Rio. Consegui o mandado e o filme foi liberado.

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Revista Istoé Gente, edição 132, de 11 de fevereiro de 2002

“Chego no escritório às 9h30 e saio às 20h. Almoço aqui, às vezes recebo algum amigo. De vez em quando fazemos uns cursos, agora tem o de Filosofia. Toda terça-feira vem o nosso amigo Luiz Alberto de Oliveira dar aula, a turma se reúne, conversa. Fizemos um sobre o Cosmos também. É uma vida assim, muito tranqüila, de quem não quer se chatear.”

‘‘O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar.” A frase traduz o pensamento de Oscar Niemeyer e está escrita entre os esboços do Congresso Nacional e de outros projetos do arquiteto, desenhados nas paredes brancas de seu amplo escritório, numa cobertura da Avenida Atlântica, no Rio. É nesse espaço claro e rodeado pelo mar de Copacabana que o autor dos prédios de Brasília passa a maior parte de seus dias. Aos 94 anos, continua em plena atividade. Tem projetos em Niterói (RJ), Curitiba e nutre a expectativa de concluir o Eixo Monumental do Distrito Federal – que o arquiteto ainda chama de nova capital –, como prometeu o governador Joaquim Roriz.
Os trabalhos poderiam servir de desculpa para a decisão de não prestigiar a exposição com a retrospectiva de sua obra, inaugurada no dia 5 de fevereiro, em Paris, mas Niemeyer é sincero: “Prefiro ficar no Rio, olhando o mar”. No escritório que se debruça sobre Cobacabana, a decoração é completada por outro pôster com fotos de projetos do arquiteto, como a Universidade Constantine. Uma sala menor serve de refúgio. Nela, a foto de duas mulheres nuas divide espaço com os livros sobre a obra de Niemeyer, que ele não lê. No canto da pequena sala, um cavaquinho e um violão parecem esquecidos. “Já toquei, mas parei há muito tempo”, conta o arquiteto, que está casado há 73 anos com Annita Balbo, é pai de Anna Maria e avô de cinco netos.

É verdade que o senhor tem medo de avião?
Não gosto. Viajei muito na vida, andei muitas vezes de Concorde, mas sempre achei horrível. Tinha que tomar um porrezinho, uma boa dose de uísque, para me tranqüilizar. Só me sentia bem quando punha o pé na terra. Agora quero ficar em casa. Me perguntam se eu posso ir a algum lugar de avião e eu digo que vou. Depois na hora eu digo que não tenho vontade de ir, que prefiro ficar.

Por isso não foi à exposição de Paris?
A exposição será inaugurada dia 5 de fevereiro (a entrevista a Gente foi concedida no dia 25 de janeiro). No dia 8 eu teria de estar na Universidade de Sorbonne para receber uma homenagem lá. Dizem que isso era importante para minha carreira de arquiteto, que é a primeira vez que chamam um arquiteto lá na Sorbonne, mas preferi ficar no Rio.

Qual o segredo para continuar em plena atividade aos 94 anos?
Tenho uma maneira de trabalhar diferente. Trabalho sozinho. Arquitetura é muito pessoal. Aqui sou o único arquiteto. Quando acabo um trabalho, passo para o escritório do centro da cidade, onde meus colegas Ana Elisa Niemeyer, minha neta, Jair Valera e João Niemeyer, meu sobrinho, desenvolvem os projetos. Assim, tenho o dia mais livre, posso atender às pessoas. Trabalho da mesma forma que sempre trabalhei. Sei o que gosto e faço minha arquitetura baseado nisso. Você pode ver aí na minha estante uns 40 livros sobre o meu trabalho. Eu não leio.

Por quê?
Não é que eu despreze o que eles fazem, pelo contrário. É que procuro defender minha intuição. Cada arquiteto deve ter sua arquitetura. Não critico ninguém. Se o arquiteto faz a arquitetura que ele gosta, é o bastante.

