sábado, 21 de setembro de 2013

DOMINGOS

O artista mal abre a boca pra falar e nem dá pra entender direito, mas você acaba que entende, entende e gosta, gosta e ri, e a entrevista segue leve, na casa dele, com a mulher dele chegando no meio, voltando da natação, e então sumindo no corredor pra voltar no fim, para as fotos. E o artista fala basicamente da vida dele, das mulheres, casamentos e separações, o tema do filme da vez, e fala num sopro embaralhado, pra dentro, no limite do incompreensível, mas você compreende, compreende e gosta, gosta e ri.

Revista Istoé Gente, edição 181, de 20 de janeiro de 2003

“Me baseio na minha vida para criar porque é a única coisa que eu realmente sei”.

Desde que homenageou a ex-namorada Leila Diniz dirigindo Todas as Mulheres do Mundo, em 1967, o cineasta Domingos Oliveira nunca precisou se afastar muito de casa para realizar sua obra. Basta prestar atenção na sala do apartamento que o diretor de 66 anos divide com sua mulher, a atriz Priscila Rosembaum, no Leblon, para comprovar isso. Do sofá ao quadro na parede, passando pelo teclado disfarçado de piano, tudo aparece em Separações, último filme de Domingos, que teve várias cenas rodadas no apartamento e rendeu à Priscila o Kikito de melhor atriz no Festival de Gramado de 2002. “Me baseio na minha vida para criar porque é a única coisa que eu realmente sei”, explica o cineasta.
Nadando contra a corrente dos filmes de temática social, como Cidade de Deus, Separações levou 17 mil pessoas ao cinema nos seis primeiros dias de exibição (foi lançado na segunda-feira 3). O filme, que conta a história do relacionamento de um típico casal de artistas da zona sul carioca, vivido por Domingos e Priscila, tem tudo para se tornar hit de verão e repetir o sucesso do primeiro longa do cineasta, feito numa tentativa de reatar o namoro com Leila Diniz, protagonista de Todas as Mulheres do Mundo. “Tinha me separado da Leila e queria voltar de qualquer jeito. Aí fiz o filme pra ela”, conta o diretor, que não reconquistou a atriz mas resolveu a relação. “A dor da separação foi redimida através do filme.” Mas nem tudo foi fácil. Apesar de dizer que não se lembra de detalhes da época, Domingos assume que “segundo diziam os colegas de set”, ele acabava de dirigir uma cena e saía para chorar, pelo menos no início das filmagens.
Juntos há 21 anos, Domingos e Priscila nunca se separaram, ao contrário dos personagens do filme. Mas, no quinto casamento, o diretor se considera experiente no assunto. “Me separei várias vezes”, afirma o cineasta, que já tem outros dois projetos na manga: um policial noir, chamado O Brilho da Gota de Sangue, e A Primeira Valsa, uma história autobiográfica sobre sua passagem de adolescente a adulto. Como Separações, os dois roteiros foram adaptados de peças de Domingos para o teatro.
Nada mal para quem, até lançar Amores, em 1998, estava há 21 anos sem filmar, talvez pela própria falta de vocação do diretor para captar recursos. “Fico nervoso, achando que os ricos pensam que eu quero tirar o dinheiro deles, o que é exatamente o que eu quero”. Sem fazer cinema, o autor voltou-se para o teatro e a televisão, e tornou-se dono de uma obra numerosa. “Meu nome está diretamente vinculado como autor, ator ou diretor, a 140 títulos”, contabiliza.
Pai da atriz Maria Mariana, 30, e avô de Clara, 3, e Laura, 1, Domingos ainda espera a oportunidade de levar para o cinema a peça Confissões de Adolescente. Autora do texto, Mariana diz que não tinha alternativa a não ser seguir a vocação do pai. “A paixão dele pela arte é tão grande que tinha de fazer teatro pra me aproximar”, lembra a atriz, que hoje se dedica a cuidar das filhas. Enquanto a peça não vira filme, o cineasta só quer continuar a retratar seu cotidiano, tentando mostrar a vida como ela é, sem se preocupar com prêmios como o Oscar, por exemplo. “Jamais ganharei o Oscar. Não é uma festa para a qual fui convidado”, conclui.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

PRESOS, DE NOVO

Ontem eles foram presos, de novo, por ordem e graça do mesmo juiz de onze anos atrás. Ficaram um dia na cadeia até os advogados conseguirem tirá-los de lá. Na primeira vez foram quatro dias, como conta a matéria aí embaixo, assinada também pela Vivianne Cohen, e com a colaboração da Cecília Maia.

Revista Istoé Gente, edição 131, de 4 de fevereiro de 2002

– Sérgio, a polícia está aqui na minha casa. O que eu faço?
– Receba os policiais normalmente, que eu vou ligar para o Nélio

– Mas eu posso tomar banho e fazer a barba?
– Claro que sim. Pode ficar tranqüilo.



Eram 6h50 da sexta-feira, 25 de janeiro, quando o advogado Sérgio Bermudes foi acordado pelo toque do telefone de sua casa, no Rio de Janeiro. Do outro lado da linha, o amigo e um de seus principais clientes, o ex-banqueiro Marcos Catão de Magalhães Pinto, 66 anos, pedia orientação para lidar com um problema até então inimaginável. Três policiais federais estavam na porta de sua mansão, na Gávea, bairro nobre da zona sul carioca, com ordens para levá-lo dali preso. A surpresa do ex-banqueiro, que tinha sido acordado pela chegada dos policiais, às 6h30, pode ser traduzida pelo rápido diálogo com o advogado:
– Sérgio, a polícia está aqui na minha casa. O que eu faço?
– Receba os policiais normalmente, que eu vou ligar para o Nélio (Nélio Machado, advogado criminalista que defende Marcos junto com Bermudes).
– Mas eu posso tomar banho e fazer a barba?
– Claro que sim. Pode ficar tranqüilo.

A chegada de Nélio Machado à casa de Marcos, no entanto, não evitou a prisão do ex-banqueiro, decretada pelo juiz federal Marcos André Bizzo Moliari, da 1ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Acusado por formação de quadrilha, gestão fraudulenta e prestação de informações falsas no escândalo financeiro que levou à intervenção do Banco Nacional, em 1995, e deixou um rombo de US$ 9 bilhões assumido pelo Banco Central, Marcos foi condenado em primeira instância a 28 anos de prisão. Ainda segundo a sentença de Moliari, o ex-banqueiro terá de pagar uma multa de R$ 10,764 milhões aos cofres públicos. Junto com o herdeiro do memorável político mineiro José de Magalhães Pinto, também foram presos outros sete ex-executivos do Banco Nacional.
Há 31 meses como titular da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal, o juiz Marcos André Moliari, 33 anos, analisou durante três meses os mais de mil volumes do processo de maior repercussão de sua carreira meteórica, iniciada em 1994, como advogado da Petrobras. Em 1997, foi aprovado para o cargo de juiz estadual, função que exerceu por apenas sete meses, até ingressar na magistratura federal. Acusado pelos advogados dos réus de querer aparecer com a sentença, o juiz é enfático ao se defender. “Se o processo tem essa repercussão toda é por força dos fatos, que falam por si, não por minha causa”.
O martírio de Marcos de Magalhães Pinto e seus antigos colegas de banco durou quatro dias, tempo suficiente para que os advogados de defesa conseguissem o habeas-corpus, concedido na segunda-feira 28, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio Mello. Com a decisão, os condenados poderão ficar em liberdade até que saia a sentença final do caso, mas só poderão deixar o Rio de Janeiro com autorização judicial. “A prisão foi ilegal e desnecessária. Dizer que meu cliente pretendia fugir é alusão mental, não justifica isso”, disse Nélio Machado, referindo-se à informação de que a prisão foi motivada pela tentativa de Marcos em renovar seu visto para os Estados Unidos. Ao sair do Ponto Zero, a prisão especial onde ficam os presos com curso superior, na manhã da terça-feira, 29, o ex-banqueiro teve seu passaporte apreendido.
No Ponto Zero, Marcos de Magalhães Pinto dividiu um dos alojamentos com cinco ex-colegas do Nacional e outros dois presos com nível superior. Sem televisão, geladeira e ventilador, o local tem cerca de 30 metros quadrados e, além das camas dos detentos, só possui dois bancos de madeira como móveis. Sem curso superior, Antônio Nicolau e Nagib Antônio deram menos sorte. Os dois dividiram uma cela comum do presídio de Água Santa com nove presos. Nos quatro dias em que ficou detido, o ex-banqueiro comeu a comida da prisão, uma quentinha com carne, arroz, feijão e macarrão. Uma de suas únicas exigências foi a de não receber visitas das mulheres da família, a esposa, Maria José, as três filhas e as duas irmãs. “Ele não queria que elas vissem as condições em que ele se encontrava”, conta uma amiga, que prefere não se identificar.
A prisão de Marcos foi mais um golpe na família cujo patriarca foi um dos homens mais poderosos do País. Governador de Minas Gerais entre 1961 e 1965, José de Magalhães Pinto esteve entre os principais articuladores do golpe militar que depôs o presidente João Goulart, em 1964. Tanto poder contrastava com a simplicidade que passou aos filhos. Prova disso eram os almoços durante o expediente na sede do Nacional, no Centro do Rio. Enquanto os executivos do banco não dispensavam cardápios sofisticados, os irmãos Magalhães Pinto sempre foram fiéis ao arroz com feijão, carne moída e pastel de carne. Hoje, os últimos sinais do poder dos donos do banco que patrocinou Ayrton Senna no início de carreira estão nos bens tornados indisponíveis pela Justiça. Em nome dos irmãos Marcos, Eduardo e Fernando, 63, figuram duas mansões na Gávea, um terço de um apartamento em Belo Horizonte, um terreno no Rio, duas lanchas e nove carros. Em nome dos netos de José, e livres da Justiça, estão a imobiliária Cebepê e casas de veraneio da família em Angra dos Reis. “Houve uma queda acentuada no padrão de vida de meus clientes”, conta Sérgio Bermudes.
Uma mostra da nova fase dos Magalhães Pinto foi dada em maio do ano passado, no casamento da filha caçula de Marcos, Maria Rita, com Eduardo Pinheiro. A tradição, sempre seguida à risca pelos ex-donos do Nacional, manda que o pai da noiva pague a festa, mas foi a família de Eduardo quem arcou com os custos da recepção para 150 pessoas no Jockey Clube da Gávea, depois da cerimônia na Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Centro do Rio de Janeiro.
Católica praticante, Maria José reduziu as visitas ao Dispensário Santa Teresinha do Menino Jesus, onde dá aulas de catecismo a mais de 200 crianças, para arregaçar as mangas e ajudar o marido. Depois da queda do Nacional, pôs em prática o que aprendeu nas aulas de paisagismo numa loja que abriu em um shopping center do Rio.
Simples e discreto, Marcos tem o perfil típico de um Magalhães Pinto. Desde a época em que morava no casarão colonial perto da Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, a família já se caracterizava pela simplicidade e pela rígida educação que fazia questão de dar aos filhos. “Eles nunca foram de ostentar a riqueza que possuíam”, conta o ex-embaixador José Aparecido de Oliveira, amigo da família. Protestante fervorosa, a mulher de José, Berenice, fazia questão que os filhos lessem a Bíblia todas as noites. O fato chegou a ser lembrado por Ana Lúcia, filha caçula de José e Berenice, num desabafo feito a Aparecido. “É uma ironia que pessoas criadas com a Bíblia na mão sejam vistas hoje como ladras por todo o País”, disse a ex-nora do presidente Fernando Henrique Cardoso.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

