terça-feira, 2 de junho de 2015

ESPERA

A modelo Fernanda Vogel tinha 20 anos e já começava a se destacar em capas de revistas e campanhas publicitárias quando morreu na queda do helicóptero em que viajava com o namorado João Paulo Diniz, do Grupo Pão de Açúcar. Fernanda, João Paulo, o piloto e o co-piloto da aeronave sobreviveram à queda no mar de Maresias, litoral paulista. Os quatro pularam no mar revolto, debaixo de chuva forte, pra tentar nadar até as luzinhas da praia vistas de muito, muito longe. João Paulo e o co-piloto, Luiz Roberto de Araújo Cintra, conseguiram. Fernanda e o piloto, Ronaldo Jorge Ribeiro, não. A entrevista com a mãe da Fernanda, que originou a matéria abaixo, foi feita pouco mais de dois anos depois do acidente. Os trechos em itálico e negrito faziam parte, na edição original da revista, de um box, à parte da matéria principal.

Revista Istoé Gente, edição 219, de 13 de outubro de 2003

“Minha irmã se autoflagelava, enfiando as unhas dos indicadores nos polegares. Ficava o tempo todo no sofá, em posição fetal e agarrada a um bicho de pelúcia da Fernanda”.


Durante o ano de 2001, o programa de televisão predileto da comissária de bordo Myrian Vogel, 47 anos, era a novela Porto dos Milagres. Sua personagem preferida na trama era a engraçada Amapola, vivida por Zezé Polessa. Se estivesse em casa, não perdia por nada as cenas com a atriz, mas na sexta-feira 27 de julho foi diferente. Diante da tevê, na hora da novela e com Zezé em cena, Myrian foi tomada por uma angústia que a fez mudar de canal. Em outra emissora, um plantão jornalístico informava sobre a queda do helicóptero em que a modelo Fernanda Vogel, sua filha, viajava ao lado do namorado João Paulo Diniz, herdeiro do Grupo Pão de Açúcar. “Antes de ouvir a notícia sabia que era o helicóptero da minha filha”, conta a comissária, no livro Fernanda Vogel na Passarela da Vida, da jornalista Tammy Luciano, que será lançado na terça-feira 21, no Rio de Janeiro. O episódio é uma das muitas coincidências intrigantes que permeiam o acidente e a morte, aos 20 anos, da modelo Fernanda Vogel.

Na madrugada do sábado 28 de julho de 2001, para o domingo 29, um amigo de Fernanda teve um sonho, no qual a modelo aparecia, envolta numa luz, pedindo para que ele tranqüilizasse sua família, e avisando que seu corpo apareceria no dia 3 de agosto, o que acabou acontecendo.

Entre mensagens da modelo, transmitidas por freqüentadores de centros espíritas após sua morte, e os eventos que pareciam anunciar a tragédia, Myrian juntou histórias que a ajudaram não só a colaborar com o livro de Tammy, como a se recuperar da perda da filha na queda do helicóptero. O casal iria comemorar os dois meses de namoro na casa da família Diniz em Maresias, litoral paulista, mas o mau tempo derrubou a aeronave. 
Na época, João Paulo chegou a ser acusado de induzir o piloto a voar apesar da má condição meteorológica. A suspeita é descartada pela própria Myrian. “O João foi uma vítima também. Ele estava no helicóptero e nunca se colocaria em risco”, diz a comissária, que nega ter havido qualquer desentendimento entre as famílias Vogel e Diniz. “Falo sempre com o João. O que existe é uma tragédia em comum, nenhuma divergência”, afirma.
A primeira conseqüência do choque pela morte da filha foi ficar sem comer. Nos três primeiros dias após o início das buscas pelo corpo de Fernanda, Myrian ingeriu somente café, além dos muitos cigarros que fumou. “Achava que se eu conseguisse ficar aquele tempo sem comer, minha filha também conseguiria, e estaria viva quando fosse encontrada.” A partir do terceiro dia, a família a convenceu a tomar sorvete e sucos, já que a lembrança de Fernanda no mar a impedia de ingerir qualquer alimento salgado. Mesmo assim, ela teve de tomar soro. “Dávamos de colher, na boca dela”, conta a irmã caçula de Myrian, Bebel Vogel.
Nas três primeiras semanas após o desaparecimento da filha, a comissária continuou tomando soro para suprir a alimentação insuficiente. Perdeu oito quilos em menos de um mês. “Minha irmã se autoflagelava, enfiando as unhas dos indicadores nos polegares. Ficava o tempo todo no sofá, em posição fetal e agarrada a um bicho de pelúcia da Fernanda”, lembra Bebel.

Um mês antes do acidente, João Paulo Diniz estava com Fernanda no Carlton Arts, em São Paulo, quando foi abordado por um garçom. Ele disse a João Paulo que o empresário estava muito afastado da religião e o aconselhou a ler um determinado texto da Bíblia. Em casa, o casal leu o trecho onde estava escrito que viria a tormenta, quatro pessoas estariam no moinho, duas seriam levadas e duas seriam poupadas. Sem dar muita atenção na ocasião, João Paulo voltou a ler o trecho após o acidente. Só aí identificou as pás do moinho como a hélice do helicóptero, a tormenta como a chuva que causou a queda da aeronave, e as duas pessoas levadas como Fernanda e o piloto Ronaldo Jorge Ribeiro, também morto no acidente, enquanto João Paulo e o co-piloto Luiz Roberto de Araújo Cintra sobreviveram.