Como é sua rotina de trabalho?
Chego no escritório às 9h30 e saio às 20h. Almoço aqui, às vezes recebo algum amigo. De vez em quando fazemos uns cursos, agora tem o de Filosofia. Toda terça-feira vem o nosso amigo Luiz Alberto de Oliveira dar aula, a turma se reúne, conversa. Fizemos um sobre o Cosmos também. É uma vida assim, muito tranqüila, de quem não quer se chatear.

E o projeto do livro com o engenheiro José Carlos Süssekind, como está?
Estamos fazendo um livro há quase um ano. Eu escrevo para ele e ele me responde. A idéia era comentar problemas da profissão, mas como a vida é muito mais importante que a arquitetura, discutimos tudo. Coisa de um ser humano que sabe que não tem a menor importância, que não acredita em nada desse negócio de deixar a obra pronta.

Por que não acredita na importância de deixar uma obra?
Tudo vai acabar daqui a algum tempo. Aí me dizem que depois que eu morrer outras pessoas verão minha obra. Mas essas pessoas vão morrer. Aí virão outros, que vão morrer também. A imortalidade é uma fantasia, uma maneira de esquecer a realidade. A vida é um sopro.

No que o senhor acredita então?
Acredito na inteligência do ser humano. Ela ainda me espanta. O homem que era um troglodita hoje voa no espaço. Mas isso não passa de especulação intelectual, porque o mundo de amanhã não vai ser melhor que o de hoje, mesmo que a ciência crie coisas espantosas, como as máquinas pensantes. Temos que olhar o futuro com uma certa dúvida. Não é o progresso que vai resolver a vida do homem.

E o que pode resolver?
Defendo a solidariedade. Jean Paul Sartre dizia gostar de ter dinheiro para dar esmola, mas o que havia de bom naquela atitude é que ele tinha prazer. Não porque era um ato louvável. Ele tinha prazer. No dia que o ser humano tiver essa mesma disposição, de gostar de ajudar os outros, a vida vai melhorar. Não vai haver esses bombardeios. O americano não sabe mais onde jogar bomba. Não tem mais onde jogar. Podem um dia jogar na Amazônia, tudo é possível.

O que sentiu ao ver o World Trade Center caindo?
Você não pode gostar de ver morrer tanta gente. Foi terrorismo, como foram terrorismo todos os bombardeios que os Estados Unidos vêm fazendo desde os tempos do Saddam.

E sua visão de arquiteto?
Era um prédio de tantos andares, nem sei quantos. Era uma expressão de poder.

Ainda acredita no comunismo?
Lógico. Gosto da idéia de que todos possam ser iguais. É importante olhar em torno, ver que a miséria se multiplica e ter coragem de protestar. Importantes foram Che Guevara, Fidel Castro, Marighella (guerrilheiro líder da Ação Libertadora Nacional, morto pela ditadura brasileira em 1969), gente que estava disposta a dar a vida por uma idéia.

Chegou a pensar em apoiar a luta armada contra a ditadura?
Nunca. No Brasil nunca houve condição para isso. Mas acho admiráveis os que tomam essa decisão. Podem estar errados, mas o que vale é a disposição para mudar as coisas.

Tem candidato para a eleição presidencial?
Votaria no Brizola ou no Stédile. Brizola porque sempre foi um revoltado contra tudo o que tem ocorrido de ruim neste país. E o Stédile porque está nessa briga pela reforma agrária, é corajoso e sabe conduzir a luta dos sem terra, movimento social da maior importância, que todo brasileiro consciente deveria apoiar.

E o Lula?
O Lula é progressista, mas não tão radical quanto antes.

Tem orgulho pessoal por ser amigo de Fidel Castro?
É uma pessoa fantástica, que conseguiu defender Cuba das pressões do imperialismo norte-americano. É um exemplo importante para toda a América Latina. Tenho orgulho de ser amigo dele, de Luiz Carlos Prestes, de todos os meus amigos. Quando ia para a Europa, sempre levava os amigos. Essa foi uma das coisas que me deu muito prazer. Um amigo foi comigo a Moscou. Depois perguntei a ele o que tinha achado e ele me respondeu: “É Madureira sem bacanidade”. O lado bom da vida é ter prazer em ajudar os amigos.

