segunda-feira, 13 de maio de 2013

FERNANDONA

Na primeira entrevista, tudo deu errado. Era um dia corrido na casa da entrevistada, o mesmo que ela escolhera para marcar com um monte de jornais, revistas, tevês etc... Meia hora pra cada um. No limite, estourando, quarenta minutos. E o repórter pode botar a culpa no corre-corre daquele dia, com toda aquela gente em volta esperando, preparando a luz, mas o fato é que, diante do tamanho da entrevistada, solícita, educada e bem disposta mesmo com hora marcada pra terminar, o repórter tremeu. Tremeu no sentido de seguir a pauta simplória, meio clichê, e não ir além disso, rápido, sucinto, pra depois dar seu jeito de apresentar algo minimamente apresentável, numa matéria que não escapou de algumas críticas de um ou outro superior. Passaram-se os anos, no máximo três, e o repórter foi de novo pautado para entrevistar a mesma personagem, na mesma cobertura de frente pro mar, dessa vez para uma série em fascículos da revista, que nada mais era do que uma biografia resumida de gente fora de série. E tome estudo, tome preparação para a matéria cujo terceiro dos quatro capítulos está aí embaixo.


Revista Istoé Gente, edição 228, de 15 de dezembro de 2003

“A sorte foi que Fernando sentou na cama e se dobrou para apagar a luz. Neste movimento, a bala passou pela vidraça e se alojou no teto”.

Bem-humorada, Fernanda Montenegro costuma dizer que seu filho, Cláudio, 40 anos, foi “educadinho” desde o nascimento. Em 1963, ela acumulava o trabalho na sua companhia teatral, o Teatro dos Sete, com o Grande Teatro Tupi. Sua única folga era na segunda-feira, justamente o dia em que seu primogênito nasceu. “Fui até onde deu”, conta a mãe de Cláudio e Fernanda. Quando esperava o primeiro filho, a atriz era a protagonista da novela A Morta Sem Espelho, de Nelson Rodrigues, na Tupi, mesmo ostentando uma barriga de oito meses. “Eu era a mocinha da história, só de close”, diverte-se.
Na gravidez de Fernanda Torres, nascida em 1965, não foi diferente. Convidada por Walter Clark, que saíra da TV Rio para reformular a recém-inaugurada programação da tevê Globo, encenou grávida o teleteatro da nova emissora. No período entre os dois partos, ainda estreou no cinema em A Falecida (1964), de Nelson Rodrigues, encenou a peça Mary, Mary (1963), de Jean Kerr, e retomou o trabalho no Teatro dos Sete, interrompido na gravidez de Cláudio, com Mirandolina (1964), de Carlo Goldoni. “Nem sei como foi. Os projetos foram chegando e eu fui fazendo. Gravidez não é doença, né?”

Mas o acúmulo de trabalho em meio ao nascimento dos dois filhos não seria a única dificuldade daquele período. Com o golpe militar de 1964, a censura passou a ser um tormento para os artistas no País, e não foi diferente com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Em cada município onde o Teatro dos Sete se apresentava, o grupo tinha de encenar a peça para o censor local. Por conta disso o espetáculo mudava de cidade para cidade, provocando situações inusitadas como em 1966, na temporada da peça O Homem do Princípio ao Fim, de Millôr Fernandes. Com várias citações, de Shakespeare a Santa Teresa D’Ávila, o texto da peça confundiu o censor de uma apresentação em Curitiba, que foi logo anunciando seus cortes:
– O trecho de Santa Teresa não pode porque é muito forte. Millôr entrou com mão muito firme aí.
– Mas não foi o Millôr. A oração de Santa Teresa é assim. Ela não está falando algo que o Millôr escreveu. Está falando o que a própria Santa Teresa D’Ávila escreveu.
– A Santa escreveu isso?, perguntou o censor.
– Escreveu, responderam os atores.
– Bom, se a Santa escreveu isso, então pode.

No fim dos anos 60 e início dos 70, a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, produzida por Fernando Torres, foi proibida, assim como O Elefante no Caos, de Millôr. Numa época de brigas em teatro e ameaça de bomba, experiência vivida pela própria Fernanda durante a encenação de A Volta ao Lar, em São Paulo, produzir peças virara uma profissão de risco. “Tudo ficou muito difícil. Eram prejuízos, dificuldades econômicas e insegurança”, lembra a atriz.
Apesar de tudo, foi no teatro que Fernando e Fernanda decidiram ganhar a vida. Após dois anos em São Paulo, entre 1967 e 1969, quando tiveram um bom salário na TV Excelsior, os dois foram surpreendidos pela falência da emissora. Por sorte, economizaram o dinheiro ganho na tevê até que, em 1970, o produtor Oscar Ornstein convidou Fernanda para atuar em Plaza Suíte, de Neil Simon, no Rio. Fernando ainda ficou um ano em São Paulo até reencontrar a mulher e os filhos no Rio, em 1971.
Após dezoito anos de união, o casal tinha, finalmente, uma perspectiva de futuro planejado, e em cima do teatro. As falências da Excelsior e da TV Rio, aliadas à instabilidade de emissoras como a Tupi, contribuíram para essa decisão. “Perdi a crença na televisão como empresa”, diz Fernanda, que nem na Globo aceitou ser contratada. “Acho a Globo um extraordinário patrão, mas me reservei o direito de não estar presa a um contrato.”
Nos tempos difíceis, a atriz ainda teve de criar dois filhos pequenos. “Depois que passa, a gente vê que foi possível. Mas na hora, cada dia vivido era um ganho enorme”, diz Fernanda, que emancipou juridicamente os filhos quando eles chegaram aos 16 anos. Para evitar a necessidade de dar autorização para viagens e trabalhos, a atriz tomou a decisão em conjunto com o marido, mas quase se arrependeu ao descobrir as concessões que teria de fazer ao ler o texto da emancipação. “A leitura é de você dizer ‘não vou assinar isso’, mas assinamos e não nos arrependemos. Dali em diante tanto o Cláudio quanto a Fernandinha foram cuidar da vida deles”, lembra.
Com a filha, ela contracenou pela primeira vez em 1981, na novela Brilhante, de Gilberto Braga. “Era muito nova. Tive mais a sensação de estréia numa novela do que de contracenar com minha mãe”, conta Fernanda Torres, que elege a peça The Flash and Crash Days, de Gerald Thomas, de 1993, como o verdadeiro ponto de encontro com a mãe. “Ali vivemos uma parceria de verdade. Tinha hora que virávamos duas palhaças em cena”, lembra Fernanda.
Muito antes de dividir a cena com a filha, porém, a atriz viveria a experiência mais traumática do regime militar. Hospedada na casa do diretor Celso Nunes em 1979, durante temporada da peça É, de Millôr Fernandes, em São Paulo, os atores estavam se preparando para dormir quando um tiro quebrou a vidraça do quarto. Se estivesse em pé, Fernando Torres, que contribuíra financeiramente com as greves de office-boys e bancários, seria atingido. “A sorte foi que Fernando sentou na cama e se dobrou para apagar a luz. Neste movimento, a bala passou pela vidraça e se alojou no teto”, lembra a atriz, sem esquecer o pânico daquela madrugada, quando ainda foram dados vários telefonemas para a casa de Celso, quarenta minutos após o tiro. Do outro lado da linha, só o som de uma respiração. A partir daquele episódio, o fim lento e gradual da ditadura daria tréguas à família de Fernanda. Já em 1980, a atriz participaria, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, do sucesso de Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman. Era o seu quinto filme no cinema, veículo que dezoito anos mais tarde a levaria à consagração internacional.