quinta-feira, 31 de março de 2016

ESCRITOR PROFISSIONAL

Não, a data aí em cima não tem nada a ver com o golpe militar de 1964, muito menos com o golpe moderno, republicano. em curso atualmente, ou tem, é, deve ter, porque o cara deu recentemente declarações se bandeando pro lado do cunha, do temer, do aécio, da globo, da folha, do estadão, da veja et caterva... Mas o cara escreveu Pilatos, escreveu também Pessach: a Travessia, pra citar dois romances dos quais dá pra falar, e elogiar, além do Informação ao Crucificado. E o Pessach... ele deu pessoalmente, com dedicatória e tudo, na primeira entrevista, na casa dele. A entrevista abaixo foi a segunda, bem mais longa, na sala comercial do escritório dele.

Revista Istoé Gente, edição 197, de 12 de maio de 2003

"Não sei vender terreno, não nasci rico, então tenho que trabalhar. Tenho uma estrutura profissional e atuo em vários departamentos, surgem encomendas, trabalho na imprensa, mas minha praia é mesmo a literatura". 

Poucos escritores no Brasil podem apresentar uma obra tão vasta quanto a do carioca Carlos Heitor Cony. Desde 1956, quando publicou seu primeiro livro, O Ventre, são mais 63 obras, entre romances, reportagens, crônicas, contos, infanto-juvenis e adaptações de clássicos da literatura, além de participação em coletâneas com outros autores. Aos 77 anos, ele assina uma coluna no jornal Folha de S. Paulo, tem pronto um romance para ser lançado e prepara uma reportagem com suspeitas sobre as mortes do ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda e dos presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000, o autor confessa ter perdido a esperança na política que o fez ser preso seis vezes durante a ditadura militar. Ele critica o presidente Lula, a quem compara ao líder comunista Luís Carlos Prestes. “Se há uma pessoa que idolatro é Prestes, mas ele nunca foi tão imbecil ao atrelar-se à União Soviética. Lula também tem uma bela biografia, mas está embarcando em canoas erradas”. Cony passou sete anos estudando para ser padre. Abandonou a vocação e casou-se seis vezes, a primeira em 1949 com Maria Zélia Machado, com quem teve Regina Celi, 52 anos, e Maria Verônica, 49. Também é pai de André Heitor, 30, da união com Eleonora Ramos.

Como o senhor consegue manter a produção de início de carreira?
Primeiro porque escrever é o meu ganha-pão. Não sei vender terreno, não nasci rico, então tenho que trabalhar. Tenho uma estrutura profissional e atuo em vários departamentos, surgem encomendas, trabalho na imprensa, mas minha praia é mesmo a literatura. Nessa não preciso de mais nada, só de mim e um computador.

E o que tem escrito ultimamente?
Estou escrevendo até mais do que deveria. Escrevi há dois anos o romance A Tarde da Sua Ausência, que está para sair. Também escrevo um romance-reportagem sobre as mortes do Juscelino, do Lacerda e do Jango no contexto da Guerra Fria e da abertura política no Brasil. Faço em parceria com a jornalista Ana Lee e o título provisório é O Beijo da Morte. É um livro polêmico, levanto todas as coordenadas de três mortes estranhas, que aconteceram num contexto internacional onde houve outras mortes.


Acredita que os três foram assassinados?
A conclusão final é que as provas são mais fracas que os indícios. Os indícios apontam para um atentado político na morte dos três. Como disse o Miguel Arraes (ex-governador de Pernambuco) numa comissão da Câmara dos Deputados para apurar a morte do João Goulart, “minha opinião é que os três foram assassinados. Se os fatos não provam isso, azar dos fatos”. 


Por quê?
O livro do Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada, inicia-se com o diálogo entre o (ministro da Guerra) Silvio Frota e o então presidente Ernesto Geisel, em 1977, mostrando que a linha dura queria derrubar o Geisel e impedir a abertura. Depois, em 1981, teve a bomba no Riocentro. Havia na linha dura o temor da abertura, e nesses casos o programa radical manda eliminar, como fizeram os bolchevistas na Rússia, matando toda a família Romanov para que ninguém aparecesse pretendendo o trono.


Há quanto tempo pesquisa o assunto?
Comecei a escrever sobre isso em 1977, quando o Lacerda morreu. A combinação das três mortes fiz em 1982, e acho que na grande imprensa fui o primeiro a levantar a questão. Mas na época não quis me aprofundar porque não tinha elementos e porque não tinha saco para parar tudo e fazer essa pesquisa. Passei 23 anos sem fazer ficção, que é a minha praia, quando me dediquei mais ao meu trabalho na revista e na tevê Manchete. Por que não dar uma banana para a reportagem, que não é minha especialidade?

Por que retomou o assunto?
Trabalhei junto com a Ana Lee em livros infanto-juvenis e ela descobriu isso mexendo em papéis meus. Pediu licença para continuar e eu dei. Ao todo, foi um ano de pesquisas em que a Ana viajou bastante e entrevistou muita gente. Tivemos a colaboração de parentes do Lacerda, do Jango e dos principais amigos do JK.

