quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A QUATRO MÃOS

A entrevista até que correu bem, mas não foi fácil. O entrevistado tinha mais de noventa anos de idade e não falava lá muito alto. Mesmo com a cadeira bem perto da dele, com o gravador o mais próximo da boca dele que a boa educação permitia, algumas falas escaparam na hora, e mesmo no gravador foi trabalhoso recuperá-las. Sorte que a entrevista rendeu o suficiente, e mais sorte ainda que no fim dela, depois de quase uma hora de conversa naquele gabinete colado ao salão branco cercado pelo mar de Copacabana, onde um cavaquinho se recostava atrás da porta, ele pediu pra ver o texto antes da publicação. Queria que o repórter, se fosse possível, por obséquio, enviasse por fax a matéria pronta, e o repórter aceitou de imediato. Só pediu, se fosse possível, por obséquio, que a resposta fosse rápida, no máximo um dia depois do envio, para evitar problemas com o horário de fechamento. O prazo foi cumprido e o que era dúvida, um ou outro trecho meio nebuloso, prejudicado pela dificuldade de ouvir o que tinha sido dito, voltou melhor, claro, nítido, bem mais condizente com um raciocínio que, viu-se depois, manteve-se na ativa por mais de cem anos.

Um ano depois, em nova entrevista no mesmo gabinete, com o mesmo cavaquinho atrás da porta, o método foi repetido. A matéria era uma biografia resumida do entrevistado dividida em quatro capítulos, um por semana. O primeiro texto voltou com um bilhete dele bem sucinto: "Diante dos inúmeros erros em seu texto, favor anotar essas correções, grato". Devia estar de mau humor, porque as correções apontadas, ainda que importantes, eram só três. No segundo e no terceiro textos ele apontou um ou outro detalhe, mas não mandou bilhete. No último, não fez correções e voltou a mandar um bilhete pelo fax. "Gostei muito da matéria. Grato". E claro que o repórter perdeu esse fax.

Oscar Niemeyer morreu ontem, aos 105 anos, a matéria da qual ele disse ter gostado, embora sem qualquer prova disso, é esta aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 219, de 13 de outubro de 2003

“Não imaginava que minha vida iria dar samba”.


