quinta-feira, 28 de junho de 2007

SOBRE MARISCOS E PROMESSAS

Aqui já foram mostrados textos da finada revista Incrível, do icônico Jornal do Brasil e da Istoé Gente, revista que concentra a maioria disparada da produção deste repórter que começou sua trajetória do outro lado da Baía de Guanabara, viajando muito, mas muito mais de barca do que pela ponte. E como o velho e bom jornal O Fluminense, mais centenário até do que o JB, não poderia deixar de ser lembrado logo neste início de blog, segue a matéria abaixo, um clássico do jornalismo local repetido em centenas, milhares de pautas, no qual as autoridades prometem, projetam, e o povo espera.

Jornal O Fluminense, edição de terça-feira, 20 de setembro de 1994

"O melhor é continuar nosso trabalho. Se tudo der certo, ótimo. Se não, paciência".

Foto: Luiz Ackermann


A Secretaria Estadual de Agricultura, Abastecimento e Pesca espera começar ainda esse mês a construção do Centro de Beneficiamento Comunitário de Mexilhão, em Jurujuba. O centro é um projeto da Federação Instituto de Pesca do Rio (Fiperj) e vai ser responsável pelo tratamento do mexilhão pescado por todos os marisqueiros de Niterói e o conseqüente aumento da qualidade do produto. A associação Livre de Mariscultores de Jurujuba, por sua vez, espera que o projeto saia definitivamente do papel, depois de mais de três anos de espera.
O centro deverá ser construído numa área de 400 metros quadrados, ao lado do Colégio Fernando Magalhães. De acordo com o diretor da Fiperj, Marcos Bezerra de Menezes, o governo do Estado vai entrar com uma verba de R$ 108 mil para o material e a Prefeitura ficará responsável pelo restante da obra. O Fundo Life, da ONU, também participa do projeto, com a doação de US$ 30 mil para a compra de equipamentos. "Com o centro, vamos ter mais condições de combater os problemas paralelos causados pela extração e cultivo dos mexilhões, problemas esses de ordem ambiental, social e urbana", diz Marcos.
Na realidade, esse projeto é uma continuação do Parque Comunitário de Criação de Mexilhões, inaugurado em janeiro de 93 na Fortaleza de Santa Cruz. Esse parque diversificou a produção, que deixou de ser exclusivamente extrativista, e melhorou a qualidade do mexilhão, que já sai da Fortaleza com o certificado do Laboratório de Rações Alimentares (Lara) da UFF. A produção do Parque (900 kg de carne a cada quatro meses) ainda é pequena comparada aos 2000 kg diários pescados pelos marisqueiros de Jurujuba, mas o preço do mexilhão cultivado chega a ser até três vezes superior ao normal. "Até alguns restaurantes caros de Jurujuba, que não compravam o mexilhão daqui, estão adquirindo o produto do Parque, pela sua qualidade comprovada", conta Marcos.
No futuro centro de beneficiamento será feito o cozimento do mexilhão, além do desconchamento e do ensacamento. Atualmente, todas essas atividades são feitas precariamente, em mesas de madeira onde trabalham, em cada uma, de cinco a sete pescadores. A intenção da Fiperj é participar da administração e fiscalizar a produção nos dois primeiros anos e, depois, desse prazo, deixar tudo por conta dos pescadores. "Queremos fazer tudo dentro dos rigores técnicos, inclusive com o auxílio da UFF. Para isso, vamos participar da produção do centro nos dois primeiros anos", explica Marcos. Entre os equipamentos previstos para o novo centro estão panelões para o cozimento, mesas de aço inoxidável, balanças e refrigeradores para a conservação do produto.
Marcos avisou ainda que o centro vai atender a todos os marisqueiros de Niterói, não só de Jurujuba mas também da Boa Viagem, Praia das Flechas e Sandiz (Centro), por exemplo. Quanto ao cultivo na Fortaleza de Santa Cruz, considerada uma área mais propícia ao desenvolvimento do mexilhão por estar na boca da baía, sem tanta poluição, ele disse que esse tipo de atividade não vai afetar a pesca dos mariscos. "Ninguém vai deixar de ser marisqueiro. O que pretendemos é dar início a um processo de ordenamento da produção marisqueira. Os maiores produtores do mundo, como a Espanha, conciliam o cultivo com a atividade extrativista", explicou.
Mesmo com a promessa do governo do Estado de começar a construção do Centro de Beneficiamento de Mexilhão, a Associação de Maricultores de Jurujuba continua com motivos para reclamar da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Pesca. O presidente da Associação, Misael de Lima, 38 anos de idade e 20 de Jurujuba, diz que só vai acreditar no centro quando chegar o material para a construção. "Não dá mais para acreditar em papel assinado, pois já estamos na espera há três anos. O problema é que o tempo do Estado é um e o nosso é outro. Queremos soluções imediatas e o governo quer fazer um negócio a longo prazo", protesta.
A Associação de Jurujuba foi fundada há três anos e conta com cerca de 50 associados. Em todo o município, aproximadamente 300 famílias dependem da mitilicultura (cultivo e extração dos mexilhões) e a colônia de Jurujuba é responsável pela maior parte da produção - 2 mil quilos de carne por dia. "A demanda para o mexilhão existe, mas só falta o centro para que a qualidade dele melhore e tenhamos mais condições de disputar o mercado", diz Misael.
Apesar da insatisfação com a secretaria, os pescadores são gratos, em parte, ao trabalho desenvolvido pela Fiperj, desde a criação do Parque da Fortaleza de Santa Cruz. "Agradeço a eles pelo trabalho, que foi bom para o esclarecimento de coisas que antes não sabíamos, como o cultivo do mexilhão. O problema é que eles vieram com a idéia do centro, nós aceitamos e agora o projeto fica parado todo esse tempo", diz o diretor da associação, Heleno Nascimento, de 44 anos. "Se o Estado não fizer nada vamos sair pedindo e tentar fazer por conta própria. Precisamos desse projeto até para ter onde guardar a produção quando não conseguirmos vender", completa. Misael mantém sua desconfiança em relação à conclusão do centro. "O melhor é continuar nosso trabalho. Se tudo der certo, ótimo. Se não, paciência".

