sexta-feira, 18 de abril de 2008

ROMÁRIO

Quando se tinha treze anos, ainda mais em 1985, poucos programas eram mais atraentes do que passar a tarde de sábado na casa do amigo que tinha alugado duas máquinas de fliperama. A não ser que, já na casa do amigo, no meio da segunda corrida de auto-pista – entre uma batida na traseira de um retardatário e algumas derrapadas no gelo –, aparecesse o primo mais velho dele, com duas cadeiras cativas do Maracanã, e perguntasse quem queria ver Vasco e Bangu.

Poucos minutos depois, mãe devidamente avisada pelo telefone, estávamos no vagão do metrô, eu e o primo do amigo, o magnânimo Guimba, rumo à linha dois.

O Bangu era time grande. Disputou até final do Brasileiro naquele ano e tinha no elenco, além de Mococa e Gilson Gênio, um sujeito chamado Mauro Galvão, que viria a gritar Casaca embaixo da Libertadores, no centenário. O Vasco não ganhava deles há três anos e nada mudou depois daquele 1 a 1. Tomamos 1 a 0 no início do segundo tempo, Vítor contra, se não me falha a memória, e empatamos uns quinze minutos depois, num gol que talvez seja o mais repetido na história do futebol mundial.

Roberto Dinamite, nosso artilheiro maior, veterano, cabelo branco, enfia com açúcar da meia-lua pra dentro da área, lado direito da defesa, e um garoto recém saído dos juniores, que despontava como artilheiro da Taça Guanabara na quarta ou quinta rodada, surge em diagonal da esquerda e... Bem, aí o goleiro sai, o cara toca de bico, de direita, a bola morre no canto, meio devagar, suave, aquela coisa toda que já virou banalidade há algum tempo.

Só no ano passado, quando o Romário estava para fazer o milésimo, é que percebi, examinando a listagem dos gols, que aquele contra o Bangu tinha sido o primeiro dele no Maracanã como profissional. E como sou dado a atitudes nada racionais quando o assunto é futebol, e estava satisfeito com o fato de vê-lo com a camisa do meu time de novo, no fim da linha, resolvi que teria de assistir também, in loco, o último gol dele no Maraca. Não porque o cara surgiu para o futebol na Colina Histórica, nem porque ele, além da Copa de 94, foi fundamental na conquista de outro tetra, esse restrito aos torcedores de um determinado time, que vem a ser também o primeiro campeão continental do planeta.

Depois de Pelé, Romário foi o único jogador que realmente transcendeu quaisquer paixões clubísticas. Dentro de campo, foi unanimidade, motivo de clamor popular pelo menos até os 36 anos de idade, como mostra a matéria lá embaixo. Ninguém implicou com seu peso, ninguém jamais colocou em dúvida sua capacidade em jogos decisivos, ninguém o chamou de foca de circo e, principalmente, ninguém tem guardada na memória uma falha capital dele que tenha decidido campeonato ou eliminação em Copa do Mundo. E mesmo quando começou a ser criticado não apenas por seu comportamento fora das quatro linhas, dos 37 em diante, o cara ainda calou a boca de muita gente.

Foi artilheiro do Campeonato Brasileiro aos 39 anos (depois de ter sido aos 35) e na busca pelo milésimo, aos 41, fez 13 gols em 13 jogos até chegar ao objetivo maior. E fez tudo isso com a camisa do Vasco, graças a Deus. Romário já reconheceu algumas vezes que São Januário é sua casa no futebol, beija a mão de Pai Santana e é chamado de filho pelo roupeiro Severino. Também cansou de enaltecer a tradição e a força da camisa vascaína em entrevistas antes e depois de jogos, mas jamais declarou amor à Cruz de Malta. Flertou com os inimigos algumas vezes – em passagens sem títulos significativos pelo carcomido gramado da Gávea e pelo extinto estádio das Laranjeiras – e de vez em quando, instado por perguntas capciosas de uma mídia parcial, enaltece a torcida de determinado time, tida como a maior do Brasil, só pra manter a popularidade em alta. Mas sempre afirmou torcer pelo América. Jogada de mestre. Com isso angariou a simpatia de uma cidade inteira e de todo o país, apesar de alguns jornalistas de determinado estado acharem, até 1994, que Müller era melhor que ele, assim como pleiteavam a entrada de Zetti no lugar de Taffarel. Opiniões bastante estranhas, que só o bairrismo exacerbado pode explicar.

