quinta-feira, 24 de novembro de 2016

NEVE

O primeiro contato foi logo depois de acordar, oito e pouco da matina, ao abrir a cortina da janela do hotel. A noite da chegada tinha sido fria, claro, mas nada muito diferente de Gramado, e além disso praticamente não saímos daquele lugar muito bem aquecido, que em cima era restaurante e embaixo, no subsolo, boate, e onde a garçonete era a Natasha Kinski, a atendente do balcão era a Anna Kournikova e na pista de dança evoluíam Ana Paula Arósio e Nicole Kidman, uma sorrindo, os olhos fechados, outra entregue à música, de frente pro espelho, ignorando um idiota em volta.

A cortina do quarto do hotel era grossa, pesada, e assim que foi aberta mostrou aquela imagem inédita, nunca antes vista, um jardim quase todo branco. Mas neve mesmo, daquela que cai em flocos, nos filmes e nas lembrancinhas mais bregas, só veio a aparecer no estádio de futebol fantasma, inaugurado em 1955 para celebrar o décimo aniversário da rendição nazista. Tinha sido erguido em alguma ruína da Segunda Guerra e parecia incrustado no alto de um pequeno monte, como um teatro grego. Mesmo abandonado há mais de vinte anos, mantinha intactos o campo de futebol, com traves e marcações, e boa parte das arquibancadas. Em volta, nas bordas daquele vale, as barracas de camelô ofereciam uma infinidade de produtos, do capacete nazista perfurado a bala ao sobretudo do comandante soviético, da pistola usada, sim, com certeza, no motim do gueto, ao terço benzido por Sua Santidade, o papa. E foi quando eu examinava nas mãos um quepe bege, com a foice e o martelo bem no meio da testa, que começou a nevar. Milhares de flocos do mesmo tamanho, que caíam devagar, como que flutuando, e que voltaram a cair no pátio do palácio presidencial da Polônia, durante a visita do presidente brasileiro, o primeiro da história a aparecer por lá, à frente de uma comitiva enorme de políticos, empresários, convidados de multinacionais e, lógico, jornalistas.

Abaixo, a matéria, típica de revista. As fotos são do André Durão.

Revista Istoé Gente, edição número 135, de 4 de março de 2002

“Ah, nisso eu sou Romário. Quanto a isso não há dúvida”.

Uma menina de 14 anos e um craque de futebol mundialmente conhecido fizeram com que a visita de Fernando Henrique Cardoso à Polônia – a primeira de um presidente brasileiro àquele país – não fosse apenas mais uma série de encontros oficiais, endurecidos pela rigidez dos protocolos diplomáticos. A menina, Júlia Cardoso Zylberstajn, viajava pela primeira vez ao exterior com os avós, o presidente e a primeira-dama, Ruth Cardoso, sem a companhia de outros parentes. Talvez contagiado por sua presença, FHC não escondia o bom humor, que chegou a provocar surpreendentes declarações de apoio a Romário, na luta do atacante para ir à Copa do Mundo de 2002. No primeiro dia em Varsóvia, durante passeio pela Cidade Velha, centro histórico da capital polonesa, o presidente não quis falar sobre a campanha para sua sucessão, mas não resistiu a uma pergunta sobre a convocação, ou não, do craque para a seleção. “Ah, nisso eu sou Romário. Quanto a isso não há dúvida”, afirmou.
Se o artilheiro vascaíno foi assunto na Polônia sem sair do Rio de Janeiro, Júlia só precisou ir a um evento da programação oficial do presidente em Varsóvia para dar um toque de suavidade à comitiva do avô. Ainda no domingo, durante o concerto no Teatro da Orquestra Sinfônica de Varsóvia – patrocinado pela Brasil Telecom –, ela sentou-se na mesma fila dos avós, do presidente da Polônia, Aleksander Kwasniewski, e da primeira-dama Jolanta Kwasniewska.
Ao lado de dona Ruth Cardoso, a filha de Beatriz Cardoso e de David Zylberstajn (ex-presidente da Agência Nacional de Petróleo e ex-genro de FHC) acompanhou a apresentação da Orquestra Sinfônica da Rádio e Televisão Polonesa, que, regida pelo polonês naturalizado brasileiro Henrique Morelembaum, tocou a abertura de O Guarani, de Carlos Gomes, além das Valsas Humorísticas, de Alberto Nepomuceno, e o concerto para piano e orquestra Formas Brasileiras, de Hekel Tavares. No fim do programa tipicamente brasileiro, a menina, que junto com o irmão, Pedro, 9, costumava dormir no quarto dos avós quando visitava o Palácio da Alvorada, não escondeu a empolgação com o encerramento preparado pela produção do concerto. Sutilmente, acompanhou com a cabeça o som dos nove ritmistas de escolas de samba cariocas que, comandados pelo mestre de bateria Jorjão, tocaram Aquarela do Brasil junto com os músicos poloneses.
O bom humor de Fernando Henrique continuou afiado no segundo dia da viagem, durante a entrevista coletiva realizada após a reunião no Palácio Presidencial, onde os presidentes trataram de assuntos em comum entre os dois países. No discurso antes da entrevista, Fernando Henrique arrancou risos ao dizer que tinha estado na Polônia para aprender. “A primeira coisa que aprendi foi a pronunciar o nome de meu colega, ‘Qua-chi-niévski’”. FHC elogiou a vodka polonesa servida no jantar de domingo, quando foi informado por Kwasniewski de que o Brasil exportava álcool para a Polônia. Na ocasião, o presidente tranqüilizou o colega polonês que, em tom de brincadeira, manifestara a preocupação de que o álcool brasileiro pudesse prejudicar a qualidade da principal bebida da Polônia.
“Disse a ele que, provavelmente, o álcool exportado pelo Brasil só era bebido por automóveis”. Até a última pergunta da entrevista – feita ao presidente polonês a respeito de boatos sobre a possível candidatura da primeira-dama à prefeitura de Varsóvia – gerou brincadeiras de FHC. Depois da resposta do colega, ele pediu a palavra para um último comentário. “É só para dizer que, se ela se candidatar, terá o meu voto.”
Não faltou quem pegasse carona na descontração do presidente para garantir momentos inesquecíveis. Foi o caso de Jorjão e seus ritmistas, que ganharam uma foto ao lado de Fernando Henrique. “Pedi e ele aceitou na hora. Essa foto vai para o currículo”, disse o mestre de bateria da Acadêmicos do Grande Rio.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

