quarta-feira, 22 de junho de 2011

AOS 95 ANOS

Aos 95 anos, Dona Canô corta o quiabo para o caruru do dia seguinte, da festa dela. Corta numa mesa grande, quase ao ar livre, na companhia de umas quinze pessoas que também cortam o quiabo, umas tão rápido quanto ela, outras menos, e um que ultrapassa todos os recordes negativos do corte do quiabo, sob olhares incrédulos da cozinheira da casa, matrona negra daquelas que bem poderiam ser a exata tradução da simpatia, e cuja imagem há muito foi atrelada à condição de cozinheira de qualidade, desde E O Vento Levou, passando pelo Sítio do Pica Pau Amarelo e chegando às novelas, Vale Tudo etc... E que ainda por cima é baiana.

Aos 95 anos, Dona Canô de vez em quando levanta e vai conferir o ponto do feijão. Fala alguma coisa com a cozinheira e volta pra mesa. Depois levanta de novo, atravessa o corredor de entrada da casa, dá dois passos para a rua e chama pelo filho Rodrigo, porque o almoço vai ser servido. E chama gritando, porque o filho tá no bar a uns cinquenta metros da casa, conversando com amigos, e o almoço vai ser servido.

Aos 95 anos, Dona Canô cumpre agenda de atração turística. Recebe gente de todo o Brasil. E no aniversário, na festa pelos seus 95 anos, recebe o povo em casa, portas abertas, e recebe a todos um a um, sentada numa poltrona estrategicamente postada na saída do corredor de entrada da residência, que dá para uma sala, uma cozinha ampla, mais alguns quartos lá atrás e o pátio, onde o povo se aglomera junto com Caetano, com Bethânia, com Nicinha, com Clara Maria, com Mabel, com Rodrigo, com Roberto e com Irene. E toda esse gente se aglomera para comemorar o aniversário dela, que cumprimenta todo mundo, com um aperto de mão e com um sorriso, sereno, tranquilo, em paz, aos 95 anos.


A abertura da matéria abaixo não é a que foi publicada, mas é a versão original do texto. As fotos são de Leandro Pimentel, o maior desatolador de carros do Recôncavo Baiano.

Revista Istoé Gente, edição 164, de 23 de setembro de 2002

“A raiva estressa o organismo. As pessoas devem levar as coisas sem se aborrecer, fazendo de conta que não ouvem, não vêem”