Barcos e mergulhos. Nem todos os marisqueiros do estado trabalham da mesma forma. Enquanto uns só extraem o mexilhão das pedras, exclusivamente para sua própria sobrevivência, outros possuem até compressores de mergulho e vão a até oito metros de profundidade para conseguir o produto. Os pescadores de Jurujuba não chegam a esse grau de desenvolvimento, mas estão entre os mais organizados.
Os marisqueiros estão dividido em categorias. Há, por exemplo, os lateiros, que só extraem o marisco das pedras para a própria subsistência e os guardam em latas. Eles são comuns na Boa Viagem e no Aterro do Flamengo, no Rio. A segunda categoria já extrapola a subsistência e chega a comercializar o produto, mas os marisqueiros não costumam ter barcos. Estes são comuns na Ilha da Boa Viagem e na Praia das Flexas, que também é reduto da terceira categoria. Esta já conta com pequenos barcos a remo, mas ainda não é tão desenvolvida como a colônia de Jurujuba (4a categoria), que chega a ir até as ilhas oceânicas para extrair o mexilhão.
Segundo Marcos, a quinta e mais desenvolvida categoria se encontra atrás da antiga Sandiz, no Centro de Niterói. "Eles mergulham até oito metros de profundidade para pegar mariscos". O diretor da Fiperj contou ainda que 90% da produção de mariscos do Rio são vendidos para São Paulo. Em Jurujuba, os pescadores costumam trabalhar no mar das 5h às 11h30, aproximadamente. Eles vão até as ilhas oceânicas (Cagarras, Maricá, Tijuca, Pimenta, Tucunduva) em até cinco barcos a motor, que chegam a levar de dois a quatro botes.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

PARA O ALTO E AVANTE!