VIDA DE CINEMA

E quando o nome é mais que conhecido, inclusive com vários filmes do sujeito vistos e apreciados, mas o rosto nem tanto assim? Não, o repórter não lembrava daquele rosto, não com certeza, mas lembraria assim que o visse, ah, lembraria, e foi com essa convicção que partiu pra Brasília nos primórdios do governo Lula, a princípio com duas pautas, depois três.

A entrevista tinha sido marcada por telefone no Rio, com a filha dele, por isso a certeza de que ele estaria lá no primeiro evento, três horas após a aterrissagem, seis depois da decolagem. O ministro Gilberto Gil apresentava seu primeiro escalão na pasta da Cultura num teatro e a ligeira tensão provocada pela possibilidade de não reconhecer o cineasta histórico nas cadeiras lotadas da plateia foi logo dissipada, à vista daqueles cabelos brancos de tantos filmes no meio de uma das fileiras. Pronto. Problema resolvido. Era só esperar o fim do evento, importante para a outra pauta, e ir lá falar com ele.

E foi com toda a calma, com a certeza do dever cumprido, que o repórter se desvencilhou de uma ou outra pessoa no teatro apinhado de gente, subindo quatro, cinco degraus, e depois pediu licença pra senhora de vestido lilás, pro rastafari de camisa social vinho, e chegou enfim à frente do entrevistado, sorrindo, aliviado e falando que era o fulano da revista tal, que tinha marcado a entrevista com a filha e tudo mais, com o objetivo de ser reconhecido logo, pra começar a entrevista o mais rápido possível, e não de ser travado no seu ímpeto de apressado pela resposta do cineasta, clara, sucinta:

Eu não sou o Nelson Pereira dos Santos. Eu sou o Zelito Vianna.

A matéria abaixo não foi oriunda da entrevista de Brasília, que acabou acontecendo alguns minutos depois da gafe. Saiu de outra entrevista, no Rio, com mais calma, mais tempo, e faz parte da mesma série já mostrada aqui com a Fernanda Montenegro, o Joãozinho Trinta e o Oscar Niemeyer. No caso, é o segundo de três capítulos.

Revista Istoé Gente, edição 235, de 9 de fevereiro de 2004

“Nunca mais permiti que ator jogasse futebol em filmagem. Isso não se deve fazer”.

A idéia inicial de Nelson Pereira dos Santos e dos pintores Otávio Araújo e Luiz Ventura quando embarcaram rumo a Marselha, em 1949, era ir até Varsóvia para um festival da juventude. Mas, após 24 dias de viagem, os três amigos chegaram à França quando o festival polonês já tinha terminado. Nelson não se incomodou. Apesar de não conseguir entrar na Escola de Cinema de Paris, pois as matrículas estavam fechadas, aproveitou a viagem para aprender mais sobre a futura profissão. “Vi todos os filmes que pude lá. Fiz um curso entre aspas”, diz o cineasta.
O dinheiro para se sustentar saía de um hábito dos brasileiros que chegavam à Europa ainda abalada pelos resquícios da Segunda Guerra Mundial. Tirando proveito do racionamento vigente, os estudantes brasileiros desembarcavam na França com grande quantidade de café em grãos, açúcar e cigarros na bagagem. “Vendíamos tudo no câmbio negro de lá”, lembra.
Um dos pontos de encontro era a casa do pintor Carlos Scliar. Foi lá que o diretor conheceu Rodolfo Nanni, que, dois anos mais tarde, o convidaria para a assistência de direção no filme O Saci, primeiro trabalho profissional de Nelson. De volta ao Brasil, ele completou o serviço no Exército, foi pai pela primeira vez, com o nascimento de Nelsinho, e rodou seu primeiro documentário amador, Juventude, sobre os jovens trabalhadores de São Paulo. Tudo em 1950.
Um ano depois, o diretor engatava o início das filmagens de O Saci. Promovido de segundo a primeiro assistente de Nanni no filme, Nelson ainda seria responsável por um atraso considerável nas filmagens, graças à infeliz idéia de promover um jogo de futebol no intervalo das gravações. Numa queda, o menino que interpretava Pedrinho machucou o braço. Na tentativa de ajudar, o então assistente de direção só piorou a situação. “Fiz a única coisa que não podia, que era mexer no braço. Daí quebrou de vez”, lembra o diretor, que aprendeu a lição. “Nunca mais permiti que ator jogasse futebol em filmagem. Isso não se deve fazer.”
A participação no primeiro filme renderia o convite para outro, Agulha no Palheiro, de Alex Viany, que faria Nelson se mudar para o Rio de Janeiro, onde mora até hoje. “Vim para fazer um filme em quatro meses e estou aqui até hoje”, brinca. Antes da mudança, porém, era preciso cumprir a promessa feita ao pai, Antônio, e completar a faculdade. Pendurado em Direito Processual Civil, o aluno, que já trabalhava como revisor do jornal Diário da Noite, conseguiu o diploma em 1952, graças a uma promessa ao professor titular da matéria. “Ele me fez prometer que nunca iria exercer a profissão. Estou cumprindo até hoje”, diverte-se o diretor.
Com a mulher, Laurita, grávida de Ney, seu segundo filho, que nasceria em 1954, Nelson usava o salário do jornalismo para sustentar a família. Eram raras as propostas de emprego no cinema, como a recebida para ser assistente de direção de Balança Mas Não Cai. As dificuldades financeiras para concluir o filme fizeram com que ele e dois colegas dormissem durante uma semana no estúdio, que ficava próximo à favela do Jacarezinho, a maior do Rio na época. “Conheci bem a favela. Íamos filar bóia aos domingos nas casas dos amigos que fizemos.”
O convívio amadureceria no diretor a idéia de fazer Rio 40 Graus, cuja história tinha a favela como pano de fundo. Para rodar o filme, Nelson internou-se com a equipe num apartamento de três quartos no Centro do Rio. Fora o entra-e-sai promovido pelos moradores do local, que incluíam o sambista Zé Keti e o ator Jece Valadão, o maior problema era conciliar as filmagens com as tarefas que os comunistas da equipe recebiam do PCB. “Tínhamos de distribuir panfletos quando filmávamos na favela, fazer campanha eleitoral, tudo misturado”, conta o cineasta.
O maior problema, no entanto, viria após a conclusão do filme, em 1955. De contrato assinado com a Columbia para a distribuição, Nelson foi surpreendido pela decisão do chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Geraldo de Menezes Cortes, que proibiu o filme. Um dos argumentos era de que no Rio nunca tinha feito 40 graus, já que a média das temperaturas máximas na cidade era de 39,6.
O que se seguiu foi uma campanha em favor do filme que ganhou ecos até no Exterior, graças à intervenção de Jorge Amado. “O Jorge sempre foi ótimo em relações internacionais. Recebi telegramas até do Visconti (Luchino, cineasta italiano)”, conta Nelson. Com outra ajuda substancial, dos advogados Evandro Lins e Silva e Milton Nunes, o filme foi liberado em dezembro, quatro meses após a proibição.
Antes de partir para o segundo filme, Rio Zona Norte, o diretor iria se desvincular do PCB. Em 1956, Nelson recebeu por Rio 40 Graus o Prêmio Jovem Realizador no festival de Karlovy Vary, na antiga Tchecoslováquia, e viu de perto a repercussão do relatório do líder soviético Nikita Kruschev sobre as atrocidades cometidas por Stalin, seu antecessor. Ao declarar o que vira na volta ao Brasil, foi chamado de traidor e surpreendido pela posição tomada pelo PCB, contrária ao relatório. “A partir dali nunca mais participei de atividades partidárias.”
Apesar de um esquema menos amador que o filme de estréia, Rio Zona Norte também foi prejudicado pela escassez de recursos. O mutirão de amigos para a realização do filme incluiu até Glauber Rocha, na época um aprendiz de cineasta que começava a conhecer Nelson. Em entrevista concedida a Helena Salem, autora da biografia de Nelson, Glauber falou sobre seu contato com o colega no set de filmagens. “Ele me cumprimentou e foi logo dizendo: ‘Que bom que você veio, pega aquelas cadeiras ali para ajudar’.”
A amizade com o cineasta baiano se solidificaria em 1960, quando Nelson viajou para Juazeiro, na Bahia, com a intenção de filmar Vidas Secas. “A base da equipe era a pensão da mãe do Glauber, dona Lúcia”, lembra o diretor, que mudaria a história a ser filmada no meio da viagem, graças às inesperadas chuvas. Sem o cenário ideal para a história de Graciliano Ramos, o jeito foi criar outra. E foi o próprio Nelson que escreveu o roteiro de Mandacaru Vermelho, o terceiro filme do diretor, que lhe proporcionaria uma experiência única na carreira.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

