segunda-feira, 9 de abril de 2012

AH! É EDMUNDO!

 Imagine-se com vinte e cinco anos de idade e torcedor apaixonado de um determinado time. Imagine que este time seja, no momento, o melhor do país e um dos melhores do planeta, com um goleiro de alto nível, um zagueiro veterano simplesmente imbatível, um lateral-esquerdo imarcável – amigo de infância do ponta-de-lança promissor, ambos com dezoito anos –, um meia de passe perfeito, que ainda faria o gol mais importante da história do clube, e um atacante em fim de carreira que lembrava, no físico, no jeito de jogar e nas cobranças de falta, o sujeito que marcou mais de setecentos gols com a camisa do time, e que além de maior artilheiro da história do campeonato carioca, é também o maior do Brasileirão, em todos os tempos. Imagine agora que o grande craque desse time campeão brasileiro não é nenhum desses caras, mas sim outro atacante; e que, além de quase a mesma idade, este outro atacante tem o mesmo nome do torcedor apaixonado de vinte e cinco anos.

Imagine-se então no Maracanã lotado, num jogo decisivo contra o maior rival, numa situação parecida com outra, de cinco anos antes, decidindo vaga na final do brasileiro, quando o torcedor, então com vinte anos, também estava no estádio. Há cinco anos, o Xará era a maior revelação do campeonato e já tinha feito o rival cair de quatro na fase de classificação. No jogo decisivo, quando estava no chão, caído após sofrer falta não marcada pelo juiz, o Xará foi atingido por um soco na cara. Estava estirado, com o rosto voltado pro chão, e levou um soco sem a menor chance de defesa, do zagueirão malandro, então um dos ídolos do rival. O zagueirão malandro não levou nem amarelo pela agressão covarde, que, vá entender, é lembrada e celebrada por torcedores do rival. Levou amarelo apenas quando, último homem, deu uma banda por trás no craque do time, que viria a ser o artilheiro do campeonato e partia sozinho na cara do gol. Não foi expulso. Ficou em campo até o fim da partida. Expulso, mesmo, só um zagueiro do time, que além disso viu seu lateral-esquerdo sair de campo contundido para voltar com o braço enfaixado, colado ao corpo. E com um a menos e outro sem um dos braços, o time acabou perdendo por dois a zero, jogo duro até o final, e o rival foi pra decisão, comemorando, entre outros “feitos e glórias”, a agressão covarde do zagueirão malandro.

Voltemos, pois, aos vinte e cinco de idade do torcedor e imaginemos que, no começo da revanche daquela partida, com menos de quinze do primeiro tempo, o Xará tabela com o atacante em fim de carreira e passa em disparada por toda a defesa do rival, incluindo o goleiro e o zagueirão malandro, que continua por lá, ainda ídolo. Enquanto todos os defensores batem cabeça, o Xará só não entra com bola e tudo porque tem humildade em gol e sai em disparada na comemoração, provocando a torcida adversária como o mais apaixonado dos torcedores. No fim do primeiro tempo, o time, pela milionésima vez na história do confronto com o rival, tem um jogador expulso, e volta do intervalo com um a menos e a vantagem do empate.

A impressão é que o rival virá com tudo para o segundo tempo e eles até tentam, mas sofrem os contra-ataques. Num deles, em lançamento do meia de passe perfeito, monumental, o Xará e o zagueirão malandro correm juntos enquanto a bola descai, já na entrada da grande área. Os dois correm lado a lado, um pouco à frente dela, esperando a altura ideal para interceptá-la ou dominá-la e partir em direção ao gol, mas a bola não quica no chão, não ainda. Antes disso, bate com capricho de deusa nas costas do Xará e tira do lance não só o zagueirão malandro mas também o goleiro, que já saía desesperado. A bola então, claramente apaixonada, se oferece na frente do Xará com o gol escancarado; e no Maraca, aos vinte e cinco de idade, o torcedor começa a enlouquecer de alegria, junto com a maioria mais que absoluta da torcida presente.

