sábado, 30 de abril de 2016

VERISSIMO PELO COMPUTADOR

Foi por e-mail, ótima ferramenta para os tímidos, que a entrevista foi feita pra matéria abaixo, premonitória na época e hoje, nesses tempos sombrios de mais um golpe de estado neste nosso Brasil varonil, quase uma piada.

Revista Istoé Gente, edição 171, de 11 de novembro de 2002

"Escrevi que todos os presidentes do Brasil até hoje foram, de um jeito ou de outro, da prole dos Bragança e que o Lula é o primeiro Silva autêntico a chegar à Presidência. E isso é, historicamente, simbólico pra burro. Ou simbolicamente histórico pra burro".

Considerado um dos maiores cronistas do Brasil, o escritor Luis Fernando Verissimo, 65 anos, foi uma das poucas vozes de oposição nos oito anos da era FHC e nunca escondeu de ninguém sua simpatia por Lula e pelo PT. Apesar disso, sempre tentou evitar o que define como proselitismo ou o engajamento acrítico nas crônicas que escreve em jornais como O GloboZero Hora e O Estado de S. Paulo. “É aquela história, não importa que o juiz torça para um dos times, desde que dê todos os pênaltis. Mas também não há nada de errado em mostrar para que lado torce.”
Casado com Lúcia Helena, 58, e pai de Fernanda, 37, Mariana, 35, e Pedro, 32, o escritor gaúcho, filho de Érico Verissimo, reage com modéstia ao responder qual o segredo para ser ao mesmo tempo sucesso de crítica e campeão de vendas. São 9 títulos lançados pela editora Objetiva e 614 mil livros vendidos. “Não sei se agrado aos críticos. As boas vendas se devem ao fato de serem livros de textos curtos e bem-humorados e estarem sendo bem lançados pela Objetiva. Acredito que o fato de ter o nome diariamente nos jornais também ajuda”, diz. Uma coisa, ao menos, é certa. Mesmo com todo o sucesso, Verissimo dificilmente será visto disputando uma vaga na Academia Brasileira de Letras. “Nada contra quem está lá, mas não é a minha praia”, afirma.

Qual sua expectativa em relação ao governo do PT?
Votei no Lula desde a primeira tentativa. A expectativa em relação ao seu governo é de, digamos assim, otimismo cauteloso. Não vai ser fácil. Se há uma coisa que nós conhecemos na América Latina é a dificuldade que os governos populares têm de sobreviver à reação. Mas os tempos são outros, talvez a expectativa possa ser outra.

A eleição de Lula emocionou muita gente. O senhor foi uma dessas pessoas?
Sim, porque há um componente emocional forte na vitória dele e do PT, depois de tanta luta, e pelo que eles representam, pela inconformidade e pelas aspirações de justiça que representam. É importante que a emoção não afogue o ceticismo e o senso crítico, sem os quais a independência intelectual é impossível. O tipo de mudança que a gente quer, para uma maior valorização do humano e do solidário, começa pela emoção, pela empatia emocionada. Nesse caso, o apelo sentimental, e até melodramático, da trajetória do Lula é um fator politicamente positivo.

Acredita que vivemos um momento histórico? 
Não só para o Brasil. A eleição se deu numa óbvia crise de um sistema internacional hegemônico e homogêneo que começa a se questionar. Mesmo que não aconteça nada de muito diferente aqui dentro, só a eleição do Lula já terá sido um dado importante para o mercado computar e interpretar. Escrevi que todos os presidentes do Brasil até hoje foram, de um jeito ou de outro, da prole dos Bragança e que o Lula é o primeiro Silva autêntico a chegar à Presidência. E isso é, historicamente, simbólico pra burro. Ou simbolicamente histórico pra burro.

Na sua opinião, ele poderá ser um grande estadista?
Ele tem história, tem assessoria, tem apoio popular, tem, eu acho, capacidade, só não se sabe se terá condições para ser um grande presidente. O tal “espaço para manobras” entre os compromissos e as armadilhas que herdará. Agora, será uma figura notável no cenário internacional, justamente por ser o contrário do Fernando Henrique, que era notável por ter o porte de um líder mundial sendo um líder periférico. Lula talvez tenha, paradoxalmente, mais projeção internacional do que o Fernando Henrique. Estadista não sei, mas que Lula será uma celebridade não tenho dúvida.


Como classificaria o governo de Fernando Henrique? 
Acho que a política econômica estava errada e que ele não aproveitou o crédito pessoal e político que tinha para fazer mais. Paradoxalmente, veio para acabar com a Era Vargas, mas foi muito getulista no estilo de governar, e às vezes contemporizou demais. Mas, no saldo, será lembrado como um homem democrático e tolerante que nos orgulhou lá fora, e que está garantindo, com sua postura, o que antes era considerado impensável, a posse do Lula na Presidência. Eu sempre disse que o Fernando Henrique era o melhor presidente que o Brasil já teve, só estava fazendo um mau governo.