FERNANDONA

Na primeira entrevista, tudo deu errado. Era um dia corrido na casa da entrevistada, o mesmo que ela escolhera para marcar com um monte de jornais, revistas, tevês etc... Meia hora pra cada um. No limite, estourando, quarenta minutos. E o repórter pode botar a culpa no corre-corre daquele dia, com toda aquela gente em volta esperando, preparando a luz, mas o fato é que, diante do tamanho da entrevistada, solícita, educada e bem disposta mesmo com hora marcada pra terminar, o repórter tremeu. Tremeu no sentido de seguir a pauta simplória, meio clichê, e não ir além disso, rápido, sucinto, pra depois dar seu jeito de apresentar algo minimamente apresentável, numa matéria que não escapou de algumas críticas de um ou outro superior. Passaram-se os anos, no máximo três, e o repórter foi de novo pautado para entrevistar a mesma personagem, na mesma cobertura de frente pro mar, dessa vez para uma série em fascículos da revista, que nada mais era do que uma biografia resumida de gente fora de série. E tome estudo, tome preparação para a matéria cujo terceiro dos quatro capítulos está aí embaixo.


Revista Istoé Gente, edição 228, de 15 de dezembro de 2003

“A sorte foi que Fernando sentou na cama e se dobrou para apagar a luz. Neste movimento, a bala passou pela vidraça e se alojou no teto”.

Bem-humorada, Fernanda Montenegro costuma dizer que seu filho, Cláudio, 40 anos, foi “educadinho” desde o nascimento. Em 1963, ela acumulava o trabalho na sua companhia teatral, o Teatro dos Sete, com o Grande Teatro Tupi. Sua única folga era na segunda-feira, justamente o dia em que seu primogênito nasceu. “Fui até onde deu”, conta a mãe de Cláudio e Fernanda. Quando esperava o primeiro filho, a atriz era a protagonista da novela A Morta Sem Espelho, de Nelson Rodrigues, na Tupi, mesmo ostentando uma barriga de oito meses. “Eu era a mocinha da história, só de close”, diverte-se.
Na gravidez de Fernanda Torres, nascida em 1965, não foi diferente. Convidada por Walter Clark, que saíra da TV Rio para reformular a recém-inaugurada programação da tevê Globo, encenou grávida o teleteatro da nova emissora. No período entre os dois partos, ainda estreou no cinema em A Falecida (1964), de Nelson Rodrigues, encenou a peça Mary, Mary (1963), de Jean Kerr, e retomou o trabalho no Teatro dos Sete, interrompido na gravidez de Cláudio, com Mirandolina (1964), de Carlo Goldoni. “Nem sei como foi. Os projetos foram chegando e eu fui fazendo. Gravidez não é doença, né?”

Mas o acúmulo de trabalho em meio ao nascimento dos dois filhos não seria a única dificuldade daquele período. Com o golpe militar de 1964, a censura passou a ser um tormento para os artistas no País, e não foi diferente com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Em cada município onde o Teatro dos Sete se apresentava, o grupo tinha de encenar a peça para o censor local. Por conta disso o espetáculo mudava de cidade para cidade, provocando situações inusitadas como em 1966, na temporada da peça O Homem do Princípio ao Fim, de Millôr Fernandes. Com várias citações, de Shakespeare a Santa Teresa D’Ávila, o texto da peça confundiu o censor de uma apresentação em Curitiba, que foi logo anunciando seus cortes:
– O trecho de Santa Teresa não pode porque é muito forte. Millôr entrou com mão muito firme aí.
– Mas não foi o Millôr. A oração de Santa Teresa é assim. Ela não está falando algo que o Millôr escreveu. Está falando o que a própria Santa Teresa D’Ávila escreveu.
– A Santa escreveu isso?, perguntou o censor.
– Escreveu, responderam os atores.
– Bom, se a Santa escreveu isso, então pode.

No fim dos anos 60 e início dos 70, a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, produzida por Fernando Torres, foi proibida, assim como O Elefante no Caos, de Millôr. Numa época de brigas em teatro e ameaça de bomba, experiência vivida pela própria Fernanda durante a encenação de A Volta ao Lar, em São Paulo, produzir peças virara uma profissão de risco. “Tudo ficou muito difícil. Eram prejuízos, dificuldades econômicas e insegurança”, lembra a atriz.
Apesar de tudo, foi no teatro que Fernando e Fernanda decidiram ganhar a vida. Após dois anos em São Paulo, entre 1967 e 1969, quando tiveram um bom salário na TV Excelsior, os dois foram surpreendidos pela falência da emissora. Por sorte, economizaram o dinheiro ganho na tevê até que, em 1970, o produtor Oscar Ornstein convidou Fernanda para atuar em Plaza Suíte, de Neil Simon, no Rio. Fernando ainda ficou um ano em São Paulo até reencontrar a mulher e os filhos no Rio, em 1971.
Após dezoito anos de união, o casal tinha, finalmente, uma perspectiva de futuro planejado, e em cima do teatro. As falências da Excelsior e da TV Rio, aliadas à instabilidade de emissoras como a Tupi, contribuíram para essa decisão. “Perdi a crença na televisão como empresa”, diz Fernanda, que nem na Globo aceitou ser contratada. “Acho a Globo um extraordinário patrão, mas me reservei o direito de não estar presa a um contrato.”
Nos tempos difíceis, a atriz ainda teve de criar dois filhos pequenos. “Depois que passa, a gente vê que foi possível. Mas na hora, cada dia vivido era um ganho enorme”, diz Fernanda, que emancipou juridicamente os filhos quando eles chegaram aos 16 anos. Para evitar a necessidade de dar autorização para viagens e trabalhos, a atriz tomou a decisão em conjunto com o marido, mas quase se arrependeu ao descobrir as concessões que teria de fazer ao ler o texto da emancipação. “A leitura é de você dizer ‘não vou assinar isso’, mas assinamos e não nos arrependemos. Dali em diante tanto o Cláudio quanto a Fernandinha foram cuidar da vida deles”, lembra.
Com a filha, ela contracenou pela primeira vez em 1981, na novela Brilhante, de Gilberto Braga. “Era muito nova. Tive mais a sensação de estréia numa novela do que de contracenar com minha mãe”, conta Fernanda Torres, que elege a peça The Flash and Crash Days, de Gerald Thomas, de 1993, como o verdadeiro ponto de encontro com a mãe. “Ali vivemos uma parceria de verdade. Tinha hora que virávamos duas palhaças em cena”, lembra Fernanda.
Muito antes de dividir a cena com a filha, porém, a atriz viveria a experiência mais traumática do regime militar. Hospedada na casa do diretor Celso Nunes em 1979, durante temporada da peça É, de Millôr Fernandes, em São Paulo, os atores estavam se preparando para dormir quando um tiro quebrou a vidraça do quarto. Se estivesse em pé, Fernando Torres, que contribuíra financeiramente com as greves de office-boys e bancários, seria atingido. “A sorte foi que Fernando sentou na cama e se dobrou para apagar a luz. Neste movimento, a bala passou pela vidraça e se alojou no teto”, lembra a atriz, sem esquecer o pânico daquela madrugada, quando ainda foram dados vários telefonemas para a casa de Celso, quarenta minutos após o tiro. Do outro lado da linha, só o som de uma respiração. A partir daquele episódio, o fim lento e gradual da ditadura daria tréguas à família de Fernanda. Já em 1980, a atriz participaria, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, do sucesso de Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman. Era o seu quinto filme no cinema, veículo que dezoito anos mais tarde a levaria à consagração internacional.