Já disse a alguns amigos qual a minha definição de avião, um cilindro que transporta gente a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora. Diante dessa verdade inquestionável, ainda me admiro com quem diz, com a maior calma do mundo, que não tem medo de avião. Eu tenho.

Não deixo de viajar por causa disso, claro, mas viajo sempre com medo, e sem deixar de cumprir meus rituais. Nisso, aliás, sou extremamente rigoroso. Não quero saber se tem alguém me olhando, se estou viajando com o colega de trabalho que fica rindo da minha cara ou com a mulher que me olha como se eu fosse maluco. Faço sempre os trinta e dois sinais da cruz durante a viagem, metade no processo de decolagem e a outra metade durante a aterrissagem.

Também aperto o cinto de segurança, verifico o encosto da cadeira e prendo a mesa na poltrona da frente sempre que uma aeromoça ou o sistema de som do avião me mandam fazer isso, seja em que língua for. Se tem dado certo até hoje, por que eu iria parar, não é mesmo? Mas o engraçado é que nem sempre foi assim. Nas minhas primeiras vezes dentro de um cilindro com asas eu não fiz nada disso, talvez por empolgação ou por curiosidade, já que eu só fui entrar num avião pela primeira vez aos vinte e cinco anos de idade.

Foi numa viagem a trabalho do Rio de Janeiro para Campina Grande, na Paraíba, num daqueles vôos paradores da Varig, que antes de chegar ao seu destino aterrissou ainda em Salvador, Aracaju, Maceió e em Recife, onde trocamos de aeronave e seguimos rumo à terra do glorioso Treze.

Cinco decolagens, e eu sem medo algum. Me esforcei pra fingir naturalidade a viagem inteira, é verdade, mas medo, sinceramente, não senti, e olha que menos de um ano antes eu tinha participado da cobertura do Vôo 402 da Tam, aquele que vinha pro Rio e caiu em Congonhas antes, matando todo mundo dentro do avião e mais um pessoal em terra.

Confesso que às vezes olhava atentamente pra asa (porque eu sentei numa janela atrás da asa) tentando identificar o tal reverso, a peça responsável pela queda do Fokker 100, pelo menos de acordo com a cobertura jornalística da qual eu participara. Cheguei a me preocupar, de leve, com uma espécie de persiana na lâmina da asa, que abria e fechava à mercê do vento, até ser tranqüilizado pelo fato de que o avião estava no ar, em plena decolagem, seguindo seu trajeto normalmente.

Se a tal persiana fosse o reverso, nosso boeing 737-300 estaria no chão, em pedaços provavelmente, porque o reverso não podia abrir durante a decolagem. Entre as centenas de informações sobre a queda do Fokker 100 da Tam, foi essa a que ficou pra mim, tanto que não sei mais quantos morreram no acidente, nem no avião nem em terra, mas nunca mais me esqueci dessa sentença inquestionável da engenharia aérea: o reverso é para abrir na aterrissagem, não na decolagem.

Até hoje, quando estou prestes a entrar num avião ou mesmo quando já estou dentro dele, me vem à cabeça a frase

O reverso não pode abrir na decolagem.

Da mesma maneira que de vez em quando, do nada, me lembro de algum daqueles ensinamentos inesquecíveis da infância, tipo Antes de P e B vem o M, ou Embaixo é junto e Em cima é separado.

O medo na primeira viagem de avião, então, limitou-se a isso: breves lapsos de raciocínio sobre o funcionamento correto do reverso, que acabaram sendo ofuscados pela preocupação maior durante o tour aéreo pelas capitais nordestinas: identificar, do céu, os estádios de futebol das cidades onde aterrissei. Pena que o saldo tenha sido abaixo do esperado.

Vi a Fonte Nova em Salvador, mas nada do Rei Pelé em Maceió, ou do Arrudão no Recife. Ilha do Retiro e o estádio dos Aflitos, então, nem pensar. Em Aracaju avistei um campo de futebol aparentemente oficial, mas tão detonado e com umas arquibancadas tão pequenas que custo a crer que pudesse pertencer a clubes com a grandeza de um Confiança, de um Sergipe, ou mesmo de um Itabaiana.