Roberto era chamado de velho e botinudo (vejam que absurdo) por torcedores rivais. Zico era bichado. E amarelão, claro. Edmundo às vezes ouve o coro nada agradável de as-sas-si-no e Renato Gaúcho cansou de ser brindado com ofensas colocando em dúvida sua propalada masculinidade. Romário, que eu me lembre, jamais ouviu coros dessa natureza.

Iludidos pela competência marqueteira do cara, os flamenguistas realmente acreditam que ele é rubro-negro, e não o vaiaram nem quando tomaram de cinco do maior rival, com três gols dele, o que já aconteceu duas vezes, uma delas numa final. O cara até deve ter sido xingado num jogo ou outro, mas nunca com aquela vontade de chicotear alguém, que de vez em quando pinta na arquibancada do Maraca. As torcidas o respeitavam, todas o tratavam com deferência. Todas, menos uma.

Romário virou unanimidade mundial em 1994, depois de despontar na Europa pelo PSV da Holanda e ser contratado pelo Barcelona. Antes disso, passou oito anos em São Januário, dos 14 aos 22. A torcida vascaína o conhece desde moleque. Na decisão de juniores de 84, ele meteu três em dois jogos contra o Flamengo e o Vasco foi campeão. No ano seguinte, entrou nos profissionais para só sair em 88, bicampeão carioca, em duas finais contra o Flamengo.

Nesse tempo foi tratado primeiro como promessa, depois como artilheiro dos mais competentes, mas nunca como intocável.Chegou a ser sacado do time no intervalo de uma final de campeonato, numa das maiores burrices da história do futebol. E quando voltou ao Brasil para defender as cores de Exu, foi tratado como deveria, mesmo que com a camisa rubro-negra tenha amargado dois vices no ano do centenário do clube, quando eles não ganharam nada (ou melhor, ganharam uma Taça Guanabara).

A torcida do Vasco, então, passou a ser a única que de vez em quando o xingava com aquela vontade de dar uns tapas. O coro “Ei! Romário! Vai tomar no ...” foi entoado algumas vezes em arquibancadas cruzmaltinas, inclusive quando ele vestia a camisa bicampeã sul-americana. Discordo disso, mas torcedor sabe como é, né? Geralmente não raciocina muito.

Romário é ele e mais ninguém. Pensa nele antes de tudo e escolhe suas declarações de acordo com seu interesse. Dentro do campo, foi o maior jogador de futebol brasileiro que a geração nascida de 68 pra cá viu atuar. Superou Pelé em número de gols marcados em jogos oficiais, o que o torna, oficialmente, o maior artilheiro de todos os tempos. E se Pelé virou Deus nos gramados e comete tantas estultices fora dele, porque Romário seria diferente?

Por isso não xingo o cara nem me importo muito com o que ele fala. Fico com os atos, no caso o que ele fez dentro do gramado com a camisa dos times em que atuou. Com a camisa do meu time, Romário conquistou um campeonato brasileiro, dois estaduais, três Taças Guanabara e duas Taças Rio. Foi também artilheiro em quase todas as competições e, pra arrematar, fez três gols na maior virada da história do futebol, na decisão da Mercosul de 2000.

Por tudo isso, vinte e dois anos depois daquele jogo contra o Bangu, tava lá no Maraca quando ele fez seu último gol no estádio, contra o Flamengo, num jogo em que a torcida adversária saiu celebrando seu goleiro após a derrota por 3 a 0. Fui também a São Januário, uns setenta dias depois, para testemunhar das sociais o último gol da carreira do cara.

Ele já tinha feito um, de pênalti, e o Vasco ganhava do Grêmio por 2 a 0. No finzinho do primeiro tempo, o meio-campo vascaíno puxa um contra-ataque e de pé em pé a bola sobra para Romário, desmarcado na marca do pênalti e de costas para o gol. Ele domina, gira o corpo e toca rasteiro, suave, na saída do goleiro Galato. Durante essa jogada, antes de a bola chegar aos pés de Romário, parte dos refletores de São Januário se apagou.