terça-feira, 30 de abril de 2013

MOÇA DA CAPA - A NORMAL

Na primeira entrevista a chefe avisou, a repórter mais experiente também, mas o repórter, pra falar a verdade, não levou muita fé. Criado nas coberturas de valões e presuntos em lugares nada agradáveis, no pequeno e velho jornal ainda hoje na ativa, e curtido no corre-corre diário da geral de um grande e velho jornal, já extinto, do trem descarrilando ao prédio caindo, do comportamento na praia à cobertura do mega super evento da vez, o repórter, ainda com vinte e tantos, simplesmente não acreditou que entrevistar duas atrizes conhecidas prestes a estrear uma peça juntas pudesse ser minimamente complicado. Então não pesquisou muito, nem procurou se informar tanto, porque achava que já conhecia bem as duas, de não sei quantos filmes, outras tantas novelas, e o resultado foi que em menos de trinta minutos de entrevista, o repórter queria ir logo embora, o mais rápido possível. Ele que já havia ficado no meio de tiroteio, subindo e descendo morros e favelas em vários pontos do Grande Rio, recebeu uma tamanha carga de olhares incrédulos e tiradas pontiagudas, de uma e da outra, às vezes ao mesmo tempo, que não lhe deu outra alternativa a não ser a fuga, a recuada mais que estratégica num caso daqueles. Encurtou a entrevista ao máximo, com o pretexto do fotógrafo ao lado prontinho pras fotos, e decidiu se virar com o pouco que tinha conseguido. Muito melhor do que continuar enfrentando aquelas duas, muito melhor. Passaram-se os anos, dois, três, no máximo quatro, e o repórter foi de novo pautado pra entrevistar uma delas, uma só, mas dessa vez pra matéria de capa. E tome pesquisa, tome estudo, preparando a pauta com todo o esmero, a ordem das perguntas, essa depois daquela, e por último, talvez nem isso, a mais complicada. O resultado dessa segunda entrevista, com uma só delas, está aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 222, de 3 de novembro de 2003

“Você vai achando sua cara. A menina que era uma graça aos 20, continua aos 30. Mas você, que talvez não fosse uma graça aos 15, é possível que tenha conseguido chegar lá aos 40".

A atriz Fernanda Torres, 38 anos, gosta de dizer que sua carreira tem um quê de free-lancer. E tem lá sua razão. Apesar de ter estreado aos 13 anos na televisão, no especial da Globo Queridos Fantásticos Sábados, em 1979, foi no teatro, e sobretudo no cinema, que a filha de Fernanda Montenegro e Fernando Torres ganhou luz própria. Enquanto seus colegas de geração faziam sucesso na tevê, Fernanda firmava-se como atriz no cinema – ganhou a Palma de Ouro de melhor atriz no festival de Cannes logo no terceiro filme, Eu Sei Que Vou te Amar, de Arnaldo Jabor, em 1986 – e no teatro. À televisão, dedicava esporádicas participações em programas e especiais, além da atuação na novela Selva de Pedra, no longínquo 1986. É aí que entra a Vani.
Vivendo a histérica noiva de Rui, Fernanda participou do sucesso de Os Normais nas noites de sexta-feira, que virou filme e chegou às telas de cinema na sexta-feira 24. Na tevê, o programa rendeu médias de 18 a 23 pontos no ibope, até então as melhores dos últimos anos no horário. Reatou-se assim a relação da atriz com o veículo que a lançou. “Hoje tenho mais intimidade com a televisão. Posso dizer ‘olha, eu faço tevê’”, diz Fernanda, que tem suas próprias explicações para o duradouro distanciamento. “Não tinha relação com ninguém na tevê. Muitos atores eram meus amigos, mas eu não fiz TV Pirata, por exemplo (humorístico que consagrou amigos de Fernanda, como Luiz Fernando Guimarães, Débora Bloch e Regina Casé, entre outros). Passei muito tempo no cinema, isolada.”
Hoje ela sabe qual é a sua turma na televisão. Dela fazem parte, além do amigo Luiz Fernando, o casal de autores Alexandre Machado e Fernanda Young, e o diretor José Alvarenga. “O Alvarenga é parceiro de trabalho. Quando ele me chamar, estarei ali”, diz a atriz. Para o diretor, foi exatamente o clima de união entre os envolvidos com Os Normais a razão do sucesso do programa. “Todos ali sabiam que o importante era a parceria, e a Fernanda se integrou perfeitamente nessa mentalidade. Ela vibrava até com cenas de que nem participava”, conta Alvarenga.
Não que não houvesse os desentendimentos comuns a qualquer produção. Eles aconteciam, e nessas ocasiões a atriz mostrava a forte personalidade que sempre a caracterizou. Quando alguma coisa não corria bem no programa, Fernanda, Luiz Fernando, Alvarenga, Alexandre e Fernanda Young se reuniam durante cinco ou seis horas numa suíte do Hotel Eldorado, em Ipanema, paga pela Rede Globo. Lá, cada um emitia sua opinião sobre o que achava errado. “Uma vez a Fernanda ficou contra nós quatro. Não sei se não entendemos o que ela queria, ou se ela não soube dizer direito o que pensava, mas até chegarmos a um consenso nós a metralhamos. No fim, a Fernanda, preocupada, perguntou se estávamos chateados com ela”, lembra Alvarenga.
O sucesso da televisão parece que irá se repetir no cinema. Nos primeiros três dias em cartaz, Os Normais – o Filme levou 420 mil pessoas às 257 salas que exibiram o longa nas principais capitais do Brasil. Foi a segunda melhor bilheteria de lançamento desde a retomada do cinema nacional, atrás apenas de Carandiru, de Hector Babenco, recordista absoluto de público com 4 milhões de espectadores. Se estava à vontade na pele de Vani na televisão, no cinema Fernanda tirou de letra o desafio. Algo esperado para quem, de tanto fazer e viajar graças ao cinema, dobrou até o receio de andar de avião que a acompanhava na adolescência, ainda mais após a premiação em Cannes, quando choveram convites para participações em festivais pelo mundo.
A atriz se lembra que o temor de voar ficou em Bali, após “sobreviver” a quatro vôos internacionais até a volta ao Rio de Janeiro. “Achava que um deles ia cair. Aí voltei ao Rio e comecei a me acostumar com o fato de que você pega avião e chega ao destino.” Até que Fernanda se tornou mãe e o medo voltou. Desde que seu filho, Joaquim, de 3 anos, nasceu, a atriz voltou a pensar duas vezes antes de entrar num avião. Não deixa de viajar, até porque a profissão não permite, e nem fica em pânico durante uma viagem. Mas passou a descartar qualquer vôo em helicóptero ou aviões pequenos. “O medo piorou muito. Depois de ser mãe você não quer ir na esquina”, diz ela, relegando ao passado experiências como a viagem ao Xingu, para filmar Kuarup (de Ruy Guerra, em 1987), quando até pegar no manche do teco-teco que a transportou ela pegou. “Tinha 20 anos, queria conhecer o Xingu. Hoje nenhuma maravilha que ainda não tenha visto vale o meu filho.
Outra conseqüência da maternidade foi a drástica redução nas saídas de casa. “Meu lado caseiro se agravou de uma maneira absurda”, conta a atriz, que costuma acordar às 7h para levar Joaquim à escola e depois busca o filho. Foi também após ser mãe que Fernanda descobriu uma atividade que mudou sua vida. Através da yoga ashtanga, que pratica há três anos, modelou o corpo da maneira que sempre quis. “Achava que iria acontecer uma tragédia com o meu corpo quando engravidasse. Depois vi que volta, e com a ioga meu corpo voltou como nunca”, diz. Com o fim de Os Normais ela tem tido tempo para fazer os exercícios quatro vezes por semana. “A ioga foi colando o músculo no osso e a pele no músculo. Fiquei com o corpo que o ator precisa”, completa a atriz.
Além da ioga, Fernanda ainda tira um dia da semana para correr na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul carioca, ou andar de bicicleta. Dessa forma tem conseguido melhorar com a idade, como gosta de dizer. “Nunca fui padrão de beleza. Tive de ralar por fora”, admite, satisfeita com o resultado alcançado. “Você vai achando sua cara. A menina que era uma graça aos 20, continua aos 30. Mas você, que talvez não fosse uma graça aos 15, é possível que tenha conseguido chegar lá aos 40.”
Casada com o cineasta Andrucha Waddington, pai de Joaquim, Fernanda não pensa numa nova gravidez. “Se o Joaquim fosse filho único trabalharia violentamente para isso, mas ele tem dois irmãos (João, 11, e Pedro, 9, filhos de Andrucha). Ter irmão é importante”, afirma ela, sem, no entanto, descartar a hipótese de engravidar. “Se vier, tudo bem, mas tenho 38 anos, não sei se a natureza vai me deixar esperar.” Se depender dos próximos projetos da atriz, não vai sobrar muito tempo para planos na vida pessoal. Além de ensaiar a peça A Casa dos Budas Ditosos, com direção de Domingos Oliveira e estréia marcada para dia 20 de novembro, em São Paulo, Fernanda escreveu em parceria com o irmão Cláudio Torres e Elena Soarez o roteiro de Redentor, filme de Cláudio que será lançado até abril do ano que vem. No meio de 2004, passará dois meses com a mãe e o marido nos Lençóis Maranhenses, onde será rodado Casa de Areia, próximo filme de Andrucha. Será mais um trabalho tipicamente familiar, o que já é praxe na carreira da atriz. “O nepotismo impera na minha família”, brinca Fernanda, que cita uma leitura durante a preparação de Casa da Areia para mostrar o quanto tira proveito disso. “Olhei para a mamãe e pensei como era bom poder compartilhar aquela intimidade com ela, porque somos muito quem somos no trabalho”, afirma.
Acostumado a conversar sobre trabalho em casa, Andrucha usufrui do convívio profissional com a mulher. Isso aconteceu quando filmava Eu, Tu, Eles, em Juazeiro, no sertão baiano. A três semanas do fim das filmagens, Fernanda estava lá, para gravar uma participação que acabou cortada. “Estávamos sem um final para o filme. Fomos para a beira do Rio São Francisco com os cabeças da produção tentar resolver o problema. Depois de seis horas de conversa, a Nanda sugeriu terminar o filme como ele acaba hoje”, conta o diretor.
No caso do Redentor, a atriz foi fundamental para iniciar o filme. “A Nanda deu a idéia inicial. A partir daí trabalhamos durante cinco anos”, diz Cláudio Torres, revelando uma vocação que a irmã tem exercitado cada vez mais. Desde que assinou com o irmão o roteiro de Diabólica – um dos episódios de Traição, longa-metragem da Conspiração Filmes –, a atriz vem intensificando o hábito de escrever, mesmo que ainda não admita ser chamada de roteirista. “Não resolvo um roteiro sozinha. Acho que poderia ter sido uma escritora, mas tenho vergonha de dizer que escrevo. Mas é maravilhoso ver as pessoas rirem de uma piada que você escreveu”, afirma.
Para quem conhece esse lado dela, a vergonha é injustificável. “Quando percebi, a Fernanda estava escrevendo a peça junto comigo. E escrevendo bem”, diz o diretor Domingos Oliveira, que adaptou para o teatro A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro. Nos dias de ensaios, sempre entre 15h e 18h, Domingos costuma receber um email da atriz às 21h. “Ela me manda uma versão de tudo o que foi mudado no ensaio e mais sugestões”, conta o diretor. Cláudio também incentiva o talento pouco conhecido da irmã. “Ela tem toda a condição de escrever um roteiro sozinha. É louca e obstinada o suficiente para isso”, diz ele,para quem foi inesperado a irmã de 13 anos dizer que queria ser atriz. “A Nanda sempre foi palhaça. Se vestia com os figurinos de nossos pais. Mesmo assim levei um susto. Parece que na minha família o raio bateu três vezes na mesma árvore”, diverte-se ele.