Prova de que não há problemas no relacionamento da mãe de Fernanda com o herdeiro do grupo Pão de Açúcar será o lançamento do livro em São Paulo, marcado para o dia 4 de novembro, na Revistaria D’Amauri, novo empreendimento de João Paulo, com inauguração prevista para os próximos dias. Para o empresário, o apoio de Myrian foi fundamental nos primeiros momentos após o acidente. “Ela me abraçou logo que me viu, ainda em Maresias. Vinda da mãe da Fernanda, a ajuda foi a melhor que eu poderia ter recebido naquele momento”, disse João Paulo.
Pela morte de sua filha, Myrian recebeu o montante coberto pelo seguro do helicóptero. Ela prefere não revelar os valores, mas garante que, apesar das notícias veiculadas nos primeiros meses após a tragédia, não houve qualquer disputa judicial por uma indenização maior. “Preferi não desmentir o que saía nos jornais porque não estava em condições. Se fizesse isso ia mexer ainda mais com o assunto que me machucava tanto”, lembra a comissária.
Profissionalmente, a primeira conseqüência da tragédia foi a licença da função que exerceu durante 23 anos. Myrian não voa desde a morte da filha e deve tirar o seguro pela perda definitiva da carteira de aeronauta. “Cada vôo é uma tripulação, são amigos diferentes. A emoção é complicada e como chefe de equipe tenho que ter o vôo na mão. Emocionalmente instável, não posso assumir a responsabilidade”, explica. Também mudou de endereço. Deixou o sítio de Itaboraí, no interior do Rio de Janeiro, onde morou desde que Fernanda tinha 12 anos, e se instalou num apartamento na zona sul carioca. “Lá tinha a distância da família, as recordações e os problemas de cidade pequena. Em qualquer supermercado que entrava tinha um silêncio, depois um falatório baixo e as cabeças se virando na minha direção. Era complicado”, diz.

Na bolsa de Fernanda foi encontrada uma folha de papel cujas bordas estavam destruídas, mas o texto no interior permanecia intacto. O título do texto era “Sobrevivência”.

Quando começou a se recuperar, Myrian adquiriu o hábito de navegar pela internet em busca de notícias antigas da filha, numa forma de reviver os melhores momentos da modelo e de suprir a própria carência. Foi assim que encontrou, em março do ano passado, um texto sobre Fernanda que lhe chamou atenção. Da correspondência com a autora, Tammy Luciano, surgiu a idéia do livro, do qual Myrian participou ativamente. “Isso me deu forças para enfrentar minha perda”, conta a mãe da modelo. Apesar da recobrar o ânimo, só um ano após começar a trabalhar no livro conseguiu interromper um hábito adquirido com a morte da filha: o de ligar para o celular de Fernanda para escutar o recado da caixa postal que permanecia gravado com a voz da modelo. “Era absurdo, mas eu tinha a necessidade de ouvir a voz dela”, justifica.
Outro alento veio das oito mensagens recebidas de dois centros espíritas no Rio. Em todas elas, algumas enviadas por uma professora de Fernanda na época do primário, a modelo dizia estar bem e conformada com seu destino. A comissária tem absoluta certeza da veracidade de pelo menos um dos recados, em que a filha se refere às violetas e margaridas plantadas pela mãe no peitoril da janela de seu apartamento. “Ninguém do centro tinha ido à minha casa”, afirma Myrian.

Também na bolsa de Fernanda encontrada no helicóptero, seis meses após o acidente, estava a agenda dela. Um modelo simples, com as folhas presas numa encadernação normal, e não soltas como num fichário, a agenda só ia até o fim do mês de julho de 2001. Depois dessa data, não tinha mais nada, nem qualquer sinal de que folhas tivessem sido arrancadas.

Católica, a mãe de Fernanda diz não ter coragem de presenciar as manifestações nos centros, mas as considera reconfortantes. “É um remédio para a alma. Um alívio para outros pais que perderam seus filhos, porque mostra que existe a continuidade”, afirma a comissária. É no livro, portanto, que Myrian espera passar a idéia de que a filha está bem. E para escrever a história de Fernanda, contou com a ajuda dos amigos, colegas e das pessoas mais importantes da vida da modelo.
Uma delas, o empresário Ike Cruz, que foi casado com Fernanda, é quase um filho para a ex-sogra. Desde a morte da ex-mulher, manteve o hábito de passar todo Natal na casa da família Vogel. “Me ajuda a superar a perda, saber que fiz, e ainda faço, parte de uma família. A Fernanda foi importante pra mim no campo pessoal e profissional. Saí da casa dos meus pais pra morar com ela. Ver a felicidade da Myrian hoje é prioridade pra mim”, disse Ike. 

Myrian recebeu de Ike dois canudos idênticos com papéis de Fernanda. Confundiu-se e abriu o mesmo canudo duas vezes, achando que tinha aberto os dois, e viu apenas fotos de uma campanha da filha. Dias depois, procurava lembranças da filha para incluir no livro quando um dos canudos caiu de um móvel aos seus pés. Dentro dele estava um desenho feito por Fernanda em que ela se auto-retratava como uma sereia, numa noite de chuva no mar. A data do desenho era de 27/12/00, exatamente sete meses antes do acidente.

Separada desde janeiro do segundo marido, Jorge, pai de seu filho caçula Eduardo, 14, e que cuidou de Fernanda desde os 6 anos, Myrian ainda faz duas sessões semanais de terapia e toma remédios para conviver com a dor da perda da filha. Ela já decidiu que parte da renda do livro será destinada a uma instituição de caridade. É uma das maneiras que encontrou para pôr em prática seus novos objetivos de vida. “Quero agora transformar a dor em amor. Homenagear a Fernanda e fazer o bem.”