O que acha de Brasília hoje?
Deu certo, provocou o progresso para o interior. Basta ir a Goiânia e sentir isso. O Plano Piloto do Lúcio é muito bem pensado. Simples e acolhedor nas áreas de habitação, mas rico em monumentalidade no seu eixo principal, como uma capital exige.

Tem críticas à cidade hoje?
É claro que, com o tempo, muita coisa perde a unidade. Isso se verifica nas ruas da nova capital, na mediocridade de sua arquitetura, na profusão de anúncios que a compromete. O pior é ver o Eixo Monumental inacabado. Ele é o ponto de referência, para onde se dirigem os turistas, arquitetos estrangeiros, curiosos em conhecer sua arquitetura. Mas me agrada ver que o governador Joaquim Roriz quer completá-lo. No próximo mês, será lançada a pedra fundamental do museu e da biblioteca, e depois a do resto do setor cultural. Aí vamos ter prazer de ver a capital.

O que valoriza mais em Brasília?
Com relação a meu trabalho, é a arquitetura diferente. Em Brasília, você pode gostar ou não dos palácios, mas não pode dizer que é igual. Não pode ver um Congresso igual ao de Brasília, uma igreja igual à Catedral. Pode ter visto melhores, mas iguais, não.

Que obra sua mais lhe agrada?
São temas diferentes. Você não pode comparar um palácio com uma escola. Mas, por exemplo, a Universidade de Constantine (em Alger, na Argélia) me deu muito prazer. Estabelecemos ali uma série de princípios. Fizemos uma universidade mais versátil, melhor para os alunos andarem de um lado para o outro. Fiz outras obras que me agradam. Brasília não é o fundamental no meu trabalho. Gostei de fazer porque foi um momento de otimismo, todos acreditando que o Brasil iria melhorar, o Juscelino sempre cordial, acompanhando as obras com interesse, mas foi uma parte do meu trabalho.

E a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York?
A sede da ONU não me agrada. Meu projeto foi modificado, dividiram o terreno em dois, a Praça das Nações Unidas que imaginara desapareceu.

O projeto foi modificado por causa de Le Corbusier? (O projeto de Niemeyer foi aprovado em 1947, mas o arquiteto francês pressionou o brasileiro para ser co-autor da sede e o convenceu)
Não gosto de relembrar isso. Recordo que, meses após a nossa presença na ONU, almocei com Le Corbusier em Paris. Ele me fitava longamente e dizia: “Oscar, você é generoso”. Lembrei o dia em que, para atendê-lo, mudei o meu projeto, e isso me agradou.

Como participa da Fundação Oscar Niemeyer?
Isso é idéia da minha neta Ana Lúcia, ela é quem cuida. Não acredito muito em fundação, pelo menos para defender uma obra. Mas ela é muito inteligente e dá à fundação um sentido mais social, faz publicações sobre a obra de outros arquitetos e procura ajudar os movimentos justos.

O senhor tem alguma mania?
Não digo mania, mas gosto de ficar sozinho no meu escritório, pensando na vida, me analisando um pouco. Às vezes, o passado comparece, lembro dos meus irmãos, os amigos perdidos para sempre, e uma tristeza mansa e silenciosa me invade, o que me faz muito bem. Outras vezes é a miséria do mundo, essa miséria imensa que os mais ricos aceitam, indiferentes. E me sinto mais radical nas minhas posições diante da vida.

É um homem rico?
Já disse que teria vergonha se fosse um rico, e é verdade. O que ganho, gasto. Não tenho o menor interesse em dinheiro. Aprendi isso com meu avô materno, Augusto Ribeiro de Almeida, com quem morei toda vida. Ele foi ministro do Supremo Tribunal Federal por muitos anos e morreu pobre. Até a casa que nos deixou estava hipotecada. Guardo tanto a memória dele que nos meus livros, embaixo do nome por que sou mais conhecido, faço constar Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares.

O senhor tem medo de morrer?
Não. Se tenho algum medo de morrer é porque vou fazer falta a gente que eu ajudo. Mas a vida é isso. Rir e chorar o tempo todo.