A matéria abaixo foi assinada também pelo Eduardo Minc, que apurou muita coisa. O Romário não quis dar entrevista na época. Tivemos de dar nosso jeito pra conseguir as aspas dele

Revista Istoé Gente, edição 145, de 13 de maio de 2002


“Já passou, vida que segue. Não tá nada perdido. Meu nome já tá na pedra.”
(Foto: Marcelo Theobald)

Na segunda-feira 6, o atacante Romário, 36 anos, acordou cedo na casa da mãe, Lita, em São Conrado, no Rio. Foi à praia, voltou meio-dia e dormiu um pouco mais. Antes de retornar ao quarto, tomou uma xícara de café e, reparando na ansiedade dela, disse: “Mãe, não fica muito entusiasmada que é certo que eu não vou estar nessa lista”. Duas horas depois, o anúncio dos 23 convocados pelo técnico Luís Felipe Scolari para disputar a Copa do Mundo confirmou a previsão do artilheiro vascaíno. Apesar do clamor popular que fez com que até o presidente Fernando Henrique Cardoso pedisse sua convocação, o segundo maior goleador da história do futebol mundial, atrás apenas de Pelé, ficou de fora da seleção brasileira.
Autor de 835 gols na carreira e campeão da Copa de 1994, quando foi considerado o melhor jogador do mundo, Romário deixou a casa da mãe e foi visitar o pai, Edevair, que ouviu do filho: “É, pai, não tem jeito, o homem (Felipão) tem bronca de mim”. À noite, foi à pelada no Clube Caça e Pesca, na Barra da Tijuca. O jogo, que começou às 21h e durou 40 minutos, terminou 7 a 6 para o time de Romário, que fez dois gols. Depois, passou na churrascaria Pampa Grill, também na Barra. Lá foi aplaudido ao chegar, jantou e ficou até meia-noite e meia. O atacante estava triste, mas tranqüilo. Na mesa com amigos como o fisioterapeuta Fernando Lima, o Zé Colméia, ele disse: “Não importa se estou fora dessa seleção do Felipão. O importante é que estou na seleção do povo”.
Calado, apenas concordou com a cabeça quando os amigos disseram que o erro foi terem dado todo o poder a uma pessoa só, referindo-se a Scolari. “Ele disse que não tem nada contra o Felipão e não entendia porque não era convocado, só queria fazer gols com a camisa da Seleção”, contou o economista Hélio Calvano, 54 anos, que estava na churrascaria.
A tristeza de Romário afetou os filhos. Para Moniquinha, 12, e Romarinho, 8, o clima é de velório. “ A Moniquinha falou com o pai na noite de segunda-feira, pelo telefone, e chorou depois que desligou. Ela só conseguia perguntar por que ele não tinha sido convocado”, contou Mônica Santoro, 31 anos, ex-mulher de Romário. Romarinho ficou calado quando soube. Mas depois mostrou que isso não abalou sua convicção. “Não tem importância. Meu pai ainda é o melhor do mundo”, disse à mãe.
Artilheiro e campeão por todos os clubes que passou – desde o início no Vasco, passando por PSV da Holanda, Barcelona, Flamengo e a volta ao clube que o projetou –, o goleador coleciona polêmicas. Na Copa de 1994 nos Estados Unidos, teve um caso com a modelo Andréia Oliveira, que detonou sua separação da primeira mulher, Mônica. Casado hoje com Danielle Favato, mãe da filha Danielinha, vive sob rumores de nova separação, nunca confirmada.
Oficialmente mora com a mulher na cobertura do condomínio Varandas da Barra. É um dos bens de seu patrimônio. Ele tem dois apartamentos no condomínio Golden Green, onde um imóvel vale até R$ 2 milhões, e um apartamento em frente à praia da Barra, em que mora a ex-mulher. Possui ainda um prédio de quatro andares na Vila da Penha. Dono de um Porsche vermelho, uma caminhonete Mercedes e um Audi A4, Romário emprestou R$ 9 milhões ao Vasco para cobrir dívidas. E o valor do contrato com a Coca-Cola é guardado a sete chaves.
A ausência na Copa não é a primeira decepção. Em 1996, ficou fora do time de Zagalo para as Olimpíadas de Atlanta. Dois anos depois, foi cortado, por contusão, dias antes da estréia na Copa da França. A última frustração foi em 2000, quando Vanderlei Luxemburgo não o chamou para as Olimpíadas de Sydney. Dessa vez, Felipão admitiu que deixou de chamar Romário não só por questões táticas. Segundo o técnico, contribuiu o fato de o atacante ter disputado amistosos do Vasco no México. Na época disse que faria uma cirurgia no olho para ser dispensado da seleção que jogaria a Copa América na Colômbia, em julho de 2001. "Romário não foi à Copa América porque o próprio Felipão o dispensou”, desmente o presidente do Vasco, Eurico Miranda.
Outro motivo para a decisão do técnico da Seleção teria sido uma indisciplina do artilheiro em Montevidéu, quando a seleção estava concentrada para o jogo contra o Uruguai pelas eliminatórias. Segundo um empresário ligado a Felipão, o treinador perdeu a confiança em Romário porque o craque, mesmo sem sair do hotel onde a seleção se hospedara, teria passado a noite com uma aeromoça na antevéspera do jogo, realizado no dia 1º de julho. A tripulação do avião que levou o time se hospedou no mesmo hotel. Na véspera da partida, Romário foi o único ausente da entrevista coletiva concedida pelos jogadores.
Amigos de Felipão, como o presidente de honra do Grêmio de Porto Alegre, Fábio Koff, acham que o craque não vai à Copa por opção tática. “O futebol do Felipe é coletivo, e o Romário não se ajusta a isso”, disse o cartola, que sempre almoça com o treinador. “Ele só me pedia para não falar do Romário nos almoços.” Mas não faltou quem tentasse mudar a opinião de Scolari. Um empresário ligado a Ricardo Teixeira garante que o presidente da CBF sugeriu que o craque fosse à Coréia ao
menos como reserva “para atender ao apelo popular”. Já Eurico Miranda tem certeza de que Antônio Lopes – técnico que lançou Romário como profissional do Vasco, em 1985, e hoje é coordenador da seleção – é a favor da convocação. “Não digo as sugestões que dei porque isso é uma questão interna. Fico com a decisão da comissão técnica”, disse Lopes. Romário já disse a amigos que agora só quer buscar o milésimo gol. A quem não conseguia controlar a revolta, como o empresário e amigo Luizinho Moraes, o craque deu seu recado. “Já passou, vida que segue. Não tá nada perdido. Meu nome já tá na pedra.”

