quinta-feira, 3 de setembro de 2015

1.650 METROS QUADRADOS

A essa altura, depois de tanto tempo, a vida da personagem aí de baixo já deve ter se ajeitado, mas na época da matéria ela vivia com o marido, três filhas e uma enteada numa cobertura de 1.650 metros quadrados, e a renda da família era inferior, por exemplo, ao salário do repórter que adorava o quarto-e-sala onde morava, de quarenta ou cinquenta, no máximo sessenta metros quadrados. Daria pra jogar futebol na parte sem móveis da sala, três na linha e um no gol de cada lado, tranquilamente. Foram mais de vinte, talvez trinta passos do hall até a parte habitada do vasto salão com piso de palácio, um canto apenas, com a clássica formação dos apartamentos apertados, a mesa de centro no meio envolta por dois sofás em L, num dos quais a personagem contava as contingências da vida que tinham levado àquela situação. Contava e dava mais uma mostra, também, do poder de adaptação, da capacidade de superar qualquer obstáculo da vida dessa brava gente da classe média brasileira.

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 136, de 11 de março de 2002

“Em dia de faxina, a gente põe um CD da Aretha Franklin, faz um suquinho, bota um chinelinho e vamos trabalhar, que é bom e emagrece”.


A dona de casa Jacqueline Carr Soares, 40 anos, mora numa cobertura de 1.650 metros quadrados, de frente para o mar da Barra da Tijuca, um dos espaços mais nobres do Rio de Janeiro, mas não tem vida fácil. Para cuidar do apartamento, que chegou a ser avaliado em US$ 5,5 milhões e foi considerado o mais caro do Brasil, ela se desdobra com um orçamento mensal de cerca de R$ 2 mil, salário que o marido, Vanivaldo Soares, 40, recebe como detetive da Polícia Civil. O imóvel foi o que restou da fortuna de seu primeiro marido, o empresário José Carlos Nogueira Diniz Filho, assassinado no dia 26 de novembro de 1989. Enquanto aguarda que a Justiça venda a cobertura onde vive e lhe entregue os 50% da herança que lhe cabem em testamento – a outra metade vai para as três filhas que teve com Diniz –, Jacqueline prepara sua candidatura a deputada estadual e finaliza uma autobiografia. Entre as verdades que promete contar no livro, uma trata de um fato até então desconhecido: a bissexualidade de José Carlos Diniz Filho. “Guardei isso por muitos anos, mas o motivo mais forte da minha separação foi a ambigüidade sexual do Diniz. Como dizem, ele tinha desvios.”
Acusada de tramar a morte do ex-marido, Jacqueline foi absolvida em novembro de 1996. “Fiz o livro para falar a verdade. Tudo o que passei e como sou realmente”, diz ela. “Nos últimos 12 anos, foram criadas várias personagens para a Jacqueline, e todo mundo criava o que queria.” O empresário foi morto a tiros quando dirigia seu carro na Barra da Tijuca. Ele estava acompanhado de Lucimar Ferreira, sua namorada na época, que escapou ilesa. Dois anos depois, a Justiça condenou pelo crime o informante da polícia Cláudio Silva, o pistoleiro Manoel de Oliveira, o Manoelzinho, e Paulo Sérgio Mollo da Fonseca, que foi amante de Jacqueline. Até hoje, a ex-mulher de Diniz sofre com o preconceito por ter sido considerada suspeita do crime: “O resto da vida serei conhecida como a Jacqueline do Caso Diniz. Não adianta, marcou”.
Criada numa família de classe média, a menina que estudou no tradicional Colégio Sion, no Rio, e fez cursos nos Estados Unidos e em Paris casou-se cedo, aos 19 anos, com José Carlos Diniz Filho. No início, o casal morou no 13º andar do Edifício Vieira Souto, no prestigiado condomínio Atlântico Sul, na Barra da Tijuca. Em 1983, um ano depois do nascimento das gêmeas Lilás e Yasmin, se mudaram para a cobertura do mesmo prédio, ocupada até hoje por Jacqueline. Herdeiro de 200 imóveis na Barra, Diniz não economizava nas festas que reuniam presidentes da República, como José Sarney. Esse e outros hábitos do empresário, como o de presentear amigos e amantes com apartamentos, acabaram dilapidando o patrimônio deixado pelo construtor José Carlos Diniz.
Hoje, os salões que chegaram a ser decorados por 80 tapetes persas e quadros de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Castagneto estão praticamente vazios. Na sala principal, de 300 metros quadrados, os únicos móveis são dois sofás, quatro cadeiras e uma mesa de jantar com oito lugares, além de uma mesa de centro e duas cômodas. Nas paredes, as obras de pintores famosos foram substituídas por telas da própria Jacqueline, que aderiu à pintura para combater o estresse acumulado nos anos de processo criminal. O ar-condicionado central funciona, mas já vivia desligado muito antes do racionamento. Pelo menos 70% da área total do apartamento estão fechados.
Sem empregados, a dona de casa que tinha à disposição 15 funcionários quando se mudou para a cobertura, só tem a ajuda das filhas – além das gêmeas, Shalimar, 16, e Victória, 11, sua filha com Vanivaldo – e do marido para a manutenção da casa. “Em dia de faxina, a gente põe um CD da Aretha Franklin, faz um suquinho, bota um chinelinho e vamos trabalhar, que é bom e emagrece”, conta ela, que por quatro anos, entre 1994 e 1998, só andava de ônibus. Hoje, já pega táxi e usa o carro do marido.