quinta-feira, 14 de março de 2013

ROMANCE DE UM CAMPEONATO


Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco empatava em 0 a 0 com o River Plate e tornava-se, para todo o sempre, o primeiro clube campeão continental da história do futebol. Numa dessas raras partidas que podem receber a denominação de lendária, contra aquele que é até hoje considerado o maior time argentino de todos os tempos, tirando seleções, o Expresso da Vitória de Barbosa, Augusto e Wilson, depois Rafagneli; Eli, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Friaça, antes o Ademir, Lelé e Chico ganhou de 1 a 0, mas teve seu gol legal anulado absurdamente. O jogo terminou 0 a 0, o que era suficiente. Vasco campeão invicto, o primeiro, pra sempre.
Nesse último post da série em homenagem à maior das conquistas do Vasco, o Relatos pega emprestado o título da série de reportagens da revista O Cruzeiro e reproduz a primeira delas sobre a campanha no Chile, feita pelo Hélio Fernandes. A matéria vai abaixo.

Revista O Cruzeiro, edição 24, de 03 de abril de 1948

“...para que todos os brasileiros saibam os obstáculos que teve de enfrentar a heróica rapaziada vascaína para trazer para o Brasil o mais importante título já conquistado por qualquer clube em qualquer época”.

Hélio Fernandes

Tanta coisa já se escreveu sobre o Torneio dos Campeões que quase não adiantaria voltar ao assunto. Durante quarenta dias a marcha do campeonato monopolizou a atenção do país inteiro, dominando as seções esportivas dos jornais que enviaram correspondentes e também dos que apenas possuíam serviço especial. Quase tudo já se disse sobre a memorável campanha. As vitórias vascaínas já foram contadas de tantas maneiras que nem nos atrevemos mais a abordá-las. Faremos apenas uma ligeira série de reportagens focalizando aspectos desconhecidos ou quase desconhecidos da campanha do Chile, para que todos os brasileiros saibam os obstáculos que teve de enfrentar a heróica rapaziada vascaína para trazer para o Brasil o mais importante título já conquistado por qualquer clube em qualquer época.

Aparentemente a campanha do Vasco no Chile pode ser comparada à vida dos homens felizes e das mulheres honradas: não tem história. Chegou, viu e venceu, com a mesma tranqüilidade com que enfrentaria um clube de subúrbio na inauguração de um estádio proletário qualquer, com a mesma segurança que exibiria um professor de Sorbonne ao fazer um exame de primeiras letras num ministro do Estado Novo ou num político do PTB.

Mas essa tranqüilidade foi só aparente. Porque, no momento em que sessenta mil pessoas, de pé, em impressionante silêncio, assistiam o hasteamento da bandeira brasileira no mastro principal do estádio ao som do hino nacional, terminava uma das mais difíceis e trabalhosas campanhas que um clube brasileiro teve que enfrentar no estrangeiro. Tudo fizeram para prejudicar-nos. Todos os obstáculos foram colocados no caminho brasileiro para que o título de campeão dos campeões não viesse repousar doce e gloriosamente nesta parte do continente.

Assim que chegamos a Santiago pudemos notar, pelo tratamento que nos dispensaram os dirigentes chilenos e pela pressa com que programaram os nossos jogos um em cima dos outros, que não éramos considerados estrelas. Éramos apenas olhados como comparsas de um drama em poucos atos, cujos papéis principais de há muito já estavam distribuídos.

Faríamos apenas o papel da cantora de província que é convidada por um empresário galante para uma temporada na cidade, mas que depois é embarcada de volta a toda pressa, quando sua presença só pode trazer aborrecimentos. Esse o papel que estava destinado ao Vasco.

As estrelas da companhia nem precisaria citar: River e Nacional. Enquanto o Colo Colo, com as credenciais de clube local, reservara para si o papel de vilão com boa pinta que a qualquer momento pode substituir o mocinho da companhia sem prejudicar o espetáculo.

Mas logo no segundo dia os dirigentes locais compreenderam que a companhia não estava bem afinada e que precisavam urgentemente modificar o elenco se quisessem salvar-se da ruína total. O Galã vindo especialmente de Montevidéu levara um tombo espetacular em cena aberta e já não conseguia entusiasmar a multidão, enquanto o vilão local mostrava que era apenas um vilão de anedota que não atemorizava ninguém. Começaram então os manejos dos potentados locais com ameaças e advertências visando obter nossa permanência por mais uns dez dias em Santiago, com o conseqüente recuo de todos os compromissos.

Mas como os dirigentes da delegação não queriam concordar com o adiamento, os dirigentes chilenos, com o sórdido senhor Robinson Marin à frente, lançaram mão de todos os recursos para conseguir nossa permanência. Sua voz nesses dias conheceu todas as tonalidades e escalas. Passou do lamento à ameaça. Da ameaça à promessa. Da promessa ao desespero. Lamentou-se, martirizou-se, desesperou-se, arrancou os cabelos de raiva mas não sossegou. E enquanto não conseguiu a palavra definitiva dos delegados tudo foi feito para nos prejudicar. Juízes foram comprados, a torcida foi estimulada pela mais tremenda guerra de nervos a que já assistimos, levando o público ao máximo de intranqüilidade. Tudo valia para o Sr. Marin e sua camarilha. Nessa emergência só uma solução era aconselhada: ficar. Se o Vasco não tivesse concordado em permanecer mais oito dias em Santiago não ganharia o campeonato de jeito nenhum.