Pensa em escrever mais para a tevê, como na adaptação que fez do Comédias da Vida Privada? 
Tenho um contrato com a Globo desde os tempos do TV Pirata e do Programa Legal, antes do Comédias. Infelizmente, não consegui me organizar para continuar escrevendo para eles, mas a Globo tem aproveitado algumas histórias minhas, no Brava Gente, mais recentemente. Pretendo encontrar tempo para escrever mais.


Acredita que a tevê ajuda a difundir a literatura?

A tevê ajuda, sim, a promover a literatura, como ajuda o cinema, e ela mesmo criou uma literatura própria. Exemplos de ótima televisão são as novelas dirigidas pelo Luiz Fernando Carvalho, Os Normais e os programas do Guel (Arraes) e do Jorge Furtado em geral.

A herança paterna o influenciou na escolha da profissão? 
Virei jornalista e escritor meio por acaso. Até os 30 anos nunca tinha escrito nada, fora algumas traduções do inglês. Quando comecei no jornalismo, em 1966, numa época em que não precisava de diploma, descobri que sabia escrever. Já tinha tentado várias coisas, não tinha diploma de nada. Talvez por ser filho de escritor, resistia à idéia de ser escritor. Neste caso, a herança influenciou contra.


A opção pela crônica também foi natural? 
Foi acidental. Comecei no jornal Zero Hora de Porto Alegre como copidesque, passei por várias editorias, fiz textos para a página de opinião assinando o meu nome e alguns pseudônimos e uma coluna sobre jazz. Quando o principal cronista do jornal saiu, me convidaram para o lugar dele. Os três romances que fiz até hoje, O Jardim do DiaboO Clube dos Anjos eBorges e os Orangotangos Eternos, foram encomendados e o próximo também será. Fará parte de uma série sobre os dedos da mão, da Editora Objetiva. Me coube o polegar. OClube dos Anjos está tendo uma carreira internacional supreendente. Foi traduzido até na Sérvia.


Quais são seus autores preferidos?

Dos brasileiros, os cronistas. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, o Sabino escrevendo crônica e também como romancista. Mas sempre li mais em inglês do que em português. Dos novos, confesso que conheço poucos, fora o (José Roberto) Torero e o Rubens Figueiredo, que acho ótimos. Gosto do (Moacyr) Scliar, do Rubem Fonseca, do Tabajara Ruas. Mas, infelizmente, tenho lido pouca ficção, e muito pouco por prazer.

A timidez também é herdada?
O pai era um pouco mais social e comunicativo do que eu, mas também era dos que ouvem mais do que falam. Mas eu melhorei bastante. Tenho feito até palestras.


E como tem se saído?
Falar em público ainda é um martírio. Que eu me forço a enfrentar, geralmente quando o pedido é para falar em escolas e ajudar os professores na guerra para criar o hábito da leitura entre os jovens. Este é um bom combate. Geralmente peço para me fazerem perguntas e a coisa vai. Mas não tenho nenhum jeito para orador. Já as sessões de autógrafos, tento evitá-las por puro pânico. Já dei tanto vexame, esquecendo o nome até de amigos íntimos, que não quero repetir a experiência.



O sobrenome famoso ajudou ou atrapalhou?
Não tenho dúvida de que ajudou, no começo, criando uma certa curiosidade nas pessoas. O sobrenome nunca foi um problema, pelo menos consciente. Acho que as pessoas sabem manter as proporções entre o que o pai era e fazia e o que eu faço.


Qual o seu hobby preferido? 
Gosto mais de desenhar do que escrever, embora desenhe mal. Gostaria de ter me aprofundado mais na música. A maior diversão é o cinema. E viagens sempre que possível.


E o saxofone, como surgiu? 
Eu era apaixonado por jazz, principalmente pelo Louis Armstrong. Quando fomos para os Estados Unidos em 1953, porque o pai foi assumir um cargo na União Pan-Americana, eu tinha 16 anos e decidi que, já que estava na terra do Armstrong, aprenderia a tocar trompete como ele. Mas no curso de música que procurei não tinham o trompete para emprestar. Acabei aprendendo a tocar saxofone. O que eu queria mesmo era poder brincar de jazzista.


Considera-se um bom músico? 
Sou limitado. Nunca cheguei a dominar o instrumento e hoje tenho pouco tempo para ensaiar.


Como supera a timidez quando se apresenta com sua banda? 
Nas apresentações sempre imagino que estou escondido atrás do saxofone. Não funciona. E a banda, por sinal, não é minha. Chama-se Jazz 6 e é formada por excelentes músicos profissionais, que me concedem o privilégio de tocar com eles.


A gastronomia costuma ser tema de suas crônicas. Sabe cozinhar?

Não sei nem esquentar água. Quem faz o churrasco na nossa casa é a minha mulher, Lúcia, que além de mulher é carioca. Suprema humilhação para um gaúcho. Sempre digo que a única parte de qualquer receita que me interessa é “leve-se à mesa”.