domingo, 7 de dezembro de 2014

NO ÔNIBUS

O repórter primeiro viu tudo na tevê da redação pequena de sucursal, cinco mesas, cinco computadores, cinco telefones, a tevê no alto, de quatorze polegadas, e mais nada além do trabalho nem tão corrido nem tão descansado de uma véspera de fechamento. Finda a tragédia que mudava tudo, inclusive a capa, ou quase, na véspera do fechamento, o repórter foi direto à delegacia do caso, na Gávea, de bloquinho e caneta e com a vantagem inestimável de não precisar escrever nada para a manhã seguinte. Anotou endereços, telefones, nomes e no dia seguinte, cedo, partiu para a Rocinha e adjacências enquanto outro repórter contratado especialmente para o caso, também criado e curtido entre as delícias da saborosa Jurujuba e os mais sombrios valões da valente São Gonçalo, seguia no encalço do perfil da outra vítima fatal da história.

A matéria abaixo foi escrita com a colaboração do Júlio Castañeda.



Revista Istoé Gente, edição 46, de 19 de julho de 2000

"Ele mandou que ela ligasse a televisão. Naquele momento, esfregou o rosto da Luciana no vidro".

Para trocar um cheque de R$ 130, na segunda-feira 12, a professora Geisa Firmo Gonçalves, 20 anos, aproveitou o intervalo entre os dois turnos de trabalho no Projeto Curumim, que atende a crianças da favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, para ir ao banco. O dinheiro, obtido com a venda das cestas que fabricava artesanalmente, seria incorporado ao salário de R$ 302. Essa poupança vislumbrava dois sonhos: o desejo de ser mãe e o retorno para Fortaleza, no Ceará, com o marido, o cavalariço Alexandre Magno de Macedo Oliveira, 21.
Naquele momento, ela servia de escudo para Sandro, que finalmente descera do ônibus. “Assisti minha mulher sendo carregada. Quando cheguei ao hospital, já estava morta”, contou o viúvo, em seu depoimento na 15ª Delegacia do Rio, na Gávea. A primeira bala que atingiu Geisa, de raspão, no queixo, foi disparada pelo soldado Marcelo Oliveira dos Santos, do Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope), conforme constataria a perícia na terça-feira 13. Ele alvejou o bandido, mas a má pontaria levou Sandro a descarregar o revólver na refém. Foram mais três tiros contra Geisa. O seqüestrador não levou nenhum tiro, foi dominado e, colocado num camburão por cinco policiais, terminou asfixiado. Depois de provocar a morte da refém, a polícia executou Sandro.
A habilidade como artesã fez de Geisa uma das expositoras do Posto de Recreação e Recepção de Turistas da Rocinha, mantido pela Secretaria Municipal de Trabalho do Rio. "Ela trabalhava conosco há pouco tempo, mas já tinha várias encomendas", afirma Telma Santos, uma das coordenadoras do posto. Três dias antes de morrer, Geisa disse a Vera que estaria grávida de dois meses. "Ela ainda não tinha contado para o marido, mas estava muito feliz." As suspeitas, porém, eram infundadas. Os exames realizados no Instituto Médico Legal não confirmaram a gravidez de Geisa, que vivia cercada de crianças. "Ela era muito boa. Ajudava e dava conselhos", diz Pamela Gomes da Costa, 13, uma das alunas do Projeto Curumim.
As quatro horas que antecederam sua morte foram de pânico e incerteza. Assim que o ônibus foi interceptado pela polícia, Geisa assistiu o assaltante fazer Glória de Jesus Albuquerque, 63, como sua primeira refém. Um policial chegou a subir a bordo do 174, mas recuou atendendo às ameaças do bandido. Para salvar Damiana, Geisa apelou para que Sandro a deixasse ir embora, sob o argumento de que a amiga era sua mãe. O bandido a atendeu, num único momento de generosidade. A partir daí, Sandro aterrorizou os passageiros friamente. Andava de um lado para o outro, trocando várias vezes de refém. "Ele dizia que a mãe tinha sido morta a facadas, o pai a tiros e a irmã, degolada. Por isso não tinha nada a perder", conta Luana Belmonti, 19, aluna do quinto período de Comunicaçãoo Social na PUC, uma das torturadas.