Como o presidente Marin comprou o juiz Paredes por dez mil pesos para não deixar a nossa linha atacante penetrar na área do Colo Colo, compraria também os outros. O que ele queria era dinheiro. E no dia do banquete final, num assomo de sinceridade, confessou a mim, Cozzi, Serran e Paulo Medeiros que pelo êxito do certame seria capaz até de meter a mão no bolso dos outros.

A cada jogo que passava as nossas dificuldades aumentavam não só pela qualidade dos adversários, mas principalmente pelas manobras escusas que eram praticadas contra nós. E finalmente chegamos ao dia do compromisso com o Colo Colo, em que, em vez do campeão local, fomos obrigados a enfrentar o selecionado chileno. Cinco elementos de outros clubes foram arrebanhados para reforçar o quadro local numa violação flagrante do contrato, que estipulava que nenhum clube poderia apresentar-se reforçado de mais de três elementos.

Até o último momento tudo foi feito para nos prejudicar. E quando terminado o jogo com o River o Sr. Robinson Marin ocupou o microfone para declarar o Vasco campeão dos campeões, podia-se notar na sua voz a amargura do sujeito que não conseguiu atingir seus fins, embora tivesse usado todos os meios. Ele era nesse momento um sujeito vencido, fracassado, que tinha que proclamar, contra a sua vontade, o representante do Brasil vencedor do Torneio.

sexta-feira, 8 de março de 2013

CONTRA TUDO, CONTRA TODOS


Há exatos sessenta e cinco anos, esses caras que aí em cima podem ser vistos no dia do desembarque em Santiago, para a disputa do Campeoanto Sul-Americano de Clubes Campeões, empataram em 1 a 1 com o Colo Colo, gol de Friaça, e deram um passo de suma importância para que o Vasco se tornasse o primeiro clube campeão continental da história do futebol. O jogo foi uma verdadeira guerra, e o Hélio Fernandes explica tudo na segunda das quatro matérias que fez sobre o torneio para a saudosa revista O Cruzeiro. Explica também, no texto aí embaixo, porque não houve mais campeonatos sul-americanos de clubes até a primeira Libertadores, doze anos depois.

Revista O Cruzeiro, edição 25, de 10 de abril de 1948

“O quadro passou por mais esse obstáculo e o empate naquelas circunstâncias tem o sabor de vitória inesquecível, que só os grandes quadros conseguem”.

HÉLIO FERNANDES

Quando o poderoso DC 4 da Panair desceu tranqüilamente em Los Cerillos, destacando-se da multidão, uma pessoa avançou para nós com gritinhos histéricos de alegria e esgares de satisfação na face morena e lisa.

Terno cinza claro evidentemente custoso, mas sem classe. Sapatos amarelos de mau gôsto. Camisa listada como o malandro do samba famoso. Gravata berrante como convém a um cavalheiro que precisa se fazer notado a todo custo. Eis a indumentária que revestia o corpo magro e pequeno desse que na pia batismal, há mais ou menos 48 anos, recebia o nome de Robinson Alvares Marin.

Presidente quase perpétuo do Colo Colo, auto-candidato em potencial a cargos que jamais conseguirá, o Sr. Marin vive arrostando uma importância que não possui, esbanjando espetacularmente uma fortuna conseguida rapidamente demais.

Ainda no aeroporto, quase desconhecido de todos nós, o Sr. Robinson já se desmanchava em protestos de amizade, em juras e compromissos que – sabíamos pelos campeonatos anteriores e pela revelação dos veteranos – seriam esquecidos e desrespeitados na primeira oportunidade.

Logo de saída, a primeira decepção. O contrato estipulava que a delegação ficaria confortavelmente instalada num hotel de primeira. Fomos para o Savoy, legítimo representante da Avenida Mem de Sá chilena.

Nos primeiros dias ficamos inteiramente abandonados, sem receber sequer a visita de um sub-secretário de qualquer departamento do clube promotor. Ninguém da Federação chilena. Ninguém do Colo Colo. Ninguém da Divisão de Honor. As visitas de confraternização e cordialidade eram todas para River e Nacional, astros de fama mundial que, participando do campeonato quase antecipadamente como ganhadores, monopolizavam por isso a atenção de todos os desportistas chilenos.

Enquanto isso, o Vasco, quando muito um comparsa ilustre, tendo o corredor do Savoy por ménage, mantinha-se discretamente à distância, convencido de que o poderio do quadro e suas conseqüentes vitórias conseguiriam quebrar o gelo que, envolvendo perigosamente o hotel, ameaçava-nos irremediavelmente.

Mas essa situação durou apenas onze dias, ou seja, até a vitória sobre o Nacional. Depois da vitória espetacular tudo mudou. As visitas se multiplicavam. Eram tantas e a tantas horas que Diogo nomeou o jornalista Paulo Medeiros introdutor diplomático, com a incumbência especial de recebê-las.

Mas as visitas, se deram a medida do prestígio que o quadro havia conquistado para a delegação, trouxeram também um inconveniente enorme. A aproximação quase diária com o Sr. Robinson. E dessa permanência constante no Hotel, dessa assiduidade contra a qual Cozzi, Paulo e Serran logo advertiram os chefes da delegação, surgiu o grande caso que poderíamos chamar: a batalha da permanência.

Durante dias e dias foi o único motivo de discussão. Os argumentos desfilavam lado a lado, cruzavam-se no ar e às vezes não somente no ar, explodiam contra o rochedo da incompreensão de muitos, quebravam-se fragorosamente na espessa ignorância de alguns ou na incrível intolerância de outros.

Os telegramas voavam rumo a Rio e Santiago. Os telefonemas internacionais eram constantes e às vezes contínuos, sem que nada fosse resolvido. Robinson atacava visando ganhar mais dinheiro. A delegação resistia disposta a defender o prestígio esportivo não mais de um clube, mas de um país.

Estava a situação nesse pé quando surge em cena o doce e melífluo senhor Luís Valenzuela, cavalheiro de fino trato e aparência distinta como exigem os anúncios de apartamentos de Copacabana.

Maneiroso, insinuante, evidentemente inteligente e hábil, pousou silenciosamente no hall do Savoy, e com passos de veludo e voz da mesma cor, entrou imediatamente em ação. Vinte e quatro horas depois, estava tudo resolvido. Por misteriosas razões que nem o mais hábil detective descobriria, o Sr. Valenzuela conseguiu da CBD aquilo que o Vasco não pudera – ou não quisera – conseguir. O adiamento da nossa volta.

Depois dessa resolução passamos quinze dias maravilhosos de tranqüilidade. Apenas a intuição dos jornalistas veteranos em excursões dessa espécie, pressentindo o perigo mesmo antes dêle manifestar-se, quebrava um pouco essa paz que os romancistas costumam chamar de bucólica.

E o perigo manifestou-se às vésperas do jogo contra o Colo Colo revestindo-se da forma inédita adotada pelo seu presidente. A substituição – não na forma mas no conteúdo – do quadro local pelo selecionado local.

Seis elementos foram arrebanhados às pressas, de qualquer maneira e por qualquer preço, para o jogo com o Vasco. O povo foi preparado psicologicamente, discursos bélicos foram feitos minutos antes do jogo, tudo foi previsto visando a nossa derrota. Mas nada adiantou. O quadro passou por mais esse obstáculo e o empate naquelas circunstâncias tem o sabor de vitória inesquecível, que só os grandes quadros conseguem.

Invicto depois de cinco jogos, era demais. O Sr. Robinson, encolerizado com tamanha audácia de um clube que viera apenas e simplesmente como participante, resolveu vingar-se organizando um “show” espetacular para a noite do jogo Colo Colo “versus” Nacional, que seria dirigido pelo brasileiro Malcher.

Nessa noite, no dizer do Sr. Simom, presidente do Nacional, o Sr. Robinson desceu mais baixo que o próprio chão. Perdeu inteiramente a linha, declarou o Sr. Gonzales, da delegação uruguaia, enquanto o delegado argentino constatava com tristeza: o presidente do Colo Colo agiu como um torcedor vulgar e foi o único culpado dos acontecimentos.
Chamando o juiz brasileiro de ladrão e retratando-se 24 horas depois, sem glória e sem nobreza, investindo traiçoeiramente contra a imprensa de seu próprio país e tentando comprar a do estrangeiro, o Sr. Marin não merece outro qualificativo que o de aventureiro. Aventureiro sem escrúpulos e sem lei, sem limitações de consciência, sem idéias e sem ideais.

