segunda-feira, 16 de junho de 2008

A ENTREVISTA INTIMIDADA

Situação difícil. De um lado, a pauta da seção chamada Testemunhas do Século, onde a revista dava duas páginas para pessoas de mais de 85 anos – algumas conhecidas, outras nem tanto – discorrerem sobre as lembranças do século que terminava. Do outro, entrevista com Jamelão para preencher as tais duas páginas, marcada depois que o assessor da gravadora (o cara tava lançando disco novo) repetiu quatro ou cinco vezes a advertência de que ele, o Jamelão, só queria falar do disco, e disse num certo tom de cumplicidade, como quem diz... Você conhece a fama do cara, né?

As duas páginas da Testemunhas do Século eram um festival de memórias, a maioria da infância e juventude, que costumavam ilustrar as mudanças ocorridas entre 1901 e o ano 2000 ao longo da vida do entrevistado. Só que o entrevistado era o Jamelão, que só queria falar do disco. E eu não ia ser otário de pedir pra ele se lembrar de quando vendia jornal na rua; ou pior, de quando imitava Orlando Silva, Ciro Monteiro e cia. pra ganhar a vida.

Pra isso existia a pesquisa, que ainda era palpável, pesada, uma apostila cheia de papel dentro. Vi muita coisa, foi útil à beça na hora de escrever a matéria, mas pra fazer a pauta, pra elaborar as perguntas a serem feitas ao Jamelão, não usei nada daquilo. Fui determinado a falar do disco, que eu não sou besta.

Marcamos num hotel da Rua Paissandu. Cheguei ele já tava lá, sentado no restaurante, recostado na cadeira, copo d’água na frente, olhando meio que pra baixo, enquanto dava entrevista ao repórter de um jornal, que só queira saber do disco. Pra piorar, o tempo seria curto, quarenta minutos no máximo. Era uma série de entrevistas aquilo. O cara tinha resolvido emendar uma na outra num dia só, pra falar do disco.

E foi do disco que falamos, basicamente, com uma pergunta ou outra sobre as diferenças que o processo de gravação sofreu ao longo dos anos. Jamelão respondeu a tudo sem alterar muito a carranca tradicional. Nos despedimos com um aperto de mão, eu sorrindo, ele não, e voltei intacto para a redação, sem ter tomado nenhuma descompostura. Só depois percebi que nem do Vasco tinha perguntado nada, logo pra ele, grande vascaíno, fã de Fausto, Jaguaré e Oitenta e Quatro.

O resultado da entrevista tá aí embaixo, e é claro que falei do disco, com detalhes. E eu sou doido, por acaso?

Revista Istoé Gente, edição 52, de 31 de julho de 2000

“Tem outros que perderam a voz, mas felizmente Deus ainda me permite cantar”.

