domingo, 30 de outubro de 2016

MUNDO CÃO

O mundo, como se sabe, está repleto de histórias tristes, tragédias pessoais que, de vez em quando, na rotina de repórter de editoria geral, fazendo de um tudo, era preciso apurar. Ia-se inclusive a enterros, tentava-se alguma informação entre o desespero de uma, a tristeza sem solução da outra, e assim foi feito para a matéria ai embaixo, assinada também pelo Fábio Varsano.

Jornal do Brasil, edição de terça-feira, primeiro de abril de 1997


"Ouvi ela berrando 'mãe! mãe!' e pensei que a mãe estava batendo nela. Depois, os gritos pararam e só escutei os latidos dos cachorros".

A menina Isabel Salcedo Silva, de 6 anos, foi morta na tarde de domingo por três cães pastores que guardavam a casa de seu padrinho, em Sepetiba, Zona Oeste do Rio. A garota foi atacada depois de ter pulado o muro, por volta das 15h30, quando o padrinho, o aposentado Jorge Pereira Pinto, de 47 anos, e sua esposa, Tânia Barbosa, já haviam saído. Segundo o pai de Isabel, Édson Fernandes da Silva, de 29 anos, ela já conhecia os cachorros e tinha o costume de pular o muro para brincar na casa dos padrinhos.
Jorge e Tânia moram em Bangu e usam a residência no número 101 da Rua Elisa, em Sepetiba, como casa de veraneio. Isabel morava com a família no número 150 da mesma rua, a menos de 100 metros. No domingo, a menina foi cedo à casa de Jorge e Tânia, em busca do ovo de Páscoa prometido pelo casal. "Ela saiu assim que viu os padrinhos chegando e passou a manhã com eles", contou Édson.
Isabel voltou para casa às 13h30, ofereceu pedaços de seu ovo as irmãos e foi dormir. Às 15h, ela acordou e foi brincar na rua, onde viu a madrinha sair de carro. Logo depois, decidiu pular o muro. Só que desta vez foi atacada pelos cães.
Morador da casa vizinha, o estudante Breno Alexandre dos Santos, de 13 anos, disse que escutou os gritos de Isabel, mas não imaginou o que estava acontecendo. "Ouvi ela berrando 'mãe! mãe!' e pensei que a mãe estava batendo nela. Depois, os gritos pararam e só escutei os latidos dos cachorros", contou.
Preocupada com a demora da filha, Dulcinéa do Nascimento Salcedo, 39, foi procurá-la junto com a nora, Luana Conceição Perez, por volta das 17h. Luana subiu no muro da casa de Jorge e viu o corpo de Isabel perto dos cachorros. Desesperadas, as duas chamaram Édson que, junto com um vizinho e os dois enteados mais velhos - Alan, 17, e Vânder, 16 -, pularam o muro para resgatar a garota.
"Os cachorros vieram pra cima de mim, mas como havia mais gente eles ficaram com medo. Corri na direção da minha filha achando que ela ainda estivesse viva, mas senti que seu corpinho estava gelado quando toquei nela", contou Édson, sem conseguir conter o choro. Os três cachorros morderam a menina na garganta, na orelha e na altura do olho direito. O laudo do Instituto Médico Legal (IML) apontou as mordidas no esôfago e na traquéia como causa da morte. As roupas da garota também foram arrancadas pelos cães.
Apesar da confirmação de que os cachorros mataram Isabel, o pai da vítima não pensa em processar Jorge e Tânia. "Não posso afirmar que foi responsabilidade de alguém, porque não sei o que aconteceu". A madrasta de Édson, no entanto, tem outra opinião. "Os bichos eram deles e alguém tem de responder pelo que aconteceu"", disse Maria Alice Silva. "Ninguém teve culpa de nada. O que eu queria de verdade era ter minha filha comigo agora", afirmou a mãe da menina, concordando com o marido. O casal mora na Rua Elisa há 11 anos.
Apesar de nenhum parente da menina ter apresentado queixa à polícia, os donos dos cães terão que responder a um inquérito por homicídio, segundo o delegado da 36a DP (Santa Cruz), Eli Alves de Andrade. "Trata-se de um crime de ação pública e independe de queixa forma", afirmou.
Segundo o delegado, os cachorros podem ser considerados armas nos casos de assassinato. "Se ficar comprovado que os proprietários dos animais não tiveram responsabilidade, que foi um acidente, eles poderão ser enquadrados por homicídio culposo. Nesse caso, devem ser absolvidos. Mas se for provado que houve negligência, eles podem ser condenados", explicou. O inquérito foi instaurado ontem e, nos próximos dias, rentes, vizinhos e os donos dos cães vão depor.
A família de Isabel sempre foi amiga dos dons dos cachorros. Antes da chegada dos três pastores, Olga Luiza do Nascimento - uma das oito tias da menina - trabalhou durante cinco anos cuidando da casa de Jorge e Tânia. A própria Isabel chegou a botar os cães para dentro de casa, quando eles saíam para a rua.
"Eu cheguei a bater na minha filha quatro vezes porque ela pulou o muro para brincar dentro da casa dos padrinhos. Sempre dizia para ela não fazer isso, mas não adiantava. Ela dizia que não havia problema porque conhecia os cachorros", disse Édson. Isabel foi enterrada às 16 horas de ontem, no Cemitério de Santa Cruz, na Zona Oeste. Cerca de 50 pessoas, entre parentes e amigos da família, acompanharam o sepultamento. Alguns parentes da menina, emocionados, chegaram a desmaiar.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