Como foi sua experiência com as novelas de televisão?
Fiz três projetos como diretor de teledramaturgia da Rede Manchete. Na Marquesa de Santos, fiz os primeiros capítulos, mas não tinha saco para aquilo. Escrever todos os dias não sei quantas páginas de “oh, eu te amo!”, “não, não faça isso!”, “recua!” (risos). Nada contra quem escreve, mas não tenho paciência. Passei os capítulos para o Wilson Aguiar e ele continuou.

E os outros dois projetos?
Fiz o projeto de Dona Beija e depois o Adolfo Bloch, dono da Manchete, deu a idéia e o título de Kananga do Japão, mas ninguém sabia o que era Kananga. Só a Dercy Gonçalves se lembrou que era o perfume usado pelas prostitutas cariocas na Praça Onze. A novela contou a história do Brasil de 1929 a 1939 através de uma gafieira. Foi um sucesso e o ponto alto talvez tenha sido a entrega de Olga Prestes (mulher de Luís Carlos Prestes) aos nazistas por Getúlio Vargas. O próprio Prestes me telefonou várias vezes para dar sugestões.


Acompanha novelas hoje?
Não tenho paciência. Não assisti nem às novelas em que trabalhei.


O que acha da adaptação de obras literárias para a televisão e o cinema?
Do ponto de vista do mercado é muito bom, mas de resto não acrescenta em nada. Estão aí os exemplos de obras que foram desvirtuadas, como a Gabriela do Jorge Amado. Paulo Coelho também teve um livro, Brida, que virou novela na Manchete e não foi bem.


Gostaria que uma obra sua virasse novela?
Não. Uma época o pessoal do cinema me pedia os direitos e eu dava. Um filme, Antes, o Verão, foi mais ou menos, o outro – O Homem em Sua Jaula, baseado no romance Matéria de Memória – foi um desastre, mudou tudo. Existem três roteiros para cinema de um romance meu, Pilatos, preparados por três grupos, inclusive uma peça de teatro, mas fico meio assim porque acho que se quisesse fazer teatro ou cinema, eu faria. Ninguém me proibiu. Como ninguém me obrigou a fazer literatura, fiz porque quis. E não faço cinema e teatro porque não gosto.


Não venderia mais os direitos de uma obra?
Se fizer isso vou botar o dinheiro no banco e não vou querer nem saber do que será feito da minha obra. Há pouco tempo o (cineasta) Ruy Guerra quis fazer o Quase Memória, dizendo que a história lembrava muito o pai dele. Vendi pra ele, mas sugeri que ele fizesse um roteiro sobre o pai dele, e não sobre a história do meu pai.


Destaca algum novo valor na literatura?
Depois de certo ponto passei a me dedicar mais à releitura do que à leitura, sem desprezo pelos novos escritores. Hoje são raras as vezes em que leio um livro de autor novo, mesmo internacional. Não tenho essa curiosidade. Prefiro visitar meus ídolos freqüentemente, fico no meu Machado de Assis, meu Eça de Queiróz, meu Flaubert. Se surgir hoje um novo Shakespeare, ou um novo Cervantes, azar o meu.

Por que ficou sete anos num seminário?
Não só pensei em ser padre mesmo, como acho que dobrei uma esquina errada quando saí do seminário. Não tinha naquele tempo os elementos que tenho hoje para ter essa consciência, fiz porque achava certo. Mas hoje vejo que minha vida seria muito mais autêntica se continuasse naquele caminho, seria um homem indubitavelmente melhor do que sou.


Acha que tem vocação religiosa?
Não sou religioso no sentido tradicional da palavra, mas acho que tinha vocação no sentido de poder ser contemplativo, ter tempo para estudar, pensar. Vi um filme uma vez em que havia um convento no alto de uma montanha no Tibete, tão isolado que os padres eram içados numa rede. Me daria bem num lugar desses. N
ão fazia parte do meu plano de vida ser escritor. Tenho aquela história de achar que devo ter feito alguma besteira quando me elogiam muito.

Por que saiu do seminário?
Queria ter liberdade para pensar e, pelo menos na igreja daquele tempo, não havia condições para isso. Não me conformava com a censura que faziam a certos livros, considerados não apropriados, a obra de Dostoievski, por exemplo. Foi por aí. Não foi a disciplina, gostava dos horários, do sino. Até hoje não sei a hora direito e chego atrasado em compromissos porque no seminário não havia esse problema, tinha o sino marcando a hora.


Como avalia o governo Lula?
Achei as alianças que ele fez eleitorais. A desculpa do PT era da elegibilidade, mas Lula foi eleito, e agora a desculpa é da governabilidade. O governo dele está muito pouco diferenciado do de Fernando Henrique. Mas tenho de acentuar o indivíduo Lula, que tem realmente uma biografia belíssima, conseguiu chegar aonde está com a palavra, mas está embarcando em canoas erradas desde a campanha eleitoral.


Tem esperança no governo?
Nenhuma, não acredito na aventura humana. Acredito que o homem foi condenado a uma miséria. A única coisa que posso fazer é me salvar, na base do salve-se quem puder, e procuro me salvar como posso. Protestei contra a ditadura, fui preso. Gostaria de ser salvador do povo, mas isso eu deixo para o Lula, para o Bush ou para outros bem-intencionados. Não estava no clima de esperança quando o Lula entrou, mas respeito a personalidade dele. Dou 10 para a individualidade do Lula e zero para a política dele.