sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O PINTOR DO PRESÍDIO

A dica veio do co-piloto de Honório, o Gurgel, que estivera lá dentro antes para cobrir um campeonato de futebol. Tinha um preso de Bangu III que era pintor, e que até pintava bem, e que também tinha histórias de viagens pela Europa na infância, com um avô adotivo inspirador. O co-piloto fez matéria com o cara pro jornal onde trabalhava, lógico, mas era uma edição de sábado e, sabe-se lá por quê, a matéria caiu no segundo clichê. Deu então a dica e, antes mesmo do lançamento da revista, o repórter entrou no presídio, falou com o diretor, depois com presos mais participativos, pra não dizer líderes, entre eles o chefe do tráfico da Mangueira, com a camisa do Madureira, e o assassino das antigas, com o uniforme do São Cristóvão, e foi com eles até a rouparia da prisão, um quarto pequeno tomado nas paredes pela estante de quadradinhos, com um jogo completo de camisas de um time qualquer em cada quadrado, pro tal campeonato. E depois de ver isso tudo, de ser muito bem recebido, com toda a educação e a polidez, o repórter finalmente encontrou o pintor num amplo salão, bem iluminado e arejado, onde ele parou um pouco de dar os retoques finais na reprodução em tela da foto do chefe do tráfico na Mangueira com a mulher dele, uma das diversas encomendas que recebia de outros presos, para contar a história aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição número 5, de 6 de setembro de 1999

"Está vendo esta tela? Eu sou o gelo e a cela é o deserto".

Quando tinha oito anos, Flávio Balbino Cardoso saiu de Cabo Frio, na Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro, e visitou o Museu do Louvre, em Paris, para conhecer a obra dos grandes mestres das artes plásticas. Sua avó trabalhava como governanta na casa do pintor francês Jean Guillaume, artista que figura no Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, de José Roberto Teixeira Leite. Quando Guillaume morreu, 11 anos depois, Flávio trocou a residência de Cabo Frio – onde teve uma vida confortável, que o pintor, tido como seu avô adotivo, pôde lhe proporcionar – para morar com a mãe, Anuzia Cardoso Reis, no subúrbio de Jacarepaguá, no Rio. O garoto não herdou bens, mas ficaram-lhe as lembranças e um ofício. "Desenvolvi meu talento para a pintura com meu avô", conta.
A morte de Guillaume selou o destino de Flávio. Sem emprego fixo, passou a praticar pequenos furtos. Aos 19 anos, tornou-se assaltante. Em 1996, respondeu a dois processos por roubo. Foi preso em flagrante em 1997, quando roubava um malote com R$ 13 mil de um office-boy na saída de um banco no Rio. Hoje, aos 26 anos, Flávio cumpre pena no presídio de segurança máxima Bangu III, na zona oeste do Rio. Foi condenado a 24 anos e 8 meses de reclusão, em três processos por assalto a mão armada. Foi-se a liberdade, mas novamente restou-lhe a pintura como refúgio: "Está vendo esta tela? Eu sou o gelo e a cela é o deserto", diz, apontando o quadro recém-concluído.
Flávio idolatra o impressionista francês Monet, mas diz estar atravessando uma fase surrealista. Tal qual o avô, cuja pintura era caracterizada como "uma bem dosada mescla de elementos realistas e levemente surrealista", segundo o Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. O detento sonha com o dia em que vai poder retratar o fim de sua agonia. "Perdi muito tempo da minha vida. Quero sair daqui e viver da pintura", planeja.
Além do Louvre e de Paris, Flávio também conheceu Londres e percorreu diversas cidades francesas ao lado do avô de criação. O sonho durou seis meses, período importante para aprimorar os conhecimentos. "Conheci a casa do Monet", diz ele. A viagem também serviu para estreitar os laços que uniam o avô ao neto adotivo. "Foi lá que decidi seguir a carreira de pintor", conta Flávio. "E meu avô foi meu exemplo."
Em 1996, quando já vivia do crime, o pintor chegou a expor seus quadros num hotel da cidade catarinense de Itá – onde estava foragido, no sítio de um amigo. A iniciativa, porém, não foi suficiente para fazê-lo mudar de vida. O crime ainda era prioridade para Flávio, que deixava em segundo plano a produção de suas obras. "Demorava seis meses para terminar um quadro", diz. O pintor foi preso em uma rápida passagem pelo Rio, quando tentava ganhar mais dinheiro para voltar a Santa Catarina e presentear o filho Bruno, 4 anos, fruto de um breve relacionamento com uma namorada.
Hoje, o neto de Guillaume trabalha num ateliê improvisado dentro do presídio e divide com outros três prisioneiros uma cela de oito metros quadrados, com dois beliches e um vaso sanitário. O detento tem direito a descontar um dia de sua pena para cada três dias de trabalho. A atividade também rende outros benefícios. Flávio vende suas telas aos colegas de prisão por preços que variam entre R$ 100 e R$ 500, de acordo com o tamanho.
Sua rotina é a de um artista em tempo integral. Às 9 horas, deixa a cela que ocupa com outros presos e vai direto para o ateliê. Só volta às 17 horas. "Só paro de pintar para comer", diz Flávio, que planeja uma exposição na prisão. O diretor de Bangu III, Lafaiete Barsotelli Fragoso, 48 anos, conta que os primeiros dias na cadeia não foram fáceis. Flávio era arredio e encrenqueiro. Só mudou o comportamento depois que passou a ter uma atividade. "Decidimos abrir o ateliê de pintura e, desde então, ele se tornou um preso nota dez", afirma Fragoso. Na cadeia, a proximidade com presos considerados de alta periculosidade não o assusta. "Os líderes daqui sabem quando alguém não é do crime e aconselham a pessoa a largar a bandidagem. É o meu caso."