O relógio da matriz de Santo Amaro da Purificação marcava quinze pra meio-dia quando um carro preto parou em frente à igreja e dele saltaram o governador Paulo Souto e Antônio Carlos Magalhães, o ACM. Durante exatos oito minutos, os dois permaneceram de pé, um ao lado do outro, sob o sol de quase meio-dia da Bahia. ACM puxou do lenço duas vezes, para enxugar o rosto e a careca. O governador nem isso. Ficou na maior parte do tempo com as mãos para trás, em posição de espera, até que outro carro parou em frente à igreja e dele saltou Dona Canô, para assistir à missa pelos seus 95 anos de idade. Só então Paulo Souto e Antônio Carlos Magalhães puderam sair debaixo do sol, sem antes deixar de beijar a mão de Dona Canô e conduzi-la até a entrada da igreja.
A cena é mais uma mostra do respeito devido à dona de casa Claudionor Vianna Teles Velloso, a mais famosa entre os 60 mil moradores de Santo Amaro, desde que os filhos Caetano Veloso, 60, e Maria Bethânia, 56, projetaram o nome da família como ídolos da MPB. Matriarca de oito filhos, nove netos e três bisnetos, Dona Canô dá show de sabedoria na arte de levar a vida. “A vantagem da idade é saber viver, porque se a gente ficar se martirizando não vive bem”, afirma.
Há 19 anos, Dona Canô assumiu as rédeas da família formada com o marido, o telegrafista José Teles Velloso, o Zeca, morto em 1983, com quem se casou aos 23 anos. A primeira providência foi manter viva nos filhos a lembrança do pai, que não se limita à foto em uma das paredes da casa. Desde a morte de Zeca, Dona Canô nunca mais fez qualquer refeição sentada na cabeceira da mesa, antes dividida com o marido. “A presença de meu pai ainda é muito forte na casa. A impressão é que ele também está em minha mãe”, diz a escritora Mabel Velloso, a terceira filha mais velha, de 68 anos, buscando uma explicação para o poder de aglutinação da mulher que até hoje mantém a família unida em torno dela.
Com a tranqüilidade típica de quem nunca foi “muito revoltada com a vida”, a mãe de Caetano e Bethânia dá sua receita para se manter lúcida. “A raiva estressa o organismo. As pessoas devem levar as coisas sem se aborrecer, fazendo de conta que não ouvem, não vêem”, ensina a matriarca. Ela mora apenas com Nicinha, a filha mais velha, mas não passa um dia sem falar com os filhos. De todos, só Caetano não faz ligações diárias para Santo Amaro. “Caetano é imprevisível. Ele acorda tarde e, por causa do trabalho, tem pouco tempo para conversar”, justifica, referindo-se ao único filho que não carrega os dois eles no sobrenome. “O cartório registrou assim, mas ele não deixou de ser Velloso”, afirma a mãe do compositor.
No que depender dos outros filhos, no entanto, nunca vai faltar telefonema para Dona Canô atender, inclusive de Bethânia, a mais apegada das filhas. “São duas ligações por dia, no mínimo”, entrega a mãe, exibindo o riso farto, uma de suas marcas. A cantora confirma. “Fui a última a sair de perto dela, pra estudar em Salvador quando tinha 17 anos, e até hoje falo com ela três, cinco vezes por dia, quantas for preciso.”
Os cuidados de Bethânia com a mãe são tantos que Dona Canô escondeu dela o acidente sofrido uma semana antes do aniversário. Sentada na sala da casa de oito quartos, repleta de registros das carreiras dos dois filhos famosos nas paredes, ela arrancou um pequeno pedaço da pele da canela esquerda ao descruzar as pernas. O sangue do ferimento, causado pelo calor e pela fragilidade da pele, assustou Nicinha, que viu a cena. A própria Dona Canô se encarregou de tranqüilizar a filha. “Disse pra ela fazer um curativo com gaze e na manhã seguinte chamei o médico. Se Bethânia soubesse iria ficar louca de preocupação”, conta.
O incidente mostrou a vocação de enfermeira de Dona Canô, já conhecida na família. A escritora Mabel não se esquece de um verão há mais de 50 anos, no antigo distrito de Berimbau, hoje Conceição de Jacuípe. Na época, um menino de dois anos da casa vizinha estava com uma forte dor de ouvido. Apesar dos esforços do farmacêutico local, foi Dona Canô quem descobriu um caroço de feijão germinando no ouvido do menino e tirou a semente de lá. “Ela também dava injeção em todo mundo na cidade. Meu pai é que brincava dizendo: ‘Canô ainda vai matar um’”, lembra Mabel.
Mas não matou, e ainda usou o dom para salvar a vida de Irene, a filha caçula agregada à família ainda recém-nascida. Ao visitar a menina sete dias após o nascimento, Dona Canô achou que a mãe estava com tétano e decidiu levar a criança para casa. O palpite foi confirmado dias depois, com a morte da mãe. “Ela evitou que Irene fosse contaminada”, diz Mabel. Nicinha, a outra filha adotada, também entrou na família graças a uma doença. Desde menina, passava a maior parte do tempo na casa da família Velloso, até que Maria Clara, mãe de Zeca, percebeu que a menina tinha sarampo e a impediu de sair de casa. Passada a quarentena, Nicinha preferiu não voltar para a casa dos pais biológicos, que eram parentes de Zeca.
Outra vocação de Dona Canô é a de cozinheira, o que gera mais telefonemas dos filhos. “Ligo para que ela me oriente quando tenho de cozinhar para muitas pessoas ”, conta Roberto, único dos oito a morar em São Paulo. Modesta, Dona Canô diz que hoje dá ordens às três cozinheiras da casa e “só faz olhar”, mas não é bem assim. Na tradicional cerimônia do corte do quiabo, quando a família recebe os amigos na véspera do aniversário da matriarca, para que todos cortem o legume necessário para o caruru do dia seguinte, ela não só cortou sua cota como foi diversas vezes à cozinha verificar se a feijoada do almoço estava no ponto.
É nas festas que a família se reúne. Até Caetano e Bethânia sempre se esforçam para comparecer. Na segunda-feira 16, os dois chegaram no decorrer da missa e depois foram à festa que reuniu cerca de 300 pessoas na casa da família. Como de hábito, a cantora ficou em seu quarto, cuja janela dá para o pátio por onde circulam os convidados. Assediado com pedidos de fotos e autógrafos, Caetano mal tinha tempo para conversar com parentes e amigos de infância. “O aniversário de minha mãe é sempre uma festa popular dentro de casa. Isso tudo é resultado da alegria dela”, resumiu o compositor.
Mesmo quando não tem festa em casa, Dona Canô não fica sem receber visitas, e muitas vezes de desconhecidos de passagem pela cidade. “Virei atração turística”, reconhece a mulher que já recebeu turistas de todo o Brasil e do exterior. “É por causa de Caetano e de Bethânia, mas recebo todos pelos dois”, completa. Para manter a privacidade, ela instituiu a parte da manhã como horário das visitas. Depois do almoço, mesmo quando não segue o hábito de dormir, manda dizer que não pode atender. “Senão não consigo fazer mais nada”, explica.
Mas a mulher que dá nome ao único teatro de Santo Amaro não desperdiça tanto prestígio. Junto aos políticos que a respeitam, já conseguiu muita cadeira de rodas, roupas e comida para a população carente da cidade. “Minha mãe se ocupa com caridade e, acima de tudo, festeja a vida. Ela sabe viver plenamente. Para mim, é força, referência do significado mais amplo e bonito do que é viver”, conclui Maria Bethânia.