terça-feira, 15 de abril de 2008

COMUNICADO À MULTIDÃO DE LEITORES

Brasileiros e brasileiras,

Hoje o Relatos completa um ano. E para comemorar essa data tão importante, motivo de júbilo e celebração nos quatro cantos do planeta, a equipe do blog, num esforço hercúleo de reportagem, resolveu presentear vocês, nossos infinitos leitores, com um novo visual, só tornado possível graças a uma inovação tecnológica das mais modernas.

Fotos. Isso mesmo, o Relatos agora passa a exibir fotos. Graças ao sábio conselho de Gustavo de Almeida e à inestimável contribuição de Marlos Mendes, resolvi tomar vergonha na cara e aprender como se publica imagens nesse troço. E não é que é fácil? Gostei tanto que decidi ilustrar o blog todo, desde o primeiro texto. O resultado vocês conferem aí embaixo. Um Relatos mais leve, jovial, com fotos que, reparem bem, combinam direitinho com o texto. Coisa de louco.

Curtam, caros leitores, deleitem-se, apreciem o novo layout dos textos antigos, agora cheios de fotografias legais. Enquanto isso eu vou ali e só devo voltar em maio, ou junho. Não levem a mal, mas tive de reler esta josta de cabo a rabo pra botar as fotos. Preciso de um descanso. Mas quando voltar prometo tentar atualizar o blog pelo menos quinzenalmente, se é que alguém perguntou alguma coisa. Na verdade, até pensei em escrever algo hoje sobre o Romário, mas como ele só anunciou o fim da carreira ontem, é melhor esperar uns dias, pra não pagar o mesmo mico que certos figurões da imprensa "especializada". Então darei um tempo aqui, e deixarei com vocês esse belo blog ilustrado. Divirtam-se.

P.S. Também aprendi a fazer links. Agora tenho domínio total da máquina. Não sei onde vou parar. Quer dizer, sei sim. Não publicarei vídeos. O blog aqui é mídia impressa.

E como a novidade da vez são as imagens, abaixo vai a matéria sobre o inusitado que talvez, quem sabe, poderia ser previsto, o acaso que faz parte da profissão e que, nesse caso, fez a equipe de reportagem sair pra fazer a simulação e voltar com a realidade, mas tudo com uma foto bem sem graça, pra que o leitor desça logo e confira todas as ilustrações dos textos antigos.

Jornal do Brasil, edição de quinta-feira, 16 de janeiro de 1997


Em vez de resgatar o casal de atores que participaria da simulação, a equipe teve de socorrer, às pressas, o motorista de um dos carros; ele feriu o rosto por estar sem cinto de segurança.