FLORZINHA

Na época da matéria abaixo, Clarissa Garotinho era uma menina de 20 anos que começava a dar os primeiros passos na política, mesmo dizendo que não queria isso. Foi eleita vereadora sete anos depois. Aos 29 foi eleita deputada estadual e aos 33 assumiu uma cadeira na Câmara dos Deputados, em Brasília. Vivia-se o auge do poder da família Garotinho no tempo da entrevista, bem diferente dos dias conturbados de hoje, nos quais Clarissa voltou a ficar em evidência por conta de cenas que em nada contribuem com a busca eterna, utópica, por uma sociedade saudável, e que não deveriam ter sido tão difundidas como de fato foram, no show de horrores que a chamada grande mídia, principalmente, ajudou a transformar o País. 

Revista Istoé Gente, edição 163, de 16 de setembro de 2002

“Se um dia perceber que isso fará parte de um projeto para o bem, aceito, mas por enquanto, não”.


No fim de junho passado, Clarissa Matheus, 20 anos, reuniu-se pela primeira vez com equipes de panfletagem da campanha do pai, Anthony Garotinho, à Presidência. Depois de dar dicas sobre o trabalho a ser feito, foi ovacionada por um coro que a chamava de Florzinha. Referência ao nome da mãe, a candidata ao governo do Rio Rosinha Matheus, o apelido foi apenas uma brincadeira de correligionários, mas a vocação política da mais velha entre os quatro filhos biológicos de Rosinha e Garotinho já é uma realidade. Clarissa acompanha Garotinho nas viagens pelo Brasil, representa a mãe no interior do Rio e, desde a sexta-feira 6, tem uma agenda própria de compromissos eleitorais.
É dela a responsabilidade de manter a tradição da família apresentando semanalmente um programa de rádio, compromisso que teve início com Garotinho quando este era prefeito de Campos. A tarefa estava a cargo da mãe, que acabou impedida pela Lei Eleitoral. Mesmo substituindo a mãe, Clarissa optou por ficar mais próxima do pai. “Meu pai sempre teve minha mãe do lado. Agora ela não pode acompanhá-lo e estou no lugar dela”, explica. Nada, porém, que provoque ciúmes na candidata a governadora. “Clarissa está despontando como uma liderança jovem. Esperava isso”, diz Rosinha.
O interesse pela política começou cedo. Aos 4 anos, decorava o jingle da campanha do pai, então candidato a deputado estadual, e o repetia nas aulas. “Subia na cadeira e falava para os colegas.” Na Faculdade Cândido Mendes, onde cursou um período de Direito, interrompeu uma palestra para defender Garotinho, durante a crise provocada por denúncias de que o cineasta João Moreira Salles teria auxiliado financeiramente um traficante carioca. As denúncias culminaram com a saída do governo do então coordenador de Segurança Pública Luís Eduardo Soares. “Ele falou mal do meu pai o tempo todo. Me apresentei, pedi a palavra e dei a minha versão dos fatos. Tinha umas 300 pessoas no auditório, que me aplaudiram de pé”, conta, orgulhosa.
Na aula do curso de Jornalismo da Faculdade Hélio Alonso, um professor criticou o Piscinão de Ramos, menina dos olhos do governo Garotinho. Sem informações suficientes para se defender, Clarissa levantou, junto a assessores do pai, todo material que precisava sobre o projeto. Na semana seguinte, convenceu o professor de que ele estava errado.
A faculdade está trancada no 5º período por causa da campanha. Há dois meses, terminou um namoro de dois anos, o que só fez aumentar o ciúme de Garotinho. “Quando atendo o celular ele fica logo perguntando quem é. E, quando percebe alguém me olhando nas passeatas, me abraça logo”. A julgar pelos recados apaixonados recebidos por Clarissa, o ciúme do pai é justificável. “Um garoto mandou e-mail para o PSB dizendo que eu era a musa dele. Outro, me escreve de Santa Catarina desde julho, mas isso é onda de campanha. Deve acontecer com filhas de outros candidatos”, despista com modéstia.
Seguir carreira política, porém, ainda está fora dos planos de Clarissa. “Se um dia perceber que isso fará parte de um projeto para o bem, aceito, mas por enquanto, não”, diz ela, que assume ter herdado a determinação do pai e a teimosia da mãe.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

