segunda-feira, 1 de julho de 2013

VIDA DE CINEMA

E quando o nome é mais que conhecido, inclusive com vários filmes do sujeito vistos e apreciados, mas o rosto nem tanto assim? Não, o repórter não lembrava daquele rosto, não com certeza, mas lembraria assim que o visse, ah, lembraria, e foi com essa convicção que partiu pra Brasília nos primórdios do governo Lula, a princípio com duas pautas, depois três.

A entrevista tinha sido marcada por telefone no Rio, com a filha dele, por isso a certeza de que ele estaria lá no primeiro evento, três horas após a aterrissagem, seis depois da decolagem. O ministro Gilberto Gil apresentava seu primeiro escalão na pasta da Cultura num teatro e a ligeira tensão provocada pela possibilidade de não reconhecer o cineasta histórico nas cadeiras lotadas da plateia foi logo dissipada, à vista daqueles cabelos brancos de tantos filmes no meio de uma das fileiras. Pronto. Problema resolvido. Era só esperar o fim do evento, importante para a outra pauta, e ir lá falar com ele.

E foi com toda a calma, com a certeza do dever cumprido, que o repórter se desvencilhou de uma ou outra pessoa no teatro apinhado de gente, subindo quatro, cinco degraus, e depois pediu licença pra senhora de vestido lilás, pro rastafari de camisa social vinho, e chegou enfim à frente do entrevistado, sorrindo, aliviado e falando que era o fulano da revista tal, que tinha marcado a entrevista com a filha e tudo mais, com o objetivo de ser reconhecido logo, pra começar a entrevista o mais rápido possível, e não de ser travado no seu ímpeto de apressado pela resposta do cineasta, clara, sucinta:

Eu não sou o Nelson Pereira dos Santos. Eu sou o Zelito Vianna.

A matéria abaixo não foi oriunda da entrevista de Brasília, que acabou acontecendo alguns minutos depois da gafe. Saiu de outra entrevista, no Rio, com mais calma, mais tempo, e faz parte da mesma série já mostrada aqui com a Fernanda Montenegro, o Joãozinho Trinta e o Oscar Niemeyer. No caso, é o segundo de três capítulos.

Revista Istoé Gente, edição 235, de 9 de fevereiro de 2004

“Nunca mais permiti que ator jogasse futebol em filmagem. Isso não se deve fazer”.