Na segunda viagem de avião, a Cuba (parcialmente descrita no post abaixo), também não tive medo, pelo menos no início. Era minha primeira vez em solo estrangeiro, aos vinte e seis anos, e isso foi o suficiente para aplacar qualquer tipo de apreensão com o sucesso do vôo.

Então entrei tranqüilamente, sem receio algum, num Iliuch da companhia cubana de aviación, aeronave das mais peculiares já planejadas pela engenharia aérea soviética. Nosso Iliuch possuía quatro turbinas como boa parte dos aviões, mas com uma pequena diferença: todas ficavam na cauda da aeronave, nenhuma nas asas.

Não faço a menor idéia do que isso significa na parte mecânica do negócio, mas soa estranho. E se soa estranho pode muito bem causar algum tipo de receio, é até natural que cause. Só que em mim não causou, nem quando, já dentro do cilindro, o alquimista de origem germânica, possuidor de vasto conhecimento sobre aviões, quis ser engraçado e, referindo-se aos passageiros que passavam por nossas poltronas, soltou a frase:

Coitados, eles pensam que estão entrando num avião.

Cheguei a rir do comentário e permaneci assim, bem humorado, até a chegada a Havana, com direito a aplausos para o habilidoso comandante que conseguiu pousar aquele troço. Uns três dias depois, embarquei no Antonov citado no post abaixo ainda sem medo, até que, outros três dias após a visita à maravilhosa ilha das iguanas, uma imagem terrível iluminou minha mente, e nunca mais eu fiquei absolutamente tranqüilo dentro de um avião.

De novo no Iliuch, nos preparávamos para sair de Havana em direção a Cancún, no Mérrico. Eu, o nobre guevarista e o alquimista de origem germânica, porque o boleiro calvo, hipnotizado por algumas dezenas de uniformes de colegiais, deixou-se ficar em terras cubanas.

Não sentamos juntos dessa vez. Me lembro apenas que o nobre guevarista se encontrava na mesma posição de minha poltrona, umas três ou quatro fileiras à frente. Enquanto o avião fazia aquele trajeto angustiante em terra, de praxe antes das decolagens, mantive-me calmo. Até que na última curva surgiu a cena aterradora, no exato momento em que a aeronave soviética, ao som de suas quatro turbinas na traseira, posicionou-se para a arrancada final antes da subida aos céus.

Da pequena abertura de minha janela, avistei os restos de um avião aparentemente idêntico ao nosso, ou pelo menos pintado com as mesmas cores. Era um amontoado de ferro retorcido com uma única parte identificável: a barbatana da traseira, que pairava impávida no meio daquele cenário devastador, exibindo, para quem quisesse ver, o logotipo da companhia cubana de aviación.

Claro que aquele avião igual ao nosso tinha se espatifado ali mesmo, na pista ao lado da nossa, se bobear durante uma decolagem, e claro que esse foi o primeiro raciocínio a passar pela minha cabeça quando vi aquele monte de ferro com uma barbatana em cima. O segundo pensamento, lógico, foi uma pergunta.

Onde estava a porra do reverso?

Mesmo sem saber ao certo se a peça em questão ficava por lá, resolvi olhar fixamente pra asa (e até hoje olho, mas nunca consegui achar nada parecido com o reverso ali, a não ser as tais persianas). E ainda olhava para a asa quando as quatro turbinas na traseira do Iliuch quadruplicaram seus barulhos e avisaram, com esse sinal, que a aeronave já estava decolando.

Era preciso achar o reverso, sim, mas também era necessário algum apoio moral naquele momento, porque, porra, minha consciência tinha acabado de chegar, e ela me perguntava o que diabo eu estava fazendo dentro de um Iliuch soviético de uma companhia cubana, com quatro turbinas na traseira e em pleno processo de decolagem.