TUBARÃO

A matéria abaixo tinha uma outra ao lado, menor, com um sujeito chamado Otto Bismarck, à época "representante no Brasil do Arquivo Internacional de Ataques de Tubarões, da Universidade da Flórida, EUA". Otto cogitou, na entrevista por telefone ao repórter, a possibilidade de o animal da história ser um tubarão branco. Dias depois, ele confirmaria isso e garantiria que, pelo tamanho da mordida na perna do sujeito, o tubarão só podia ser o branco, o mesmo do filme, clássico, do cartaz ao lado, talvez um pouquinho menor.

Abaixo, a matéria

Jornal do Brasil, edição de terça-feira, de 22 de abril de 1997

"Virei a prancha para voltar e acho que caí quase em cima do tubarão. Só senti a mordida, um puxão na perna, e vi o tubarão saindo, entre o meu corpo e a prancha".

O windsurfista João Pedro Portinari Leão, de 22 anos, foi atacado por um tubarão quando velejava domingo na Enseada de Manguinhos, a cinco quilômetros da costa de Búzios, na Região dos Lagos. João Pedro foi mordido na perna esquerda quando cai da prancha e, apesar de ter perdido 50% da musculatura da panturrilha, ainda velejou por cerca de 20 minutos até a Praia Rasa, onde foi socorrido por um casal de turistas de São Paulo. O acidente surpreendeu moradores e ambientalistas de Búzios, uma vez que este foi o primeiro ataque de tubarão registrado na região nos últimos seis anos.
João Pedro saiu para velejar com um amigo às 13h. Os dois chegaram à Ilha Rasa, a três quilômetros da costa e, de lá, João Pedro seguiu sozinho. "Meu amigo resolveu voltar, mas continuei, até porque já estou acostumado a velejar sozinho por ali", disse o windsurfista, que é sobrinho-neto do pintor Cândido Portinari.
Ao fazer a manobra conhecida como jibe, para voltar à praia, João Pedro se desequilibrou, caiu na água e foi imediatamente mordido pelo tubarão. "Tudo se passou em alguns segundos. Virei a prancha para voltar e acho que caí quase em cima do tubarão. Só senti a mordida, um puxão na perna, e vi o tubarão saindo, entre o meu corpo e a prancha".
Mesmo com metade da panturrilha esquerda dilacerada, o windsurfista conseguiu fazer o chamado water start para subir na prancha - numa manobra que, ironicamente, é conhecida entre os praticantes do esporte como a "hora do tubarão": o windsurfista tem de ficar segurando a vela com metade do corpo dentro d'água, esperando uma rajada de vento para subir junto com a prancha.
Na Praia Rasa, João Pedro foi socorrido por um casal de paulistas. "Tive medo de desmaiar quando estava voltando. Quase apaguei duas vezes e achei que ia morrer se caísse na água de novo", disse. O windsurfista foi levado pelo casal até a casa de um amigo, na Praia Rasa e, de lá, foi para a Clínica Búzios, onde levou cerca de 250 pontos na perna.
João Pedro chegou de avião ao Rio, ainda no domingo, e foi examinado na Clínica Sorocaba, em Botafogo. O windsurfista disse que não chegou a sentir dor. "Só fiquei muito fraco".
Com viagem marcada para julho, quando iria surfar no Taiti, João Pedro teve de mudar seus planos, mas garantiu que voltará a velejar e surfar assim que se recuperar totalmente. A idéia de tatuar um tubarão na perna, no entanto, foi deixada de lado. "O tubarão já deixou a marca dele em mim", brincou João Pedro que, seguindo os passos de sua família, pratica esportes marítimos desde criança.
A previsão para a recuperação total é de, no mínimo, oito meses. João Pedro descansa em casa, no Parque Guinle, em Laranjeiras, na companhia da namorada, a jornalista Mariana Becker.
A notícia do ataque de tubarão surpreendeu o ambientalista Tito Rosemberg, que mora em Búzios há 15 anos. "Temo que haja uma repercussão negativa desse fato, já que Búzios é uma das melhores raias de vela do Brasil. Também velejo e já vi algumas galhas (barbatanas). Talvez os tubarões tenham aparecido por causa da grande quantidade de peixe morto que é deixada na enseada pelos pescadores", disse.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

TEMPOS DIFÍCEIS

Ontem ele foi eleito como o vereador mais votado da cidade, com mais de cem mil votos. Na época da matéria abaixo, ele tinha acabado de ser eleito para seu primeiro mandato, aos 17 anos. As fotos são do André Durão.