PRESUNTOS

O presunto era, em priscas eras, uma espécie de rito de iniciação do repórter. O presunto era pobre, sempre, negro, mulato ou "moreno" na maioria as vezes, quase todos não identificados. Podia estar escondido no mato, jogado numa vala à beira da estrada ou espremido na mala de um carro, como na foto ao lado, e quase sempre estava todo furado de tiro, bala de todo calibre e também faca, muitas vezes torturado. O presunto era a deixa pra ser valente, ver presunto e subir morro, pra mostrar valentia, era o que queria muito repórter na época na casa dos vinte e um ou dois aninhos, ainda que no primeiro de todos eles, na enorme comunidade de Jardim Catarina, em São Gonçalo, tenha sido mais conveniente ficar mesmo do lado de fora.

O fotógrafo, bem mais experiente naquilo, usava sapato branco e foi logo entrando no barraco pendente, de ripas que mal ultrapassavam um metro e sessenta de altura, toda a casa um pouco maior que um Fusca. Havia parentes, amigos e vizinhos do lado de fora, e o repórter se deixou ficar por ali, entrevistando baixinho, rapidinho, até que um primo da vítima saiu de dentro do barraco e avançou pra ele com dedo em riste dizendo pra escrever "aí que ia ter volta, que quem fez isso com meu primo vai pagar". E o repórter, claro, escrevendo tudo direitinho no bloco que eram as laudas dobradas e grampeadas, pra sair logo dali assim que viesse o fotógrafo, como de fato ocorreu, sem a menor vontade, muito menos valentia pra ver presunto nenhum.

Depois vieram outros, diversos, vistos até bem de perto. Presuntos no morro, em becos e latões de lixo, no mato entocado ou no descampado, esparramado. Vários, todo dia aparecendo por aí, e hoje devem continuar aparecendo, sem a cobertura jornalística de outros tempos a não ser em cada vez mais raros jornais que se dedicam a isso. E como hoje é Dia de Finados, o Relatos presta homenagem a essa pobre, sofrida gente que morre toda madrugada por aí, na guerra diária da vida.

A matéria abaixo é a da foto que ilustra o texto, do pequeno grande Raimundo Neto, digníssimo representante da alta burguesia de Jurujuba. A matéria tá bem no formato de um milhão de outras iguais a ela. Está aí, em honra ao presunto desconhecido, sem nomes, mas com patente, sobrenome e apelido, porque lá no fundo, embaçado pelo tempo, pela impressão nada perfeita do jornal, aparece o repórter desfocado, em toda a vivacidade de seus vinte e dois anos de idade. Só por isso.

Jornal O Fluminense, edição de domingo, 2, e segunda-feira, 3 de outubro de 1994

O cabo Paixão tinha tiros por todo o corpo e foi atingido na cabeça com um tiro de escopeta, calibre 12. O motorista Tita também apresentava várias perfurações. Segundo a perícia, as vítimas foram atingidas com 12 tiros de vários calibres - 12, 38 e diversos projéteis de pistola.

Um policial militar e um motorista de táxi foram encontrados mortos, na manhã de ontem, na mala de um táxi Chevette, número 1676, de placa AK-4053, de Niterói, estacionado em frente ao número 651 da Rua Padre Francisco Lana, em Santa Rosa. Ambos estavam sem documentos, mas foram identificados como o cabo Paixão, lotado no 12o BPM, e o taxista conhecido como Tita, que costumava fazer ponto na rodoviária de Niterói. Os dois cadáveres estavam com tiros por todo o corpo e a polícia ainda não sabe o motivo do crime.
O carro foi deixado em Santa Rosa por volta das 7h e a polícia foi chamada porque os moradores viram o sangue que escorria da mala do veículo. Os soldados Eliel e Bacellar foram os primeiros a chegar ao local e registraram a ocorrência. Eliel informou que o cabo Paixão, que aparentava 35 anos de idade, fazia trabalho interno no Batalhão. O soldado não tinha idéia do motivo do duplo homicídio.
Os corpos foram levados para o Instituto Médico-Legal (IML) de Niterói no próprio táxi. O cabo Paixão tinha tiros por todo o corpo e foi atingido na cabeça com um tiro de escopeta, calibre 12. O motorista Tita também apresentava várias perfurações. Segundo a perícia, as vítimas foram atingidas com 12 tiros de vários calibres - 12, 38 e diversos projéteis de pistola - e os dois foram mortos por volta das 5h de ontem. Ambos eram morenos e o taxista aparentava ter 28 anos de idade. O PM estava à paisana e Tita vestia calça e jaqueta jeans. A ocorrência foi registrada na 77a DP (Santa Rosa).