Agindo deslealmente contra todas as delegações que participaram do Torneio do Chile, desmanchando com os pés o que fizera com a cabeça, o Sr. Robinson Álvares Marin destruiu toda a admiração que conquistara ao organizar, corajosa e audaciosamente, o Campeonato dos Campeões. Agindo como agiu, além de prejudicar-se, o Sr. Marin comprometeu irremediavelmente a organização de futuros campeonatos de campeões. Porque agora, dificilmente ele se repetirá.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

JORNALISMO LITERÁRIO


Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco fazia sua estreia no primeiro campeonato continental interclubes da história do futebol, vencendo o Litoral, da Bolívia, por 2 a 1, com dois gols de Lelé. O torneio foi promovido pelo Colo Colo, do Chile, e viria a inspirar não só a criação da Taça Libertadores da América, doze anos depois, como da Copa dos Campeões da Europa, hoje a multiglobalizada Champions League. Disputado ao pé da Cordilheira dos Andes, num Estádio Nacional de Santiago sempre abarrotado de gente (pelo menos é o que mostram as fotos da época), o Campeonato Sul-Americano de Clubes Campeões de 1948 foi reconhecido oficialmente em 1996 pela Conmebol. Além disso, inspirou uma série de quatro reportagens da revista O Cruzeiro, assinadas pelo mesmo Helio Fernandes da Tribuna de Imprensa, que deve ter se divertido um bocado durante um mês na capital chilena, cobrindo o campeonato junto com jornalistas de todo o continente e também da Europa, como Jacques Ferran, enviado especial do jornal francês L'Equipe.

Hélio Fernandes se divertiu, sem dúvida, e deixou um registro histórico de uma dessas conquistas que só o Vasco tem. Fez isso com um estilo que até se vê hoje em dia em jornais e revistas, mas sem a menor elegância; e como além de vascaíno de coração o Relatos é, também, fã desse estilo, não o de hoje, mas o de antigamente, onde a opinião era exposta, sim, mas com informação suficiente para abalizá-la, e com a fundamental ajuda do uso correto, preciso, do humor e da ironia, que nos dias atuais vêm sendo diuturnamente confundidos, o tempo todo, com grosseria e sensacionalismo, pedimos licença para reproduzir aqui, com a ajuda da Netvasco, que publicou essas matérias há uns anos, três das quatro reportagens, três porque a última contém apenas singelos agradecimentos do jornalista a quem o ajudou nos trinta dias flanando por Santiago. Quer dizer, contém agradecimentos e pelo menos uma informação relevante, a de que o presidente do Vasco na época, Cyro Aranha, recusou cachês maiores para amistosos em outras paragens e insistiu para que o Expresso da Vitória disputasse o Sul-Americano. Sujeito de visão.

Abaixo, a terceira das quatro matérias de Hélio Fernandes

Revista O Cruzeiro, edição 26, de 17 de abril de 1948
"Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?"
Hélio Fernandes
Sete foram os juízes que atuaram no Torneio dos Campeões, sem contar naturalmente o quase desconhecido uruguaio Fernandes, que estreou precisamente no último jogo, depois de decidido o campeonato. 

Três chilenos, White, Lesson e Madrid. Um certo Sr. Paredes da Bolívia. Valentine do Uruguai. Fortes da Argentina e Malcher do Brasil. Cada um deles levou para Santiago, ao lado de excessivo ardor patriótico, manias e regras diferentes, interpretações as mais absurdas do regulamento internacional, transformando a pacata cidade chilena numa edição de bolso da famosa Torre de Babel.
White é a mais completa vocação de guarda-noturno que conhecemos. Mete o apito na boca e só fica satisfeito quando escuta o som estridente que seu próprio sopro arranca do aparelho inanimado. Narciso de nova espécie, entra em campo munido de pente, escova de unhas, leite de rosas para a pele, tesourinha para o bigode, esperando-se a cada momento que puxe de um dos bolsos o espelhinho que há de reproduzir a própria imagem, proporcionando-lhe uma satisfação inigualável.
Lesson, possuidor de milhões de pesos e de fazendas quilométricas, talvez deslumbrado com a vastidão da própria fortuna, não teve tempo de aprender regulamentos. Autodidata em matéria de arbitragens, criou regras particulares que aplica em espetáculos públicos, criando com isso enormes complicações.
Madrid é o melhorzinho dos três, havendo até quem assegure que sabe ler e escrever. Até lá não chegamos nós. Começou mal, e para melhorar precisou de um delicado estímulo de Diogo Rangel, que disse-lhe ao ouvido: a sua formidável cara de cachorro não está agradando aos brasileiros.
O Sr. Paredes, boliviano de nascimento e chileno por merecimento,  foi o mais estranho dos juízes que apareceram em Santiago. Desconhecido até de alguns membros da própria delegação, andou mendigando por muito tempo uma arbitragem, porque, chorava ele, “não posso voltar para a minha terra sem ter atuado pelo menos uma vez.” Rondava Diogo. Rondava Simon do Uruguai. Cercava Marin por todos os lados. Até que acabou premiado. Escolhido para atuar em Vasco x Colo Colo, foi visto no sábado antes do jogo em doce e idílico colóquio com o presidente do clube local, colóquio que durou algumas horas. Entremeado de instante a instante por abraços amistosos, risinhos e segredinhos ao ouvido.

E que acertaram seus relógios nesse encontro noturno, basta ler a crônica dos próprios jornais chilenos, que afirmaram – Revista Hercília, La Nacion e Diário Ilustrado – que errar como o Sr. Paredes errou, só deliberadamente, de espírito preconcebido. Por uma coincidência espantosa, o Sr. Paredes errou durante  90 minutos, sempre contra o mesmo clube. Os ataques do Vasco eram paralisados à entrada da área, de qualquer maneira e sob qualquer pretexto. O Sr. Paredes primeiro apitava. Depois escolhia a punição. Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?
O Sr. Fortes, muito conhecido de outras épocas, não teve oportunidade de exibir suas habilidades, atuando uma única vez, assim mesmo num jogo sem importância.
Ao Sr. Valentine, já por duas vezes – 1945 e 46 – protagonista em dramas dos quais nosso país também participava, coube o mesmo papel desta vez. Por eliminação, ficou como único candidato a dirigir Vasco x River Plate, o que efetivamente veio a suceder. Dias antes do jogo, garantiu a Diogo na presença de jornalistas que seu maior desejo era reabilitar-se dos fracassos dos anos anteriores, e que, disposto a encerrar sua carreira de juiz, muito satisfeito ficaria se isso acontecesse com uma vitória do Brasil.
E realmente fez nesse jogo sua maior arbitragem. Calmo, sereno, acompanhando bem as jogadas e marcando com precisão, foi de uma imparcialidade a toda prova. E mesmo no famoso gol de Chico, nenhuma acusação mais séria lhe pode ser feita. Errou sem dúvida nenhuma ao assinalar impedimento de Chico. Mas o fato passaria apenas como um erro, perfeitamente desculpável, se para infelicidade sua, concluindo ilegalmente a jogada – depois do claro e indiscutível apito – Chico não aninhasse a bola nas redes argentinas.
Descontrolando-se em face da atitude da torcida que queria o gol, e deixando-se levar pelo delírio dos jogadores vascaínos, tentou reformar a própria decisão, apontando timidamente para o centro do gramado. Mas o apito fora estridente demais, e os argentinos não se conformaram, passando a exigir, aos gritos e mesmo a socos, a cobrança do impedimento. Reagindo nobremente contra a fraqueza momentânea, o Sr. Valentine mandou bater o impedimento, conseguindo com essa decisão, mantida a despeito de tremenda vaia, levar o jogo até o final.
Finalmente, ao brasileiro Malcher, o último a estrear, coube a missão mais perigosa e delicada: contrariar os desígnios comercias do antiesportivo Robinson Álvares Marin.
Malcher deveria estrear dirigindo River x Nacional. Mas como os gênios da delegação acharam que o jogo era importante demais, resolveram que Malcher adoecesse, apesar dos protestos do rapaz que, realmente corajoso e confiante nas próprias qualidades, queria apitar de qualquer maneira. Não conseguiu. Foi então indicado para Colo Colo X Nacional. Mas no intervalo excursionou a Concepcion com o quadro uruguaio, onde foi pivô de incidentes desagradáveis, apenas porque não quis atuar de acordo com a toada muito em voga no país andino: favorecer sempre o time da casa, qualquer que seja o adversário.
Com essa demonstração de energia e desassombro do árbitro brasileiro, assustou-se Robinson Marin, que na primeira reunião propôs a sua troca por Fortes, argumentando que “o público talvez não compreendesse a indicação de um juiz que já havia provocado incidentes em um jogo amistoso”. Mas como o delegado uruguaio manteve-se intransigente, não houve outra saída e Malcher foi mesmo indicado.
Mas que ele seria sacrificado aos interesses inconfessáveis do presidente do Colo Colo, ninguém tinha dúvidas. Iniciado o jogo, viu-se que o ambiente estava bastante carregado contra Malcher e que tanto o técnico como os jogadores do Colo Colo estavam industriados para jogá-lo contra a multidão. Os bandeirinhas também tomaram parte na comédia, visando apenas criar confusão.
Sentado ao lado do pavilhão do Vasco, Robinson Marin era quem mais torcia. A cada marcação ordenada contra o Colo Colo, ele levantava-se e, virado para as tribunas, exclamava dramaticamente:  “com esse juiz é impossível ganhar”.
No lance que provocou a primeira interrupção, lance perfeitamente justo com um gol licitamente conquistado. Marin aproximou-se do bolo formado em volta do juiz e, em vez de acalmar os que desejavam linchá-lo, incitou-os com essa frase, que é um primor de indecência e falta de esportividade:  “este juiz é um ladrão e está vendido ao Nacional”. Daí em diante valeu tudo. 
Finalmente, quando os locais exigiam a marcação de um pênalti que não existiu, Malcher muito justamente suspendeu a partida, recusando-se a continuar por falta de garantias. Era a única decisão a tomar e ele só merece aplausos por isso. Começaram então as maquinações de bastidores, quando os dirigentes chilenos, na quase unanimidade, puseram as cartas na mesa e mostraram seu jogo escuso.  O Sr. Afonséa, presidente da Divisão de Honor, fez um comício contra Malcher declarando- o único culpado pelos acontecimentos. O chefe dos carabineiros, um senhor com muitos galões e pouca compostura, depois de conversar em segredo com Marin, transmitiu a Malcher a notícia definitiva: se não continuasse, não haveria garantias.
Diante disso, depois de confabular com os chefes da delegação e ouvir-lhe os conselhos, Malcher resolver voltar a campo e dar prosseguimento ao jogo. Mas o ambiente estava tão impregnado de terror, que o bispo de Santiago, presidente da Universidade Católica, presente ao vestiário, declarou-lhe:  “Que Deus o proteja, meu filho. Só Ele o salvará.” 