Olhei, então, para o nobre guevarista e vi uma careca empapada de suor, um rosto meio amarelado e um sorriso na minha direção que até então eu só tinha visto no cinema, em personagens que geralmente terminam os filmes dentro de uma camisa de força.

Ele nega até hoje, e diz que o meu rosto é que era a verdadeira imagem do pavor naquele momento. Não acredito, simplesmente porque, mesmo em pânico, consegui me controlar. Mantive-me quieto a viagem inteira, em silêncio, enquanto toda a minha vida passava pela minha cabeça como num filme.

Como não me lembro bem de como adquiri o hábito dos sinais da cruz, devo ter feito alguns nesse dia, mas de fora me comportei quase como uma dessas pessoas que, dentro do avião, agem como se estivessem na poltrona de casa, como se algum ser humano minimamente consciente pudesse se sentir em casa a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora.

Estava em pânico, sim, mas da maneira mais contida possível. E foi em absoluto silêncio e praticamente imóvel, com os braços fincados em seus homônimos da poltrona, que experimentei a agradável sensação da sobrevivência.

Quando o Iliuch e suas quatro turbinas na traseira pousaram em solo merricano, me senti um novo homem. Tinha enfrentado a morte e continuava ali, vivo, incólume, apenas com uma ligeira dor nos maxilares por causa do chiclete obrigatório das decolagens e aterrissagens (tinha esquecido de falar disso).

Saí revigorado daquele avião cubano, tão feliz que, já na passagem pela alfândega merricana, nem percebi o rosto esverdeado do alquimista de origem germânica, único entre nós a ser obrigado a abrir sua bagagem na frente de dois ou três sucessores do Sargento Garcia. Até achei engraçado quando uma bola de tênis saiu quicando da mochila de nosso amigo, provocando o riso dos policiais merricanos e encerrando prematuramente, de maneira muito bem humorada, a vistoria nas malas.

Só depois de sairmos do aeroporto, quando já estávamos no táxi, é que soubemos, eu e o nobre guevarista, que graças àquela bola o alquimista de origem germânica pôde passar pela alfândega merricana munido de um pequeno saco plástico alojado em uma de suas malas, embaixo de algumas meias, que continha umas quinze gramas da substância ilícita popularmente conhecida como maconha.

Mas não sei porque me alongo nesse episódio se o texto fala de aviões, medo e embate com a morte. Então voltemos ao tema principal desse relato para dizer que, desde essa viagem de Havana a Cancún, andar de avião passou a ser exatamente isso para mim: um embate com a morte, necessário, na minha opinião, a todo ser humano, principalmente a nós, machos, descendentes dos sujeitos que matavam mamute com tacape, dos caras que levavam óleo fervendo na nuca tentando invadir castelos e da galera que entrava num navio de madeira e partia pra dentro do oceano sem muita idéia do que ia encontrar pela frente.

A nós, homens do século vinte e um que não somos PMs no Rio nem fuzileiros navais no Iraque, cabe encontrar uma maneira digna de honrar a macheza de nossos ancestrais. Eu encontrei a minha. E se algum chato vier lembrar que, de acordo com as estatísticas, minhas chances de sobrevivência num vôo qualquer são muito maiores que as do soldado americano que desembarcou na Normandia, por exemplo, é só pedir que ele, o chato, vá lá no fim do século quinze, vire pra um marujo da caravela do Vasco da Gama (pra citar apenas o maior de todos os navegantes) e pergunte se ele não acha atitude de macho andar a onze mil metros de altura e a novecentos quilômetros por hora dentro de um cilindro.

Eu acho. E por isso faço questão de enfrentar meu medo de avião sempre que pinta uma chance pra isso*, até porque, pra compensar, poucas sensações na vida são mais agradáveis do que a caminhada, após a aterrissagem, por dentro daqueles braços gigantes de metal que fazem a ligação do avião até o aeroporto.