A idéia inicial de Nelson Pereira dos Santos e dos pintores Otávio Araújo e Luiz Ventura quando embarcaram rumo a Marselha, em 1949, era ir até Varsóvia para um festival da juventude. Mas, após 24 dias de viagem, os três amigos chegaram à França quando o festival polonês já tinha terminado. Nelson não se incomodou. Apesar de não conseguir entrar na Escola de Cinema de Paris, pois as matrículas estavam fechadas, aproveitou a viagem para aprender mais sobre a futura profissão. “Vi todos os filmes que pude lá. Fiz um curso entre aspas”, diz o cineasta.
O dinheiro para se sustentar saía de um hábito dos brasileiros que chegavam à Europa ainda abalada pelos resquícios da Segunda Guerra Mundial. Tirando proveito do racionamento vigente, os estudantes brasileiros desembarcavam na França com grande quantidade de café em grãos, açúcar e cigarros na bagagem. “Vendíamos tudo no câmbio negro de lá”, lembra.
Um dos pontos de encontro era a casa do pintor Carlos Scliar. Foi lá que o diretor conheceu Rodolfo Nanni, que, dois anos mais tarde, o convidaria para a assistência de direção no filme O Saci, primeiro trabalho profissional de Nelson. De volta ao Brasil, ele completou o serviço no Exército, foi pai pela primeira vez, com o nascimento de Nelsinho, e rodou seu primeiro documentário amador, Juventude, sobre os jovens trabalhadores de São Paulo. Tudo em 1950.
Um ano depois, o diretor engatava o início das filmagens de O Saci. Promovido de segundo a primeiro assistente de Nanni no filme, Nelson ainda seria responsável por um atraso considerável nas filmagens, graças à infeliz idéia de promover um jogo de futebol no intervalo das gravações. Numa queda, o menino que interpretava Pedrinho machucou o braço. Na tentativa de ajudar, o então assistente de direção só piorou a situação. “Fiz a única coisa que não podia, que era mexer no braço. Daí quebrou de vez”, lembra o diretor, que aprendeu a lição. “Nunca mais permiti que ator jogasse futebol em filmagem. Isso não se deve fazer.”
A participação no primeiro filme renderia o convite para outro, Agulha no Palheiro, de Alex Viany, que faria Nelson se mudar para o Rio de Janeiro, onde mora até hoje. “Vim para fazer um filme em quatro meses e estou aqui até hoje”, brinca. Antes da mudança, porém, era preciso cumprir a promessa feita ao pai, Antônio, e completar a faculdade. Pendurado em Direito Processual Civil, o aluno, que já trabalhava como revisor do jornal Diário da Noite, conseguiu o diploma em 1952, graças a uma promessa ao professor titular da matéria. “Ele me fez prometer que nunca iria exercer a profissão. Estou cumprindo até hoje”, diverte-se o diretor.
Com a mulher, Laurita, grávida de Ney, seu segundo filho, que nasceria em 1954, Nelson usava o salário do jornalismo para sustentar a família. Eram raras as propostas de emprego no cinema, como a recebida para ser assistente de direção de Balança Mas Não Cai. As dificuldades financeiras para concluir o filme fizeram com que ele e dois colegas dormissem durante uma semana no estúdio, que ficava próximo à favela do Jacarezinho, a maior do Rio na época. “Conheci bem a favela. Íamos filar bóia aos domingos nas casas dos amigos que fizemos.”
O convívio amadureceria no diretor a idéia de fazer Rio 40 Graus, cuja história tinha a favela como pano de fundo. Para rodar o filme, Nelson internou-se com a equipe num apartamento de três quartos no Centro do Rio. Fora o entra-e-sai promovido pelos moradores do local, que incluíam o sambista Zé Keti e o ator Jece Valadão, o maior problema era conciliar as filmagens com as tarefas que os comunistas da equipe recebiam do PCB. “Tínhamos de distribuir panfletos quando filmávamos na favela, fazer campanha eleitoral, tudo misturado”, conta o cineasta.
O maior problema, no entanto, viria após a conclusão do filme, em 1955. De contrato assinado com a Columbia para a distribuição, Nelson foi surpreendido pela decisão do chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Geraldo de Menezes Cortes, que proibiu o filme. Um dos argumentos era de que no Rio nunca tinha feito 40 graus, já que a média das temperaturas máximas na cidade era de 39,6.
O que se seguiu foi uma campanha em favor do filme que ganhou ecos até no Exterior, graças à intervenção de Jorge Amado. “O Jorge sempre foi ótimo em relações internacionais. Recebi telegramas até do Visconti (Luchino, cineasta italiano)”, conta Nelson. Com outra ajuda substancial, dos advogados Evandro Lins e Silva e Milton Nunes, o filme foi liberado em dezembro, quatro meses após a proibição.
Antes de partir para o segundo filme, Rio Zona Norte, o diretor iria se desvincular do PCB. Em 1956, Nelson recebeu por Rio 40 Graus o Prêmio Jovem Realizador no festival de Karlovy Vary, na antiga Tchecoslováquia, e viu de perto a repercussão do relatório do líder soviético Nikita Kruschev sobre as atrocidades cometidas por Stalin, seu antecessor. Ao declarar o que vira na volta ao Brasil, foi chamado de traidor e surpreendido pela posição tomada pelo PCB, contrária ao relatório. “A partir dali nunca mais participei de atividades partidárias.”
Apesar de um esquema menos amador que o filme de estréia, Rio Zona Norte também foi prejudicado pela escassez de recursos. O mutirão de amigos para a realização do filme incluiu até Glauber Rocha, na época um aprendiz de cineasta que começava a conhecer Nelson. Em entrevista concedida a Helena Salem, autora da biografia de Nelson, Glauber falou sobre seu contato com o colega no set de filmagens. “Ele me cumprimentou e foi logo dizendo: ‘Que bom que você veio, pega aquelas cadeiras ali para ajudar’.”
A amizade com o cineasta baiano se solidificaria em 1960, quando Nelson viajou para Juazeiro, na Bahia, com a intenção de filmar Vidas Secas. “A base da equipe era a pensão da mãe do Glauber, dona Lúcia”, lembra o diretor, que mudaria a história a ser filmada no meio da viagem, graças às inesperadas chuvas. Sem o cenário ideal para a história de Graciliano Ramos, o jeito foi criar outra. E foi o próprio Nelson que escreveu o roteiro de Mandacaru Vermelho, o terceiro filme do diretor, que lhe proporcionaria uma experiência única na carreira.