terça-feira, 22 de janeiro de 2013

MOÇA DA CAPA - A NEGRA


 A novela está sendo reprisada agora, no Vale a Pena Ver de Novo da Globo. Na época, foi o primeiro sucesso depois de uma leva de, digamos, fracassos no complicado horário das sete da noite. Além disso, fez história na tevê com a primeira protagonista negra de uma novela brasileira.

A matéria com essa protagonista, que teve colaboração do Jonas Furtado, está aí embaixo. As fotos são do Piti Reali.

Revista Istoé Gente, edição 236, de 16 de fevereiro de 2004

“Acho isso besteira. Ninguém chama a Gisele Bündchen de germano-brasileira, né?”

Era maio do ano passado, Taís Araújo estava no Chile, no meio do set de filmagens de uma produção para a televisão local, quando recebeu um telefonema do pai, Ademir Mathias. O recado era sobre a diretora da Globo Denise Saraceni, que queria falar com a atriz. Ansiosa, ela ligou para a diretora tão logo pôde, mas Denise queria apenas marcar uma reunião, sem adiantar o assunto. Insistente, a atriz tentou uma última pergunta:
– Denise, é sobre aquilo que eu estou lendo no jornal?
– É, limitou-se a dizer a diretora.
O que estava nos jornais eram as notícias informando que, pela primeira vez, uma novela da Globo teria uma negra como protagonista. E a resposta de Denise confirmava que, aos 25 anos, Taís Araújo teria esse papel. “Ainda tinha uns 15 dias de filmagem no Chile. Fiquei tão nervosa que nem sei como agüentei esperar”, lembra a atriz que, aos 17 anos, protagonizou a novela Xica da Silva, na extinta TV Manchete, no papel da personagem histórica, inserida no contexto da escravidão.
Agora, a história é outra. Preta, a jovem interpretada por Taís em Da Cor do Pecado, novela que estreou dia 26 de janeiro e cravou nos 12 primeiros capítulos 35 pontos no Ibope em São Paulo – ótima marca para o horário –, é bem diferente dos personagens que costumavam ser destinados aos atores negros no Brasil. “Ela é, na verdade, como a grande maioria dos brasileiros. Tem uma vida digna”, diz a atriz, que sabe bem o que quer com a personagem: “É essa representatividade, de mostrar uma família negra com uma vida bacana, que acho importante para nós, negros”.
Segundo o autor João Emanuel Carneiro, a questão racial não é preponderante na trama. Sua intenção é deixar claro o abismo social entre os atores principais. “Não escolhi uma protagonista negra para abordar o preconceito de maneira sistemática. O abismo entre as classes sociais é maior que o preconceito racial. Na novela, Paco (Reynaldo Gianecchini) se apaixona por uma mulher pobre. Achei que essa mulher poderia ser negra para marcar a diferença de mundos”, explica.
Remanescente da época dos papéis estereotipados, Zezé Motta se lembra de um caso que ilustra bem o espaço que era reservado aos negros na tevê. De volta dos Estados Unidos, em 1969, onde ficou três meses com o teatro de Arena, a atriz foi procurar emprego na extinta TV Tupi. “Um diretor me disse: ‘Você chegou tarde, os dois papéis de empregada já estão preenchidos’”, conta Zezé.
Por causa de histórias como essa, Taís Araújo cresceu sem referências na profissão, por mais que admirasse Zezé Motta e outros negros pioneiros na tevê, como Milton Gonçalves, Ruth de Souza e Léa Garcia. “Eles eram muito mais velhos que eu. Meu ídolo era a Xuxa, mas nunca poderia ter o cabelo igual ao dela nem o olho azul”, diz ela. Ser a referência que não teve é, para Taís, o grande objetivo de sua participação na novela. “Ficaria feliz se pudesse gerar essa identificação nas meninas e meninos negros”, afirma a atriz, que é exceção num País dominado por uma elite branca: no Brasil, 45% da população são negros mas eles detêm apenas 26% da renda nacional.
Filha do economista Ademir com a pedagoga aposentada Mercedes, Taís cresceu numa típica família de classe média: sempre estudou em escola particular, morava num apartamento de quatro quartos em um condomínio da Barra da Tijuca e, na adolescência, foi duas vezes à Disney. O que não impediu que sofresse preconceitos desde o início da carreira. Aos 13 anos, quando começava na profissão de modelo, teve uma decepção logo no primeiro teste para um comercial de sorvete. “Me disseram que eu nem precisava tentar porque não queriam atores negros”, lembra Taís.