A festa da vitória não é abafada nem pelo gol do rival, no milionésimo pênalti “polêmico” marcado a favor deles na história do confronto. O zagueirão malandro bateu e converteu, em lance destinado ao esquecimento, não só pelo que já tinha acontecido na partida, mas sobretudo pelo que estava por vir. Àquela altura, o Xará já tinha batido o recorde de gols num só jogo, seis, superando o próprio artilheiro histórico do time, que enfiara cinco de uma vez só num certo timão. Artilheiro do campeonato, sem chance de ser alcançado, o Xará estava a três gols do recorde absoluto em uma edição de Brasileirão. Com os dois marcados na partida, já tinha igualado e estava a um gol apenas de superar a marca quando dominou a bola dentro da área, na frente do lateral adversário e do zagueirão malandro. Daí levou para o meio com a direita, como quem iria chutar, mas na hora do chute cortou de letra com a direita, deixando o lateral e o zagueirão malandro com ares de vilão de comédia muda, virados para um lado com a bola do outro, na medida para o chute rasteiro de canhota, no cantinho, devagarinho, e lá se foi um recorde prestes a completar vinte anos. O Xará então saiu balançando os braços, rebolando, fazendo careta, sacaneando, esculachando; e na arquibancada, aos vinte e cinco, o torcedor pulava pelos degraus abraçado com desconhecidos, ele que já tinha presenciado, na mesma arquibancada, seis anos antes, um gol de placa do Xará sem nem saber de quem se tratava, na preliminar de juniores de um clássico pelo carioca.

O Xará não era nem titular dos juniores. Entrou no segundo tempo da partida e dominou a bola no círculo central, para partir em disparada driblando um, dois, três, quatro e, de frente pro goleiro, tocar no canto, sem defesa, sem que ninguém entre os milhares de torcedores presentes ao estádio sequer soubesse o nome dele, porque ele só começou a ficar famoso uns seis meses depois, na estreia no time principal, quando ajudou a meter quatro no tal timão dentro do estádio dele. Campeão carioca invicto, na despedida do artilheiro histórico, partiu para seguir carreira, sempre voltando ao time, declarando amor ao time, perdendo pênaltis contra o time e sendo ovacionado no estádio do time, pela torcida do time, marcando golaços em jogos de suma importância, como na vitória inesquecível sobre o campeão europeu no Maraca, pelo Mundial de Clubes, e protagonizando grandes tragédias, como na final do mesmo Mundial, contra o rival sem título continental. E o Xará sofria como poucos nas derrotas. Após outro pênalti perdido, numa semifinal de Copa do Brasil, depois de fazer o gol salvador no último minuto do tempo regulamentar, em que o time teve um gol legal anulado, raspou a cabeça e decidiu abandonar o futebol. Mudou de ideia para seguir até o fim do ano, tentando evitar a queda esperada por todos, do jornalista recalcado à grande emissora de televisão, dos rivais de sempre à confederação brasileira de futebol. Mesmo fazendo treze gols aos trinta e sete de idade, consolidando de vez a terceira colocação como maior goleador da história do Brasileirão, a apenas dois gols do ex-amigo também formado pelo time, e bem na frente do maior ídolo do rival, o Xará não conseguiu evitar a queda. Encerrou a carreira ali, com mais uma dura derrota, mas há exatos doze dias, pouco mais de três anos depois da queda, teve a despedida que sempre mereceu.

No estádio do time, lotado por milhares de torcedores do time, o Xará jogou sua última partida com a camisa do time. Ovacionado sem parar, cantou o hino do time junto com os torcedores e os colegas de equipe, entre eles o meia da cobrança de falta mortal, monumental. Fez dois na goleada de nove a um, um de pênalti e outro de voleio, de primeira, e depois desse, após os cumprimentos de praxe dos companheiros, saiu balançando os braços, rebolando e sorrindo, lembrando aquela noite mágica no Maracanã em que o torcedor apaixonado de vinte e cinco anos rolava pela arquibancada de pura felicidade, e gritava seu próprio nome com todas as forças, já rouco, ensandecido.

Ah! É Edmundo!

A matéria abaixo, assinada também pela Rosângela Honor, mostra um pouco do que enfrentou o xará ao longo da carreira. No caso, já de volta ao Vasco, pagava por um erro cometido quando defendia as cores de exu. Coincidência?

Revista Istoé Gente, edição número 10, de 13 de outubro de 1999

No regime semi-aberto, o condenado tem de se apresentar na prisão até às 22h, de onde só sai no dia seguinte. No caso do atacante vascaíno, a Justiça poderá levar em conta os horários dos jogos e liberar o craque até por alguns dias, para as partidas disputadas fora do Rio.