E outra coisa, só pra finalizar. O homem das cavernas que matava mamute, o cavaleiro que invadia castelo e o marinheiro da caravela portuguesa costumavam andar armados, pelo menos nos momentos críticos. Eu enfrento a morte desarmado, munido apenas dos meus trinta e dois sinais da cruz, metade no processo de decolagem e a outra metade durante a aterrissagem.

*Aqui cabe um adendo. Já andei de helicóptero duas vezes, uma deles numa viagem de uma hora e pouco mar adentro, até uma plataforma de petróleo na Bacia de Campos. Já sobrevoei os Andes num avião do Loyd Aéreo Boliviano, e cheguei a dormir durante essa viagem, ajudado pelo fato de ter sido acordado às quatro e pouco da matina, em La Paz, pra pegar o avião. Aliás, só pude apreciar de cima a beleza dos picos nevados da cordilheira andina graças à prestativa aeromoça boliviana, mulata daquelas que fazem feijoada em quadra de escola de samba. Isso porque ela, com seu batom cor-de-abóbora, chegou a me cutucar pra me acordar e perguntar se eu queria suco de laranja.
Andei ainda no Antonov da ilha das iguanas, movido a hélice, mas espero que nunca, jamais, em tempo algum eu precise entrar num avião monomotor. Acho que nesse caso minha coragem sofreria um sério abalo.
Também disse no texto que enfrento meu medo de avião sempre que aparece uma oportunidade, mas, na verdade, se tiver opção de escolha não pego avião para lugares que ficam a menos de seis horas de carro do Rio. Arriscar a vida para ir somente a São Paulo, por exemplo, sem que haja conexão alguma lá para um lugar mais distante, já é um pouco demais, até porque adoro dirigir na Dutra.

Abaixo, segue uma matéria referente ao tema, assinada também pela Gabriela Garcia

Jornal do Brasil, edição de sexta-feira, 18 de setembro de 1998

"Estávamos a 130 metros, começando a recuperar a aeronave, quando o outro helicóptero surgiu embaixo do nosso. Batemos no rotor principal (hélice) dele, que destruiu nosso esqui".