Revista Istoé Gente, edição 65, de 30 de outubro de 2000

"Falarei com meu pai antes de tomar qualquer decisão importante".

O vereador mais jovem da história do Brasil defende a pena de morte, a tortura para traficantes de drogas, acha que os integrantes do Movimento dos Sem Terra não passam de vagabundos e faz piada da proposta de legalização da união civil entre homossexuais. Qualquer semelhança com a cartilha de idéias do polêmico deputado federal e ex-militar Jair Bolsonaro, do PPB, não é mera coincidência. Prestes a completar 18 anos, no próximo dia 7 de dezembro, Carlos Bolsonaro sabe que se elegeu às custas do pai e admite, sem qualquer constrangimento, que não terá autonomia na Câmara do Rio. “Falarei com meu pai antes de tomar qualquer decisão importante.”
Eleito com um total de 16.053 votos, Carlos desbancou figurões locais de seu partido como o cantor Agnaldo Timóteo, mas só vai dar expediente na Câmara na parte da tarde. As manhãs serão reservadas para a faculdade de direito, que o calouro na política espera freqüentar a partir do ano que vem. “Estou estudando para o vestibular.” As aulas, no entanto, não vão deixar o gabinete vazio. “Às segundas e sextas, darei expediente no Rio. Em Brasília, ficarei às terças, quartas e quintas”, revela Bolsonaro, o pai.
O deputado é o primeiro a reconhecer a imaturidade do filho e já tomou algumas providências para evitar desastres. Entrevistas de Carlos, por exemplo, só ao lado dele. "O garoto ainda é inexperiente. Pode ser induzido a falar alguma besteira", justifica. Antes da campanha foi o pai quem se desdobrou para conseguir o registro da candidatura do filho. Ele só relaxou ao constatar, numa consulta ao Tribunal Superior Eleitoral, que o candidato precisa ter 18 anos ou mais no dia da posse, mas não para se eleger.
Segundo dos quatro filhos de Jair Bolsonaro, Carlos aceitou de imediato o posto9 de representante do deputado na Câmara carioca. "Como um político que quer sempre evoluir, meu pai necessitava de alguém aqui no Rio", diz. O filho vai assumir o lugar que era da mãe, a vereadora Rogéria Bolsonaro. Eleita em 1996 com o apoio do então marido, Rogéria irritou o deputado ao deixar de consultá-lo para votar alguns projetos. O casal acabou se separando e, depois de muita briga pelo uso do sobrenome, Rogéria saiu candidata pelo PMDB. Sem o apoio do ex-marido, porém, não se reelegeu.
Além de Carlos, Bolsonaro é pai de Flávio, 19 anos, e Eduardo, 16 - ambos do casamento com Rogéria, 40 -, e de Renan, 2, seu filho com Ana Cristina Valle, 32 anos. Flávio e Eduardo moram com a mãe enquanto Carlos vive com o pai, a madrasta e o irmão caçula, num apartamento na Tijuca, Zona Norte do Rio.
O vereador eleito diz que a fama de autoritário e o jeito truculento do pai só aparecem fora de casa. "Ele sempre foi liberal com a gente. Totalmente brincalhão e atencioso." Carlos nunca apanhou, mas já recebeu alguns castigos tipicamente militares. "De vez em quando, mando ele fazer algumas flexões", conta o deputado, sem esconder o riso. O filho também ri. Para ele, o pai nunca está errado. "O que ele diz é sempre válido".
E o que Jair Bolsonaro diz quase sempre causa polêmica. Ele já defendeu, por exemplo, o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e é a favor da tortura para conseguir informações de traficantes. “Se pegam um cara com 500 quilos de cocaína, têm de saber de onde veio a droga e para onde vai, não importa como tirar essa informação".
Sobre a proposta de união civil entre homossexuais, o deputado reforça o preconceito. "Jamais iria admitir dar de cara com dois bigodudos se beijando", diz. Ao seu lado, o filho limita-se a cair na gargalhada. Tanta submissão, no entanto, não impede que Carlos tenha suas pretensões políticas. O mais jovem vereador do Brasil diz que pretende continuar na vida pública. “Está no sangue."
Sua primeira medida será manter, no gabinete, um advogado criminalista para defender policiais militares processados. Quem fala sobre isso, porém, é o pai. "Muitas vezes, o PM prende um vagabundo, mas o advogado do preso chega antes na delegacia. Aí o policial acaba sendo processado", diz Jair Bolsonaro. Graças a posições como essa, Carlos não pensa duas vezes antes de apontar seu ídolo na política. "É meu pai, não tem mais ninguém".