quarta-feira, 18 de junho de 2014

REGIME SEMI-ABERTO

O início da carreira tinha sido promissor, como tantos outros. Em termos de Vasco, ele fez história já aos 17 anos de idade, quando, junto com Valdir Bigode, Leandro Ávila, Pimentel e cia., venceu a Copa São Paulo de Juniores de 1992, num Pacaembu lotado, no aniversário de São Paulo, contra um dos três grandes da cidade. Na semifinal, inclusive, fez os dois gols da vitória sobre o glorioso Santa Tereza, de Minas Gerais, e depois participou ativamente, junto com o pessoal da geração dele, que tinha ainda Carlos Germano, Edmundo e Jardel, do único tricampeonato estadual do clube. Mas titular inconstestável, como Bismarck, William e Ricardo Rocha, ele nunca foi. No meio de tanta gente boa, de Geovani a Alexandre Torres, de  Carlos Alberto Dias a Roberto Dinamite, Hernande foi se apagando, perdendo espaço a ponto de precisar rodar o mundo pra viver de jogar bola. Foi pra Bolívia, pra Eslováquia e pro Equador. Passou também pela Alemanha até voltar ao Brasil para assinar com o Botafogo e, enfim, voltar a jogar na sua terra.

Mas não era só essa a razão da entrevista, ali, no campo do Caio Martins, estádio em Niterói que o Botafogo usava na época para treinos e jogos. Para a revista, a história de Hernande jamais despertaria algum interesse se entre suas andanças atrás da bola ele, num deslize até desculpável pela idade, não tivesse atropelado quatro pessoas, sem matar ninguém e parando pra socorrer todas elas, e não estivesse preso por isso, convivendo com traficantes da pesada no Complexo do Bangu. Saía só pra trabalhar, no caso treinar, concentrar e jogar com o time, e também dar entrevista, logo depois do treino, cansado mas feliz, antes de voltar a Bangu pra dormir na sua cela, à espera da liberdade completa que até que estava próxima, de acordo com a matéria aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 107, de 20 de agosto de 2001

“Digo para eles que o pai tem que se concentrar com o time e não pode dormir em casa. Quando tudo se resolver, vamos contar a verdade”.

Na noite de quarta-feira, 18 de julho, a delegação do Botafogo do Rio chegou em Florianópolis para disputar um amistoso contra o Figueirense, time local. Acostumados com a rotina de viagens e noites longe da família, os jogadores nem repararam na emoção de um de seus colegas. Preso desde 22 de dezembro passado, depois de ser condenado a cinco anos de prisão por ter atropelado quatro pessoas na zona norte do Rio, em 1995, o atacante Hernande Gomes Flores, 27 anos, mal podia acreditar que iria dormir fora da cadeia. “A sensação de liberdade que senti naquele dia não tem preço”, lembra o jogador, que cumpre pena em regime semi-aberto no presídio Plácido de Sá Carvalho, em Bangu, zona oeste do Rio.
O martírio do jovem, que aos 19 anos já era tricampeão carioca pelo Vasco, começou na noite em que ia para uma festa com dois amigos. Numa rua do Méier, um carro fechou seu Tempra. “Subi na calçada e atropelei quatro pessoas. Ninguém morreu e socorri todos.” Emprestado ao Curitiba do Paraná, o jogador deixou o caso com os advogados do Vasco. Ele considera que esse foi o seu erro. É que Hernande ganhou passe livre e jogou em times do Equador, da Alemanha, da Eslováquia e da Bolívia e seu caso foi julgado à revelia. Sem defesa, foi condenado a cinco anos de prisão. Assim que voltou da Bolívia, em dezembro de 2000, recebeu a notícia da condenação pela mulher, Wanessa Simões, de 24 anos. “Decidi me entregar na delegacia de Silva Jardim, onde mora toda a família da Wanessa.”
Mesmo longe de presos perigosos, Hernande não teve vida fácil na delegacia em Silva Jardim, no norte fluminense. Dividiu uma cela com nove detentos e só saía uma vez por semana para tomar banho de sol. “Só tinha um buraco pra fazer as necessidades”, conta o jogador, que dormia no chão, só com um cobertor. “Tinha noite que eu me cobria todo e chorava sem parar.”
Dois meses e meio depois, já no presídio em Bangu, o jogador passou a dormir num dos 38 beliches de sua cela. Lá, Hernande teve contato com criminosos como José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, um dos traficantes mais procurados do Rio na década de 80. “Do que eu convivi com ele, posso dizer que era um cara tranqüilo. Tanto o Escadinha como os outros presos me respeitavam. E eu respeitava a todos”, diz. Com o tempo, ele passou a ter vantagens. Disputado pelos colegas no campeonato interno da prisão, marcou 35 gols em 12 jogos. Além disso, trabalhava no gabinete do diretor, Paulo Roberto Rocha. “Foi ele quem avisou a imprensa que eu estava lá. Aí o Botafogo foi me buscar.”
A prisão em regime fechado foi até julho. Com a ida para o Botafogo, Hernande, que já tinha sido beneficiado com a redução da pena para três anos, ganhou direito, no regime semi-aberto, a uma cela individual. Todo dia, uma van do clube vai buscá-lo na porta do presídio, às 6h, e o leva de volta às 21h. “Quando ele cumprir um ano, em dezembro, vamos pedir a condicional”, diz o advogado Jorge Ministro. Enquanto isso, Wanessa se desdobra para não deixar que os filhos, Hernande Filho, 6, e Pamela, 4, fiquem sabendo da prisão do pai. “Digo para eles que o pai tem que se concentrar com o time e não pode dormir em casa. Quando tudo se resolver, vamos contar a verdade.”