quinta-feira, 30 de abril de 2015

PERNOITE NO TRIBUNAL

O julgamento já tinha começado quando o repórter chegou ao Tribunal do Júri pra render o setorista do Judiciário, num tempo em que os jornais tinham não só o setorista do Fórum como gente suficiente pra mandar alguém render ele e garantir a cobertura in loco das quase vinte horas de julgamento de um caso emblemático, de grande repercussão na época. E o réu nem era o primeiro do caso a ser julgado, mas o segundo. Outro ex-policial já tinha sido condenado semanas antes, o que não mudou em nada a determinação da chefia, de mandar ficar lá o julgamento inteiro, inclusive as quatro horas de espera pela sentença, das quatro e tanto da madrugada às nove da manhã, período em que o repórter até vagou um pouco por corredores vazios do Fórum só pra contemplar, sem se distanciar muito da escadaria da entrada, o Centro da cidade completamente vazio, às escuras, tendo apenas a extensão da Rua Primeiro de Março a separá-lo do local onde, também de madrugada, foram cometidos os crimes relatados na matéria abaixo.
 
Jornal do Brasil, edição de sexta-feira, 29 de novembro de 1996


"A hediondez dos fatos imputados ao réu, norteados pelo infamante propósito de exterminar menores socialmente marginalizados, e a forma cruel como foram eles executados, quando as vítimas indefesas foram colocadas diante de uma expectativa inapelável da morte naquela madrugada de terror e barbárie, conduzem, inevitavelmente, ao mais profundo juízo de reprovabilidade".

Depois de 19 horas de julgamento no Segundo Tribunal do Júri, o ex-soldado da Polícia Militar Nelson Cunha, réu confesso da chacina de 23 de julho de 1993 na Candelária, foi condenado a 261 anos de prisão pelo assassinato de oito meninos de rua e tentativa de homicídio contra Vágner dos Santos, principal sobrevivente e testemunha do massacre. Após cerca de quatro horas de reunião na sala secreta, os sete jurados decidiram não acatar a tese do advogado de defesa, Luís Carlos Silva Neto, de que o ex-PM teria sido coagido a participar da chacina. Silva Neto só conseguiu absolver Cunha de uma das acusações, a de tentativa de homicídio contra outros cinco meninos que sobreviveram à tragédia. Por ter sido condenado a mais de 20 anos de prisão, o réu será submetido a novo júri, ainda sem data definida.
Durante o julgamento, que começou às 14h30 de quarta-feira e só terminou às 9h30 de ontem, o promotor Maurício Assayag conseguiu convencer os jurados de que Nélson Cunha participou conscientemente da chacina, juntamente com os ex-PMs Marco Aurélio Alcântara, Marcos Vinícios Borges Emanuel e Maurício da Conceição, o Sexta-Feira Treze, morto em abril de 1994. Ao confessar o crime, no ano passado, Cunha disse que acompanhou o grupo liderado por Sexta-Feira Treze pensando que iria atrás de dois assaltantes que teriam invadido sua casa um dia antes da chacina. O réu chegou a afirmar que foi coagido a participar do massacre.
Defesa e promotoria só concordaram em um ponto: a inocência do tenente PM Marcelo Cortes, do soldado Cláudio Luís Andrade e do serralheiro Jurandir Gomes de França, os três primeiros acusados pela chacina, que ficaram presos até a confissão de Cunha e serão julgados no próximo dia 9. "O réu só confessou o crime um ano depois da morte de Sexta-Feira Treze, quando já havia sido expedido mandado de prisão contra ele. Até confessar, Nélson Cunha deixou que três inocentes ficassem presos sem fazer nada", disse Assayag no tribunal.
Os dois lados também mostraram sintonia ao praticamente ignorar o depoimento de Vágner dos Santos, que novamente não reconheceu Cunha como um dos participantes da chacina. A testemunha acusou Marcelo Cortes e o soldado PM Carlos Jorge Liafa, sequer arrolado como acusado no processo, de o terem seqüestrado na Praça Mauá, para levá-lo, junto com dois menores, ao Museu de Arte Moderna, onde os três foram baleados pelo bando. Tanto o promotor quanto o advogado de defesa sustentaram a confissão do réu, aceitando a tese de que Cunha baleou Vágner acidentalmente dentro do Chevette de Sexta-Feira Treze.
O acusado recebeu a pena máxima (30 anos) por sua participação em cada um dos oito homicídios e foi condenado a 18 anos de prisão pela tentativa de assassinar Vágner. Somando os agravantes pelo fato de três vítimas (Paulo José da Silva, Paulo Roberto de Oliveira - Pimpolho - e Ânderson de Oliveira Pereira - Careca) terem menos de 14 anos, e levando em consideração um fator atenuante, o de que Cunha confessou o crime, o ex-PM foi condenado a 27 anos por cinco homicídios, e a 36 anos por cada assassinato dos menores de 14 anos. Com os 18 anos pela tentativa de matar Vágner, a pena total foi de 261 anos de prisão.

Em sua sentença, o juiz José Geraldo Antônio chegou a afirmar que "a hediondez dos fatos imputados ao réu, norteados pelo infamante propósito de exterminar menores socialmente marginalizados, e a forma cruel como foram eles executados, quando as vítimas indefesas foram colocadas diante de uma expectativa inapelável da morte naquela madrugada de terror e barbárie, conduzem, inevitavelmente, ao mais profundo juízo de reprovabilidade".
Apesar da sentença, Silva Neto comemorou a absolvição de Cunha nas acusações das cinco tentativas de homicídio contra os sobreviventes Marcelo Gomes da Silva Bento e os menores Rogério da Silva, Sérgio Dias Gomes, Jacaré e Barão. "Vencemos 40% da batalha e a guerra continua. O juiz reconheceu a atenuante de o réu ter confessado, mas não pôde fugir ao parâmetro de pena imposto no julgamento do primeiro réu (Emanuel). Mas estamos confiantes em absolver meu cliente no próximo julgamento", disse o advogado, garantindo que vai apelar em separado da condenação pela tentativa de homicídio contra Vágner.
Os promotores Maurício Assayag e José Muiños Piñeiro Filho não quiseram comentar o resultado do julgamento. Não houve unanimidade em nenhuma das decisões dos jurados.