E realmente os dois gols que o Colo Colo conquistou em cinco minutos, perfeitamente lícitos, têm sabor de milagre, e só à influência divina podem ser atribuídos. Eles deram ao clube local a tão desejada vitória, e mais do que isso, evitaram uma catástrofe que já se desenhava nitidamente, e que na certa se consumaria se o Colo Colo tivesse perdido.
Mas de todos os incidentes quem saiu engrandecido, definitivamente glorificado, foi Malcher. Ele demonstrou uma honestidade a toda prova, uma energia fabulosa e uma coragem inescedível, além de um conhecimento precioso das regras internacionais e da maneira de aplicá-las. Ele foi o melhor juiz do campeonato. Disso ninguém tem dúvida.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

MOÇA DA CAPA - A LOUCA

Dizem que ela é mitômana, que adora mentir. Dizem também que é meio louca, no melhor dos sentidos. Já namorou bastante, mas, pelo que se sabe, está há um tempo razoável com o Roger, ex-jogador de futebol. Ou não, sei lá. Na época da entrevista, ela estava com outro, mas não quis falar o nome dele. De jeito nenhum.

A matéria abaixo foi assinada também pela Nina Arcoverde Mansur, e as fotos, menos a última, são do André Durão.

Revista Istoé Gente, edição 249, de 17 de maio de 2004

“Já escrevi um romance, dois policiais, umas 300 poesias e estou escrevendo um livro infantil”.

Na sala de sua casa no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, Deborah Secco parece determinada. Aceita dar entrevista, posa para fotos, mas avisa: falar sobre o atual namorado, Marcelo Falcão, vocalista da banda O Rappa, nem pensar. E foi sem tocar no nome de Falcão que, na quinta-feira 6, recebeu da secretária a última edição de uma revista masculina. Folheou uma entrevista do namorado, chamou-o de lindo enquanto acariciava sua foto, sussurrou um singelo “eu te amo”, beijou a imagem de Falcão na revista sobre a mesa de jantar e voltou saltitando para a sessão de fotos. Tudo sem pronunciar seu nome.
Tem sido assim, contraditória, a nova fase da atriz de 24 anos. Ao mesmo tempo em que evita falar sobre o tórrido romance iniciado há três meses, não consegue esconder a paixão que a tem feito ir atrás de Falcão até nos shows internacionais do Rappa, como a turnê nos Estados Unidos em abril. “Tenho pela primeira vez uma pessoa que eu admiro 100%, que quero 100%, tudo 100%. Não tem aspecto que deixe a desejar”, afirma a atriz, que para acompanhar o músico aos EUA faltou ao lançamento de sua boneca em São Paulo e mudou seu roteiro de gravação na novela.
Da disposição em evitar declarações sobre a relação que a fez tatuar, com um mês de namoro, a frase ‘Falcão, amor verdadeiro, amor eterno’ no pé direito, a atriz só consegue manter a determinação em não falar no nome do namorado. De resto, entrega tudo. “Como mulher, sou feliz como nunca fui. Pela primeira vez sinto ter um homem ao meu lado”, diz. Com delicadeza, a atriz, ex-mulher do diretor da Globo Rogério Gomes, atenua o impacto dos romances com Maurício Mattar, Marcelo Faustini, e os recentes Dado Dolabella e Marcelo Faria.
A nova relação parece ter o poder de fazer Deborah revelar características que até hoje ninguém conhecia. Primeiro, ela garante: nunca foi namoradeira. “Sou recatada para a minha idade. Sou incapaz de passar a noite com um cara sem saber se no dia seguinte vou poder ligar pra ele. Isso não existe”, afirma. Outra novidade: Deborah Secco, alvo de fotógrafos onde quer que vá, principalmente nos shows do Rappa, odeia aparecer. “Nunca quis ser famosa, sempre quis ser atriz”, garante a intérprete da espevitada Darlene na novela Celebridade. Pela carreira, faz concessões como pintar o cabelo de uma cor que tanto a associa com a imagem de sexy. Um equívoco, segundo ela. “Odeio ser loura, mas se a maioria das meninas como a Darlene pinta o cabelo de louro, ok, vamos pintar.” Jogar por terra a idéia de que gosta de roupas sensuais, de grife, é outro de seus objetivos. “De dia, uso bermuda do meu irmão e chinelo”, diz a dona de um closet exclusivo para calçados organizados por cor e estilo.
Para os amigos, a atriz está mais madura desde o fim de seu namoro com Dado, em outubro do ano passado. “Vejo a Deborah mais forte, diferente até na escolha do namorado. O Falcão não é ligado a esse mundo de fama e aparências”, diz a produtora de eventos Joana Braga, melhor amiga da atriz. A colega de elenco Juliana Paes faz coro. “Ela está mais segura de quem é e do poder que tem para influenciar as pessoas”, diz ela, a Jaqueline Joy de Celebridade.
Longe de uma possível rivalidade alimentada até no desfile das escolas de samba do Rio, quando as duas foram consideradas musas do Carnaval, as amigas compartilham uma coincidência. Ambas começaram a namorar no mesmo dia: 13 de fevereiro, num evento musical no Rio. “Nem vi a Deborah lá, mas foi o dia que conheci meu namorado (o empresário Carlos Eduardo Batista) e ela encontrou o Falcão”, lembra Juliana. A amiga só se preocupa um pouco com o jeito impulsivo da namorada do líder do Rappa. “Vejo ela falando que quer casar, ter filhos. Tenho medo por ela, digo para esperar um pouco.”
Deborah pode até tentar, mas não consegue deixar de repetir os planos que já fez durante antigos e recentes relacionamentos. “Não vou desistir de ter uma pessoa para envelhecer comigo”, conta. O maior sonho da atriz, portanto, permanece intacto, e não é diferente do da maioria das mulheres. “Quero muito casar na igreja, ser eternamente fiel ao meu marido, cozinhar, lavar, ter filhos”, diz. Enquanto isso não acontece, ela curte os momentos em que está sozinha em seu home theater incrementado com um tapete felpudo, ou na banheira de ofurô ao lado da piscina da casa que decorou pessoalmente, após se separar de Rogério, em 2001.
É sozinha que a atriz exercita um outro lado desconhecido: o de escritora. “Já escrevi um romance, dois policiais, umas 300 poesias e estou escrevendo um livro infantil”, informa. Mas a produção, que em termos de quantidade causaria inveja a qualquer escritor, deve permanecer desconhecida do público. “Não vou publicar. O Brasil não gosta de quem faz mais de uma arte”, justifica a atriz, que, após estrear no cinema em A Cartomante, fará o próximo filme de Jorge Furtado, Meu Tio Matou um Cara.
Realizada na vida profissional, a filha de Silvia Secco tem seguido os ensinamentos que aprendeu com a mãe graças a uma tragédia familiar. Quando Deborah tinha 1 ano, sua irmã Ana Luiza, na época com 5, morreu de complicações decorrentes de um choque anafilático. O trauma acabou dando à família uma nova filosofia de vida. “A vida é curta. Sempre preferi que meus filhos fizessem tudo”, diz a mãe de Deborah, Bárbara, 23, e Ricardo, 31. A filha mais famosa concorda. “Sou mais uma menina de 24 anos tentando viver uma vida comum”, diz ela. 
E na vida comum a atriz garante que já está realizada, graças, sobretudo, ao namorado. “Não quero desmerecer quem passou pela minha vida, mas independente do futuro, só por ter achado essa pessoa especial já valeu. No quesito amor, já me dou por satisfeita. Podia morrer amanhã que morreria feliz”, diz ela, sem citar o nome de Falcão, lógico.