quinta-feira, 3 de abril de 2014

O CINEMA E O SOCIAL

A entrevista tinho sido tranquila. Sujeito inteligente, articulado, respondeu tudo sem monossílabos, sem olharzinho de desconfiança, e deu boas declarações, boas histórias, mas nada muito sucinto pra servir de título, disse o editor, bem ali na hora do fechamento. Disse e sugirou a manchete de página, algo que unia cinema e social na mesma frase, e numa frase curta, perfeita para o título de uma linha. O único problema é que o entrevistado tinha até dado a entender numa resposta, mas não tinha dito aquilo, não daquele jeito, e o editor ficou tão apaixonado pela frase, gostou tanto daquilo, insistiu tanto, que o jeito foi pegar o telefone e ligar pro cara, num tempo ainda não dominado pela horda de assessores de imprensa, de relações só um pouquinho mais diretas. Situação explicada, com os devidos pedidos de desculpas pelo aborrecimento, o sujeito aceitou na boa ter dito aquilo, ainda que não tenha dito. Tudo bem, pode colocar isso, disse, tranquilo, sem problemas, e a matéria é essa aí embaixo, e do título dela eu nem me lembro mais, até porque publicaram outro completamente diferente do que me mandaram combinar com o cara, e um que já estava no texto original, na boca dele.

Revista Istoé Gente, edição número 203, de 23 de junho de 2003

"Vi uma cena de Quem Vai Ficar com Mary? em que um cara se masturba e a Cameron Diaz, sem saber de nada, chega depois e passa o negócio no cabelo achando que era um gel, e isso era uma piada. Imagina se um brasileiro faz uma cena assim, com uma grande atriz como é a Cameron Diaz. O cara ia levar uma surra na rua".

A expectativa por um longa-metragem de Jorge Furtado, 44 anos, vem desde 1989, quando o cineasta gaúcho surpreendeu ao inovar a linguagem do curta com Ilha das Flores, mostrando como pessoas disputavam no lixo o tomate podre rejeitado por porcos. No mesmo ano, Furtado foi para a televisão. Enquanto fundava com outros cineastas gaúchos a Casa de Cinema de Porto Alegre e continuava a dirigir seus curtas, trabalhou na Globo em programas como as Comédias da Vida Privada e Brava Gente, entre outros. A espera pelo longa chegou ao fim esse ano, e em dose dupla. Além da comédia adolescente Houve uma Vez Dois Verões, lançada no último verão, acaba de estrear O Homem Que Copiava, que mal chegou às telas e já virou sucesso de crítica.

Por que demorou tanto para filmar um longa-metragem?
Um pouco pela dificuldade de se conseguir grana naquele período, mas foi exatamente a partir do Ilha das Flores que fui chamado para a televisão, e não sou aquele tipo que diz ‘sou cineasta, mas vou fazer televisão já que não consigo filmar’. Gosto de tevê e tive a sorte de trabalhar sempre com coisas bacanas, quase que exclusivamente com o Guel (Arraes, diretor de núcleo da Globo). Entrei para fazer o Dóris Para Maiores e o Programa Legal num grupo que tinha o pessoal do Casseta & Planeta, João Falcão, Pedro Cardoso, Cláudio Paiva, Luis Fernando Verissimo e uma turma que sempre acreditou ser possível fazer algo de qualidade e com audiência. Na tevê não adianta fazer um negócio maravilhoso mas que ninguém vai ver.
Pode haver mais espaço para programas de qualidade na tevê?
Acho que é uma luta constante de conquistar os espaços. O João Falcão fez O Homem Objeto no Fantástico; tem o Torero (o escritor José Roberto Torero) e o Maurício Arruda com o “Dias de Glória” também no Fantástico; tem A Grande Família. Basta ter projetos interessantes para alimentar a necessidade de público com qualidade. O Homem Que Copiava tem essa idéia.
Como assim?
O filme tem um monte de referências. Tem muitos níveis de leitura possíveis, mas quem não perceber nada disso se diverte também, porque tem uma aventura, um monte de piada. Quem tem referência, já leu, viu filmes, curte de um jeito. Quem só vê tevê e nunca leu um livro curte de outro, e pode, a partir do filme, buscar referências para se divertir com as citações. Educação sentimental, essa é a tendência.
E a polêmica levantada por Cacá Diegues sobre as leis de incentivo para o cinema?
Acho que o Cacá teve toda razão, assim como o Hector Babenco e o Zelito Vianna, que chiaram também. Eram critérios inaceitáveis, que interferiam diretamente no conteúdo das obras e propunham coisas absurdas, como valorização da imagem do Brasil no Exterior. Isso é papo para Embratur, não para cinema. E a tal contrapartida social é muitíssimo discutível. Qual a contrapartida social de um filme como Carandiru? É o filme, essa é a contrapartida. Então havia várias coisas ridículas ali, eles fizeram bem em chiar e o governo fez bem em agir rápido e retirar aquilo.