A última terça-feira, 5 de outubro, parecia mais um dia rotineiro na vida do atacante Edmundo Alves de Souza Neto, 28 anos. De manhã, ele foi à concentração do Vasco, no hotel Rio Othon, em Copacabana, fez musculação e ficou sabendo que seria poupado do jogo do time naquele dia, contra o Cerro Porteño, do Paraguai, pela Copa Mercosul, porque o time já não tinha mais chances na competição. O jogador ainda almoçou com os companheiros antes de voltar para casa. Por volta das 15h15, porém, um telefonema do advogado Arthur Lavigne mudou seu trajeto. O Tribunal de Justiça do Rio tinha acabado de manter a sentença da 17.ª Vara Criminal, que em março condenara o jogador a quatro anos e meio de prisão, em regime semi-aberto. Ele foi considerado culpado por ter provocado a morte de três pessoas no acidente com o Cherokee que dirigia na madrugada de 2 de dezembro de 1995, na Lagoa, zona sul do Rio.
Um acordo entre o vice-presidente jurídico do Vasco, Paulo Reis, e o diretor da Polinter, delegado Cláudio Nascimento, evitou que o jogador fosse preso na terça-feira. Enquanto isso, o advogado do atacante, Arthur Lavigne, tentava conseguir um habeas-corpus para seu cliente no Superior Tribunal de Justiça. No mesmo dia, instruído por seus advogados, Edmundo não apareceu em casa, num luxuoso condomínio na Barra, zona oeste da cidade.
Na noite do acidente, Edmundo e alguns amigos seguiram para a boate Sweet Home, na Lagoa, onde encontraram Joana Martins Couto, 16, e sua amiga Déborah Ferreira da Silva, então com 21 anos. Barrada na boate naquele dia, Joana ainda hesitou em aceitar a carona oferecida por Edmundo até o bar El Turfe, na Gávea, mas foi convencida por Déborah. Na esquina da avenida Borges de Medeiros com a rua Batista da Costa, na Lagoa, o Cherokee do atacante se chocou com o Fiat Uno cinza dirigido por Carlos Frederico Pontes, 24. O carro de Edmundo capotou várias vezes e ficou com as rodas para o ar, enquanto o Fiat foi jogado a uma distância de 30 metros e colidiu com um poste. Carlos Frederico morreu na hora. A namorada dele, Alessandra Cristina Perrota, 20, e Joana morreram algumas horas depois, no hospital Miguel Couto.
Déborah quebrou a bacia, a quinta vértebra da coluna e quase ficou paraplégica. Ela ainda está se recuperando do acidente. "Levei quase dois anos para voltar à vida normal", diz Déborah, que teve de largar o emprego de vendedora na loja Blue Man, em Ipanema, e perdeu as provas do vestibular naquele ano. Além das duas amigas, também estavam no carro do atacante do Vasco o empresário Marckson Gil Pontes, 31, e a estudante Roberta Campos, 19. Os dois ficaram levemente feridos, assim como Natasha Marinho Ketse, 19, que estava no Fiat Uno. A mãe de Joana, Eliane Artiaga Martins, 47, assistiu ao julgamento de terça-feira 5 na 6.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça e aplaudiu a decisão dos desembargadores Eduardo Mayr, Erié Sales da Cunha e Maurício da Silva Lintz. "Pensei que iria encontrar uma pessoa arrependida, mas não foi isso que aconteceu", diz Eliane.
Os advogados das vítimas, Técio Lins e Silva e Avelino Gomes, garantem que, mesmo que o habeas-corpus seja concedido pelo STJ, Edmundo dificilmente escapará da prisão. "A sentença não feriu preceito algum da Constituição e, por isso, dificilmente será revogada", diz Técio, que representa a família de Joana.
O recurso ao Superior Tribunal de Justiça é a única alternativa que resta à defesa de Edmundo. Quando chegar ao tribunal superior, serão três as possibilidades. O STJ poderá se recusar a apreciá-lo, manter a decisão da Justiça do Rio ou modificar a sentença. A última possibilidade, no entanto, é considerada remota, já que a decisão do Tribunal de Justiça do Rio foi unânime. Se a sentença for mantida, Edmundo terá de cumprir no mínimo nove meses - um sexto da pena - até ter direito à liberdade condicional, em caso de bom comportamento. Sem curso superior, ficará em uma cela comum caso venha a ser preso. Se isso acontecer, ele dependerá do juiz da Vara de Execuções Penais para continuar jogando pelo Vasco. No regime semi-aberto, o condenado tem de se apresentar na prisão até às 22h, de onde só sai no dia seguinte. No caso do atacante vascaíno, a Justiça poderá levar em conta os horários dos jogos e liberar o craque até por alguns dias, para as partidas disputadas fora do Rio. 
O acidente já proporcionou outras condenações, em ações cíveis movidas pelas vítimas. Déborah recebeu R$ 100 mil, mas seus advogados ainda cobram R$ 60 mil estabelecidos pela sentença. Roberta Campos entrou em acordo e recebeu três parcelas de R$ 40 mil. A família de Joana Martins Couto ganhou uma indenização de mais R$ 300 mil, mas não recebeu um centavo porque a sentença ainda está em fase de execução. O atacante também foi condenado a pagar R$ 227 mil à família de Alessandra Perrota - em processo no qual poderá ter sua mansão penhorada para garantir o pagamento da indenização. A família de Carlos Frederico Pontes ainda aguarda uma decisão da Justiça no processo que move contra Edmundo.