Duas pessoas morreram num acidente envolvendo dois helicópteros, na tarde de ontem, no Aeroporto de Jacarepaguá. O choque aconteceu às 16h45, quando o helicóptero da Riana Táxi Aéreo - modelo Bell 407, de prefixo PT YLZ - chocou-se com a aeronave da Nacional Aero Táxi (NAT), modelo Robson 22, de prefixo PT YPS. O Bell 407 fazia um treinamento de pouso, enquanto o Robson 22 realizava um vôo de demonstração. Cada helicóptero estava com dois tripulantes. Os dois mortos, o comandante André de Almeida Santos, 21, e Guilherme Fortes Thedim Costa, estavam no Robson 22. De acordo com a NAT, Guilherme havia fretado o helicóptero, que saiu do hangar da empresa às 16h05.
O choque aconteceu quando o Bell 407 finalizava um pouso de auto-rotação - procedimento usado em emergências, em que o piloto simula uma pane de motor, deixa o helicóptero descer bruscamente e só recupera o motor a poucos metros do chão. "Estávamos a 130 metros, começando a recuperar a aeronave, quando o outro helicóptero surgiu embaixo do nosso. Batemos no rotor principal (hélice) dele, que destruiu nosso esqui", contou o comandante Paulo Roberto Ferreira dos Santos, de 40 anos. Ferreira pilota há 17 anos e estava dando instruções a outro piloto, Luís Cláudio Florentino Gomes, 32, num curso de reciclagem.
Segundo o comandante Ferreira, o helicóptero que realiza um pouso de emergência tem prioridade sobre qualquer outra aeronave. O comandante disse ainda que não foi informado pela torre de controle do aeroporto sobre a presença do Robson 22 da NAT. "Eu vi o helicóptero deles na minha frente quando comecei a voar. Depois, não vi mais. Acho que houve algum desencontro na torre. Existe uma fita gravada que pode provar que não fui avisado de nada".
Depois do choque, o comandante conseguiu manter o controle de seu helicóptero e pousou mesmo com o esqui pendurado, a 200 metros do local do acidente. "Procurei uma duna, onde o terreno é fofo, porque estava com os esquis de pouso avariados", contou.
O comandante João Carlos de Souza de Oliveira, um dos fundadores da NAT, disse que só a gravação da torre de controle poderá determinar quem tinha a prioridade de pouso. "Geralmente, a aeronave que está mais baixa e na frente, como era o caso do helicóptero da NAT, tem a prioridade. Mas temos de ouvir a fita para ter certeza disso", declarou.
João Carlos, que afirmou ter 15 anos de experiência na área de investigação de acidentes, acredita em duas possibilidades para o acidente. "Pode ter havido falha de comunicação da torre de controle ou falta de atenção de um dos pilotos". O dono da NAT, Elzo Freitas, preferiu não especular sobre o acidente. "Só sei que nossa aeronave era nova e passava por uma manutenção constante, e que nosso piloto era competente. O resto é especulação".
De acordo com o superintendente da Infraero responsável pelo aeroporto, Manoel Abreu, o desastre será investigado pela Divisão de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Dipaa), do Departamento de Aviação Civil (DAC). "O DAC tem um prazo de 30 dias para concluir as investigações", disse Manoel.
Mesmo com a investigação do DAC, João Carlos disse que a NAT também fará uma investigação por conta própria. "Fazemos esse tipo de procedimento com o objetivo de prevenir novos acidentes. Achar os culpados é obrigação da polícia". O delegado da 16a DP (Barra da Tijuca), Antônio Serrano, afirmou que vai esperar para ouvir a fita e todos os que estavam na torre, de modo a tirar qualquer dúvida sobre o acidente. "Antes disso, não podemos tirar qualquer conclusão", disse. Luís Cláudio Gomes, que pilota há 10 anos, disse que sofreu seu primeiro acidente ontem. O Bell 407 custa US$ 1,5 milhão e tem capacidade para sete pessoas. O Robson 22 pode transportar dois tripulantes.
O Aeroporto de Jacarepaguá já registrou outros dois acidentes este ano. Em 24 de março, um helicóptero modelo Hughes, prefixo PT-HGP, avaliado em US$ 800 mil, caiu próximo à pista, durante um "sobrevôo de manutenção" - teste da mecânica do aparelho -, sem ferir o piloto, Carlos Lemos Mouzo, e seu companheiro de viagem, o auxiliar de mecânico Luciano Domingos Carneiro. Problemas no motor da cauda, após 15 minutos da decolagem, causaram a queda.
No dia 2 de maio, o monomotor Corisco prefixo PT-RZN, pilotado por Carlos Raposo, quebrou a roda dianteira no momento em que pousava em Jacarepaguá. O avião ficou desgovernado, deslizou na pista e foi parar num matagal ao lado. Apesar da desastrada manobra, o piloto e seu acompanhante saíram ilesos.
Acidentes com helicópteros têm sido freqüentes no Estado do Rio. No dia 4 de janeiro, o dono do Hotel Glória, Eduardo Tapajós, 68 anos, morreu no helicóptero que o trazia de Angra dos Reis para o Rio de Janeiro, quando o aparelho caiu no mar, perto de Mangaratiba, na Costa Verde. Eduardo viajava acompanhado da mulher, Maria Clara Pereira dos Santos, 53, e do casal de namorados Márcio Artiaga, 27, e Letícia Mello, filha do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello. Com exceção de Eduardo, que ficou preso no cinto de segurança e afundou com o helicóptero, todos conseguiram sair e ficaram boiando por duas horas, até serem resgatados por uma lancha.
Um acidente na mesma região que mobilizou a atenção do país foi o de 12 de outubro de 1992, em que morreu o deputado federal Ulysses Guimarães. O helicóptero decolara com o deputado acompanhado de sua mulher, dona Mora; do empresário e ex-ministro da Indústria e Comércio Severo Gomes; e da mulher deste, Maria Henriqueta, rumo ao Rio de Janeiro. Ninguém sobreviveu.