São 87 anos de idade e uma voz que permanece como uma das mais potentes da Música Popular Brasileira. Conhecido há anos por embalar os desfiles da Mangueira, a mais badalada das escolas de samba do Rio de Janeiro, o cantor Jamelão continua na ativa fora do carnaval. A idade e um certo desânimo confesso em relação ao momento atual da música no País não o impediram de lançar mais um disco. O novo CD, Por Força do Hábito, vem se juntar aos outros 40 de sua carreira como crooner e intérprete de samba canção, iniciada no auge das emissoras de rádio, durante os anos 40.
Nascido no dia 12 de maio de 1913, o menino José Bispo Clementino dos Santos começou a usar a voz para viver muito cedo. Aos 10 anos, era conhecido como o moleque Saruê e já gritava pelas ruas vendendo jornais nos subúrbios cariocas. A identificação com a música começou nos anos 20, quando José Bispo conciliava o trabalho na fábrica têxtil Confiança com apresentações noturnas como cantor e tocador de cavaquinho no antigo Clube Cajuti, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio. A fábrica, que ficava no mesmo bairro, era a mesma citada por Noel Rosa em Três Apitos.
Antes de conquistar espaço nas rádios, o cantor iniciante se virava como divulgador de sambas, profissão típica da época. No início dos anos 40, muitos compositores testavam suas músicas em cabarés e gafieiras. Para isso, contratavam um cantor desconhecido que interpretava as composições. Caso as músicas agradassem ao público, eram entregues para cantores famosos gravarem. Durante oito anos, Jamelão trabalhou nesse ofício, quando imitava os maiores cantores da época, como Orlando Silva e Ciro Monteiro, até conseguir ser contratado na antiga Rádio Clube do Brasil.
O apelido ele ganhou por acaso, antes de começar a cantar. Numa gafieira, José Bispo foi vítima de uma brincadeira dos amigos, que pediram ao gerente para chamar o ainda aprendiz de cantor ao palco. Sem saber o nome do futuro intérprete, o gerente o apresentou como Jamelão (pra quem não sabe, uma fruta completamente preta). O apelido pegou e, a partir daí, o nome José Bispo começou a ser esquecido. Da época áurea do rádio, o cantor guarda boas lembranças. “Você gravava um disco, entregava na rádio, ia embora e eles tocavam”, conta. “Hoje, se você não tiver um bom dinheiro no bolso, isso não acontece”.
Paralelamente à vida de cantor de rádio e boates, Jamelão começou a fazer história na Mangueira, da qual passou a fazer parte aos 14 anos. O cantor começou a desfilar na escola em 1933, primeiro na bateria, tocando tamborim e pandeiro num tempo em que ainda não existia samba-enredo. Depois, na década de 50, Jamelão assumiu o posto de puxador de samba oficial da Mangueira, que ocupa até hoje. Naquela época, a Avenida Marquês de Sapucaí ainda não era o palco dos desfiles, que eram realizados na Praça Onze, também no centro do Rio de Janeiro. Sem os microfones e toda a aparelhagem de som dos carnavais de hoje em dia, o puxador da escola levava o samba no gogó, às vezes com o auxílio apenas de um megafone.
No cenário musical, outra diferença apontada por Jamelão foi a inversão dos papéis do cantor e do compositor com o passar do tempo. “Antigamente, o compositor procurava o cantor para ter suas músicas gravadas”, lembra o intérprete que imortalizou sucessos de Ary Barroso e Lupicínio Rodrigues, entre outros mestres do samba. “Hoje, o cantor é que procura o autor, mas nem sempre consegue a cessão de direitos para a gravação das músicas”, diz. “Os compositores querem cantar suas próprias canções”. O resultado disso, na opinião do cantor, é a falta de renovação na música brasileira. “Até pode ter gente hoje comparável ao pessoal da antiga, como Cartola e Ismael Silva, mas ninguém repara porque tem um monte de gente cantando sempre a mesma coisa. Ninguém quer arriscar, sair do filão”.
Para fugir do filão do pagode e do sertanejo, Jamelão continua apostando no samba-canção, gênero que nunca abandonou. No novo disco, ele canta doze músicas de um autor desconhecido, Alberto Gino, além de uma parceria com Luís Antônio Xavier, e outra de Anselmo Mazzoni com Victor Hugo. “Procurei gravar um disco novo. Quero que as pessoas ouçam e analisem”. O cantor só não vai se apresentar como gostaria, acompanhado da orquestra de 20 músicos que participou da gravação do disco. “Hoje custa muito caro se apresentar com orquestra. Antigamente era mais fácil”, diz o intérprete, sem esconder o desânimo.
Casado há 50 anos com Delice e pai de Joceli, 48, Jamelão continua morando no apartamento de Vila Isabel e, por enquanto, nem cogita a possibilidade de se aposentar. “Enquanto eu puder cantar e continuarem me chamando, eu canto”, afirma. “Tem outros que perderam a voz, mas felizmente Deus ainda me permite cantar”.

*Jamelão morreu anteontem, aos 95 anos. Que São Pedro não o chame de puxador de samba, como eu fiz na matéria....