Tem alguma sugestão para a política de incentivo?
Um critério que tem de ser mantido é o do currículo. O Carandiru feito pelo Babenco é um filme, feito pelo Zé das Couves é outro. Alguns dos problemas do cinema brasileiro foram de empresas e pessoas que não agiram de má fé, imagino, mas que não tinham capacidade para fazer projetos muito grandes. Não tinham feito um curta e partiram para um projeto gigantesco.
Está falando de Guilherme Fontes (o ator captou R$ 8,5 milhões para filmar Chatô e, em 1999, interrompeu as filmagens por ter estourado o orçamento)?
Tu é que tá dizendo. Mas, enfim, isso não pode acontecer. Mesmo não sendo desonesto, incompetência com dinheiro público é um problema. Essa questão do currículo cria um problema, que é: só quem já fez vai fazer. Teria de ter cotas para estreantes, pelo menos dois projetos para primeiro filme, de baixo orçamento. É uma discussão e não pode paralisar a produção para isso. Tem de pensar e fazer ao mesmo tempo.

Acha o Oscar importante para o cinema nacional?
O Oscar é um programa de televisão para promover o cinema americano no mundo. Até para ter mais público no mundo inteiro, eles incluíram os filmes estrangeiros. Funciona como uma grande vitrine, e é ótimo que o cinema brasileiro entre lá, enfiando o pé na porta se possível. Mas acho que a qualidade dos filmes não depende disso. Claro que um filme indicado recebe mais promoção, mas a imprensa brasileira valoriza demais o Oscar. Eu não vejo o Oscar e nem os filmes que ganham, não passo nem perto.
Não gosta do cinema americano?
Acho ele quase 90% indigente em termos mentais. É filme para criança pequena ou para adolescente americano. Claro que os 10% que eles produzem de qualidade, que são 50 filmes por ano, são bons. Tem Woody Allen, Martin Scorsese, Spike Lee, muita gente boa, mas a massa dos filmes que lotam os shoppings, pelo amor de Deus. Vi uma cena de Quem Vai Ficar com Mary? em que um cara se masturba e a Cameron Diaz, sem saber de nada, chega depois e passa o negócio no cabelo achando que era um gel, e isso era uma piada. Imagina se um brasileiro faz uma cena assim, com uma grande atriz como é a Cameron Diaz. O cara ia levar uma surra na rua.
Cidade de Deus foi um sucesso de público e crítica e mesmo assim foi criticado no Brasil. Acha que a crítica aqui é mais severa?
Achei Cidade de Deus bárbaro e defendi o filme no primeiro minuto, não que ele precisasse de defesa. A crítica maior é que o filme mostrava a marginalidade, todo mundo ia ao cinema, via a violência e depois saía para comer uma pizza. Imagino que possa acontecer isso com algumas pessoas, mas pode acontecer da pessoa, através do filme, repensar muita coisa.

Um filme pode ajudar a melhorar alguma coisa?
Estive com o Lula mostrando O Homem Que Copiava em Brasília e ele contou que vai formar núcleos de cultura, e vai começar pela Cidade de Deus. Claro que é por causa do filme. Como imagino que Ilha das Flores não tenha mudado inteiramente a vida das pessoas que moram lá, mas mudou de algumas. Um menino de 7 anos que aparecia no filme catando tomate no lixo foi adotado por uma dinamarquesa, que viu o filme na Alemanha e se emocionou. A função de um filme não é resolver os problemas nem da Ilha das Flores, nem da Cidade de Deus, mas isso também pode acontecer.

Como começou com o cinema?
Estudava medicina e larguei depois de quatro anos. Teve um movimento de Super 8 no começo dos anos 80 em Porto Alegre e passei a querer fazer cinema quando vi um filme chave dessa época, Deu pra Ti nos 70, um longa em Super 8 que falava da minha geração. Fui fazer jornalismo, que era o mais próximo que tinha de cinema. Acabei na TV Educativa, que na época era em preto e branco. Fazia de tudo, roteiro, apresentava e até câmera, aprendi meio que no muque. Na tevê formamos um grupo e fizemos um curta em 1984, Temporal, baseado num conto do Verissimo. Dali surgiu o grupo que criou a Casa de Cinema.