Revista Istoé Gente, edição número 5, de 6 de setembro de 1999
"Está vendo esta tela? Eu sou o gelo e a cela é o deserto".
Quando tinha oito anos, Flávio Balbino Cardoso saiu de Cabo Frio, na Região dos
Lagos do estado do Rio de Janeiro, e visitou o Museu do Louvre, em Paris, para conhecer a obra dos grandes mestres das artes plásticas. Sua avó trabalhava como governanta na casa do pintor francês
Jean Guillaume, artista que figura no Dicionário Crítico da Pintura no Brasil,
de José Roberto Teixeira Leite. Quando Guillaume
morreu, 11 anos depois, Flávio trocou a residência de Cabo Frio – onde teve uma
vida confortável, que o pintor, tido como seu avô adotivo, pôde lhe proporcionar
– para morar com a mãe, Anuzia Cardoso Reis, no subúrbio de Jacarepaguá, no Rio.
O garoto não herdou bens, mas ficaram-lhe as lembranças e um ofício. "Desenvolvi
meu talento para a pintura com meu avô", conta.
A morte de Guillaume selou o
destino de Flávio. Sem emprego fixo, passou a praticar pequenos furtos. Aos 19
anos, tornou-se assaltante. Em 1996, respondeu a dois processos por roubo. Foi
preso em flagrante em 1997, quando roubava um malote com R$ 13 mil de um
office-boy na saída de um banco no Rio. Hoje, aos 26 anos, Flávio cumpre pena no
presídio de segurança máxima Bangu III, na zona oeste do Rio. Foi
condenado a 24 anos e 8 meses de reclusão, em três processos por assalto a mão
armada. Foi-se a liberdade, mas novamente restou-lhe a pintura como refúgio:
"Está vendo esta tela? Eu sou o gelo e a cela é o deserto", diz, apontando o
quadro recém-concluído.
Flávio idolatra o impressionista francês Monet, mas diz estar
atravessando uma fase surrealista. Tal qual o avô, cuja pintura era
caracterizada como "uma bem dosada mescla de elementos realistas e levemente
surrealista", segundo o Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. O detento sonha
com o dia em que vai poder retratar o fim de sua agonia. "Perdi muito tempo da
minha vida. Quero sair daqui e viver da pintura", planeja.
Além do Louvre e de Paris,
Flávio também conheceu Londres e percorreu diversas cidades francesas ao lado do
avô de criação. O sonho durou seis meses, período importante para aprimorar os
conhecimentos. "Conheci a casa do Monet", diz ele. A viagem também serviu para
estreitar os laços que uniam o avô ao neto adotivo. "Foi lá que decidi seguir a
carreira de pintor", conta Flávio. "E meu avô foi meu exemplo."
Em 1996, quando já vivia do
crime, o pintor chegou a expor seus quadros num hotel da cidade catarinense de
Itá – onde estava foragido, no sítio de um amigo. A iniciativa, porém, não foi
suficiente para fazê-lo mudar de vida. O crime ainda era prioridade para Flávio,
que deixava em segundo plano a produção de suas obras. "Demorava seis meses para
terminar um quadro", diz. O pintor foi preso em uma rápida passagem pelo Rio,
quando tentava ganhar mais dinheiro para voltar a Santa Catarina e presentear o
filho Bruno, 4 anos, fruto de um breve relacionamento com uma
namorada.
Hoje, o neto de Guillaume trabalha num ateliê improvisado
dentro do presídio e divide com outros três prisioneiros uma cela de oito metros
quadrados, com dois beliches e um vaso sanitário. O detento tem direito a
descontar um dia de sua pena para cada três dias de trabalho. A atividade também
rende outros benefícios. Flávio vende suas telas aos colegas de prisão por
preços que variam entre R$ 100 e R$ 500, de acordo com o tamanho.
Sua rotina é a de um artista
em tempo integral. Às 9 horas, deixa a cela que ocupa com outros presos e vai
direto para o ateliê. Só volta às 17 horas. "Só paro de pintar para comer", diz
Flávio, que planeja uma exposição na prisão. O diretor de Bangu III, Lafaiete
Barsotelli Fragoso, 48 anos, conta que os primeiros dias na cadeia não foram
fáceis. Flávio era arredio e encrenqueiro. Só mudou o comportamento depois que
passou a ter uma atividade. "Decidimos abrir o ateliê de pintura e, desde então,
ele se tornou um preso nota dez", afirma Fragoso. Na cadeia, a proximidade com
presos considerados de alta periculosidade não o assusta. "Os líderes daqui
sabem quando alguém não é do crime e aconselham a pessoa a largar a bandidagem.
É o meu caso."