Na viagem do terror, Geisa integrava a amedrontada platéia nos momentos em que não estava nas mãos do bandido. Assistiu à simulação da morte da estudante Janaína Lopes Neves, 23 anos, quando Sandro mandou que ela se deitasse no chão e atirou próximo a seus pés. Também escutou Sandro cantarolar uma versão macabra do sucesso "Xibom Bombom", em que anunciava um pacto com o diabo. "A Geisa e a Janaína estavam muito assustadas. Segurava as mãos delas e dizia que sairíamos dali", conta Luana. A professora ainda testemunhou o bandido apanhar o celular da secretária Luciana Ximenes, 29 anos, e discar para a irmã dela, Cláudia. "Ele mandou que ela ligasse a televisão. Naquele momento, esfregou o rosto da Luciana no vidro", contou Rita de Cássia Ximenes, outra irmã de Luciana.
No dia seguinte ao crime, moradores do Jardim Botânico depositaram flores no local onde a professora fora abatida. Seus vizinhos da Rocinha também lhe prestaram uma homenagem. Só não conseguiram fazer com que o corpo de Geisa fosse velado no morro, antes de seguir para Fortaleza, em um võo fretado pelo governador Anthony Garotinho. A irmã da professora, Maria Elisângela Gonçalves, chegou ao Rio na terça-feira 13. Ela fez chegar uma carta de agradecimento às crianças do Projeto Curumim. Em um dos trechos, escreveu: "crianças, vocês são puras e simples, assim como a Geisa, minha irmã, que era vestida de simpatia e amor. Por isso que Deus a quis junto a ele".
Normalmente, Geisa apanharia um ônibus da linha 592 (Gávea-Leme) para chegar a seu destino, uma agência bancária no Humaitá, a cerca de 6 km da favela onde morava. Naquele dia, mudou o itinerário, a pedido da amiga, Damiana Nascimento de Souza, 40, que a acompanhava. Damiana usou um argumento irrefutável para convencê-la a embarcar num coletivo da linha 174 (Gávea-Central), cujo ponto final fica um quilômetro mais distante. Hipertensa, Geisa precisava caminhar por recomendação médica. A professora jamais desceu no ponto planejado. Quatro horas e cinqüenta minutos depois de embarcar no ônibus, ela foi morta, por um erro policial.
O drama dos passageiros começou às 14 horas, quando a polícia interceptou o ônibus, na Rua Jardim Botânico, para tentar prender o bandido Sandro do Nascimento, 22 anos, que planejava um assalto a bordo. Para se defender, Sandro manteve Geisa e outros nove reféns sob a mira de seu revólver, um Rossi calibre 38, até as 18h50. A professora foi uma das que mais sofreram. Ela foi puxada pelos cabelos e torturada com o cano da arma em sua boca. As cenas de terror eram transmitidas ao vivo pela televisão para o Brasil e para o mundo, através da CNN.
A menos de 200 metros dali, no Jockey Club do Rio, Alexandre interrompia seu trabalho para acompanhar o martírio das vítimas pela tevê. Teve a ingrata surpresa de descobrir a mulher entre os reféns. O cavalariço não desgrudou os olhos da tela até o desfecho daquela saga, quando uma ação desastrada da polícia fez com que Geisa fosse alvejada por quatro tiros. 
Alexandre e Geisa trocaram Fortaleza pelo Rio há um ano e meio. Os dois namoravam quando Alexandre decidiu tentar a sorte no Rio, no início de 1998. O casal morava numa casa de dois cômodos na favela da Rocinha, onde Geisa conseguira o emprego no Projeto Curumim, há oito meses. No início, ela ajudava a cuidar das 150 crianças de 6 a 14 anos. Com o tempo, aperfeiçoou-se na confecção de cestas de papel e miçangas e passou a dar aulas de artesanato em turmas cada vez mais concorridas. “As aulas dela enchiam a sala”, conta Vera Lúcia Caldeira, 47, que também trabalha no Projeto Curumim. “Com seu jeito tímido, de quem veio do interior, era muito carinhosa com as crianças.”
Mergulhado em denúncias contra a polícia que comanda desde o início do ano, Garotinho agiu rápido. Exonerou o comandante da Polícia Militar, o coronel Sérgio da Cruz, e afastou o soldado Marcelo Oliveira dos Santos, cuja pontaria errática transformou em vilania sua candidatura a herói. A partir de agora, exercerá apenas funções burocráticas na corporação. Outros cinco militares do Bope - o capitão Ricardo de Souza Soares e os soldados Luiz Antônio de Lima Silva, Márcio de Araújo David, Paulo Roberto Alves Monteiro e Flávio Dias -, que entraram com Sandro no camburão, foram presos e serão indiciados por homicídio. Sandro tinha quatro passagens por delegacias do Rio e duas condenações, por tentativa de furto e roubo qualificado, que somavam uma pena de cinco anos e seis meses de prisão. Uma organização não-governamental carioca, o Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, sustenta que o bandido era também uma vítima. Ele seria um dos sobreviventes da chacina da Candelária, ocorrida em 1993.