É na publicidade, a exemplo desse episódio, que a atriz vê a maior necessidade de mudanças para atender a raça. Ela cita o exemplo dos Estados Unidos, onde os produtos costumam ter anúncios específicos para os negros, para mostrar o que quer. “Lá, se o anunciante não põe um negro consumindo seu produto, os negros não compram. A gente tinha que começar a ter uma atitude assim”, afirma Taís, que, no entanto, enxerga avanços nos últimos anos. “Na verdade, as coisas estão mudando agora, e a iniciativa da Globo contribui para isso”, completa.
Provas dessa mudança recente, citadas pela própria atriz, foram os filmes protagonizados por Lázaro Ramos (O Homem Que Copiava e Madame Satã) e Luciana, a médica vivida por Camila Pitanga em Mulheres Apaixonadas. “A dramaturgia brasileira está contribuindo para termos uma referência”, diz Taís. O filósofo Renato Janine Ribeiro cita ainda os cantores de pagode, axé e rap, além dos jogadores de futebol, como exemplos de uma elite negra influente. “A mudança de vida dessa minoria mexe com o imaginário de muita gente, dos brancos que começam a aceitar a ascensão social dos negros, e dos negros que se miram nesses exemplos e dizem ‘eu também posso’.”
Isso, porém, não significa dizer que o preconceito é página virada no Brasil. Com toda a projeção nacional alcançada no cinema e na tevê no seriado Sexo Frágil, o ator Lázaro Ramos conta que ainda sofre com o racismo. “Sou parado por policiais em blitz”, diz ele. “Em dezembro, quando cheguei de Nova York, dos oito passageiros separados para averiguação, cinco eram negros e um deles era eu”, conta o ator.
Foi também o preconceito que impediu que a Globo tivesse uma protagonista negra numa novela 35 anos antes de Taís Araújo assumir esse posto. Escalada para viver a Tia Cloé, principal personagem feminina em A Cabana do Pai Tomás, Ruth de Sousa era a primeira atriz a aparecer nos créditos, mas só nos primeiros capítulos. “Meu nome passou para segundo lugar porque outras atrizes não estavam gostando”, lembra ela.
Pioneira no teatro entre as atrizes negras,Ruth terá sua vida contada no cinema no filme Filhas do Vento. Ruth, na juventude, será vivida por Taís Araújo, e gravou sua participação no filme, que deve ser lançado esse ano, em janeiro de 2003. Em breve, Taís também estará nas telas no filme Garrincha, a Estrela Solitária, na pele de outra artista negra, a cantora Elza Soares. “A Elza é aquela loba insaciável, um furacão de mulher. A dona Ruth é um furacão dentro de uma casa, é contida mas tem uma força incrível”, analisa a atriz.
Requisitada no cinema e protagonista na televisão, Taís tem deixado um pouco de lado os planos pessoais, mas pensa em se casar depois de Da Cor do Pecado com o empresário e lutador de jiu-jítsu Márcio Feitosa, 27 anos, seu namorado há 2 anos e 8 meses. Só assim, ela deixará a casa onde mora com os pais. “Pode parecer meio cafona, mas só vou sair de casa para casar”, afirma a atriz, que nunca pensou em morar sozinha. “Meu nome é família”, completa.
O sonho de ser mãe está programado para mais tarde. “Quero muito, mas daqui a cinco anos, no mínimo. Depois de casar, vou querer curtir minha casa e meu marido”, diz Taís, que tem driblado o instinto materno com os sobrinhos João Pedro e Lucas, gêmeos de 3 meses, filhos da irmã mais velha, a médica Cláudia.
Com a decisão de deixar a maternidade para daqui a alguns anos, Taís tem todo o tempo para se dedicar à profissão e realizar o desejo de se firmar como uma referência para as jovens atrizes negras. Ciente do papel importante que desempenha no momento, ela recusa o rótulo de afro-brasileira. “Acho isso besteira. Ninguém chama a Gisele Bündchen de germano-brasileira, né?”, diz a atriz, antes de responder, convicta, qual a melhor maneira de chamá-la. “Sou brasileira, nasci aqui e meus pais são daqui. Se tiver de ser marcada por uma denominação qualquer, quero ser marcada com um ‘b’ de brasileira.”