Brasília já tinha sido inaugurada havia três anos quando, antes de partir para uma temporada no exterior, Oscar Niemeyer se encontrou com o amigo Darcy Ribeiro. Na despedida, foi saudado com otimismo pelo antropólogo, que não escondia a euforia com a linha de esquerda adotada pelo então presidente João Goulart. “Estamos no poder, Oscar”, saudou Darcy. O ânimo durou pouco. O arquiteto ainda estava na Europa quando estourou o golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil. Depois de passar um mês em Paris, Niemeyer recebeu em Lisboa a notícia do golpe, dias antes de partir para Israel, onde ficaria seis meses.
Hospedado no Hotel Victória, o arquiteto passou os últimos três dias na capital portuguesa com o ouvido colado ao rádio, na expectativa por qualquer boa notícia. Com a confirmação da queda de Jango, foi para Israel. Durante os seis meses em que trabalhou em Tel Aviv, recusou qualquer convite para festas. “Parecia-me que, aceitando os convites, estaria traindo aqueles que no Brasil enfrentavam a opressão e a violência”, justifica.
O escritório do arquiteto no Rio de Janeiro foi invadido e a revista Módulo, que Oscar fundara em 1955, deixou de circular. “Quebraram tudo. Quando voltei tive de prestar contas”, diz ele, que não chegou a ser preso, mas foi interrogado algumas vezes pelas forças da repressão. Em uma delas, numa pequena sala acolchoada e na companhia de um escrivão e um policial encarregado do interrogatório, Niemeyer não dispensou a ironia nas respostas.
– Senhor Niemeyer, o que vocês comunistas querem? Mudar a sociedade? – perguntou o policial.
– Escreve aí, mudar a sociedade – respondeu o arquiteto, virando-se para o escrivão e provocando uma reação desanimada dos policiais.
– Vai ser difícil – disse o escrivão, com ar de desalento, ao policial que fazia as perguntas.
O interrogatório não passou disso, mas não devolveu a paz que o arquiteto precisava para trabalhar no Brasil. A solução foi aumentar o número de projetos no exterior, como o da Universidade de Constantine, na Argélia, em 1969, onde Niemeyer manteve o hábito de levar os amigos misturados com colegas de trabalho. “Tivemos de recrutar às pressas profissionais disponíveis para acompanhá-lo e montar um escritório lá, e todos, de preferência, tinham de ser amigos do Oscar”, diz João Filgueiras, que na época trabalhava com Niemeyer. Darcy Ribeiro apareceu e ficou uns meses por lá, junto com Luiz Hildebrando Pereira da Silva, médico do Instituto Pasteur (na França), que também nada tinha a ver com arquitetura. “Foi um tempo bom”, resume Niemeyer.
Feliz durante a estadia na África, Niemeyer pôde elaborar um de seus projetos prediletos. Sem a importância histórica de obras como Brasília e a sede da ONU, em Nova York, a Universidade de Constantine tem até hoje lugar reservado na memória do arquiteto. “O projeto não é bom porque é monumental, mas porque nele estabelecemos uma série de princípios. Ali reduzimos o número de prédios de vinte para sete, facilitando a circulação dos alunos e tornando a universidade mais versátil”, lembra.
Instalado em Paris a partir de 1967, onde abriu seu escritório na Champs Elysées cinco anos depois, o arquiteto passou a ganhar cada vez mais projeção internacional. Além de projetos como o da sede da editora Mondadori, na Itália, fez novas amizades. Uma delas foi Jean-Paul Sartre. Convidado para a casa do filósofo francês e para reuniões políticas com ele na rua, Oscar dava preferência aos encontros privados, pois o partido comunista não via com bons olhos os eventos políticos. “Sartre não era alinhado ao partido, mas apoiava os movimentos de esquerda. Dizia que gostava de ter dinheiro para dar esmola, e dava com prazer. Era um grande sujeito”, conta Niemeyer.
Não foi qualquer restrição do partido, mas sim o medo de avião que o impediu de conhecer na época outra figura histórica. Temeroso de pegar um avião soviético na Espanha, único meio de chegar a Cuba nos anos 70, não realizou a vontade de visitar Fidel Castro. Adiado em cerca de 20 anos, o encontro acabou acontecendo no escritório de Niemeyer em Copacabana, durante a Rio 92, a conferência que reuniu os principais líderes mundiais para discutir assuntos ligados ao meio ambiente.
Não bastasse o caráter histórico, a reunião foi marcada por uma cena insólita. Na hora de Fidel ir embora, por volta da meia-noite, o único elevador que dava acesso à cobertura de Oscar quebrou. Para pegar o outro, os convidados tinham de passar por dentro do apartamento vizinho, e foi o que aconteceu, Um atônito morador, provavelmente de pijama, abriu a porta de sua casa para que ela passasse o presidente de Cuba e um dos maiores ícones do socialismo mundial. Único comunista do prédio, Niemeyer se orgulhou ao ver, na saída do amigo e companheiro de ideologia, todas as luzes do edifício acesas e seus vizinhos aplaudindo o convidado ilustre.
Dez anos depois, em 2002, aos 94 anos, o motivo de aplausos voltou a ser o arquiteto. De inusitado dessa vez, só o lugar da homenagem. Escolhido como enredo da escola de samba Unidos de Vila Isabel, Niemeyer foi à festa de inauguração da quadra que ele mesmo projetara, na zona norte carioca. Na recepção, o compositor Martinho da Vila, uma das principais figuras da escola, impediu sua progressão na direção do portão fechado. A surpresa durou poucos segundos, tempo necessário para que o sambista abrisse a porta e, com um movimento de braço, desse o sinal para a bateria começar a tocar em homenagem ao homem que inspirara o Carnaval da escola.
O arquiteto não saiu com a escola no desfile pelo grupo de acesso do Carnaval carioca, no Sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí, também projetado por ele. Daquele dia da inauguração da quadra, porém, Niemeyer guarda até hoje a lembrança da bateria tocando em sua homenagem. “Não imaginava que minha vida iria dar samba”.