O que seria apenas um treinamento de resgate da Med-Rio, responsável pelo socorro médico na rodovia BR-040 (Rio-Juiz de Fora), acabou ganhando contornos dramáticos na manhã de ontem. Momentos antes de uma simulação de salvamento que marcaria o início de uma campanha de respeito às regras de trânsito, a imprudência de um motorista causou um acidente entre quatro carros, exatamente onde seria realizado o treinamento, no quilômetro 116 da estrada, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Em vez de resgatar o casal de atores que participaria da simulação, a equipe teve de socorrer, às pressas, o motorista de um dos carros; ele feriu o rosto por estar sem cinto de segurança.
O acidente foi às 10h22, quando um Monza cinza reduziu a velocidade ao passar pela simulação, para ver o que estava acontecendo. Um Santana cinza (placa BIK 1818), um Chevette branco (LJN 5677) e um Gol cinza (KQL 1339) não conseguiram frear e houve o engavetamento. Cláudio Santos Lourenço, de 27 anos, que dirigia o Chevette e não usava o cinto, foi socorrido e levado para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no Rio. Ele foi submetido a uma cirurgia plástica no rosto.
Para o chefe da equipe da Med-Rio, César Fontes, o acidente de ontem é um exemplo do descaso com a segurança no trânsito. "Primeiro, um motorista reduz a velocidade repentinamente. Depois, outro se machuca porque não usava o cinto. É por isso que em oito meses na estrada, já socorremos quase 2 mil vítimas, em cerca de mil acidentes", disse. Treze funcionários da Med-Rio e seis homens da Polícia Rodoviária Federal participavam da simulação.

domingo, 13 de abril de 2008

NO TOPO DO MUNDO

Os pulmões já estavam relativamente habituados ao ar rarefeito do Lago Titicaca e resolvemos explorar a esmo, como quem não quer nada, a bela Ilha do Sol, situada em área patrulhada pela valente marinha boliviana. Éramos eu, o repórter do Estadão e a repórter da Folha, muito bonita por sinal, e andamos uns dez minutos da pousada ao povoado.

Só existe encosta na Ilha do Sol, então o povoado, de casas paupérrimas entre as vielas sempre em ladeira, a subir ou descer, tinha lá suas semelhanças com uma favela carioca. As diferenças, porém, eram bem maiores. A começar pela paisagem, muito mais bonita que a do Vidigal, por exemplo, e quem conhece a vista do alto do Vidigal pode até duvidar disso, mas sem razão, se bem que gosto não se discute.

O Vidigal tem uma vista linda mas é favela grande, em região metropolitana, e o povoado da Ilha do Sol é afastado até do principal posto da marinha da Bolívia, que por falta de mar no país só tem mesmo o Lago Titicaca para navegar. E naquele dia, sem ninguém nas ruas ou nas janelas, a não ser um tiozinho desolado numa venda às moscas, o povoado parecia ainda mais distante do resto do mundo.

Até que nos deparamos com o cemitério local (um terreno do tamanho de uma quadra poliesportiva, cercado por um muro de um metro e meio de altura) e entendemos melhor o vazio da “cidade”. Um grupo de sessenta pessoas, talvez a metade da população da ilha, participava de um sepultamento. Algumas estavam paramentadas com aquelas roupas típicas de peruano ou boliviano, poncho colorido, gorro ridículo, flauta de bambu etc etc etc.. E cantavam uns cânticos também, de vez em quando.

Imediatamente, nós três, infatigáveis na busca pela notícia, empunhamos nossas máquinas fotográficas, de longe, mas o suficiente para chamar a atenção de pelo menos um sujeito entre os que acompanhavam o enterro. O cara era um dos que estavam vestidos com roupas típicas, e partiu na nossa direção a fazer gestos com o braço erguido, para que saíssemos dali, e a gritar impropérios em língua de índio.

Achamos melhor seguir o sábio conselho daquele boliviano místico. Desistimos de fotografar a interessante expressão da cultura andina e, quando já estávamos a uma distância segura do cemitério maldito, ele apareceu. Tinha um metro e vinte de altura, se tanto, e antes que disséssemos qualquer coisa mandou direto, na lata:

Vocês querem conhecer o topo do mundo?

Ao perguntar isso, ergueu o indicador, ficou na ponta dos pés e acentuou a segunda sílaba do el-TÔ-po-del-mun-do. Falou em espanhol, claro, língua que na verdade é um estado de espírito, como costuma dizer o Nobre Guevarista. E foi um alívio escutar algo diferente vindo de uma criança da região, depois de alguns dias ouvindo somente a palavra “propina” da boca de menininhos muito fofinhos, que viviam fantasiados com poncho e gorro, às vezes até com filhotes de lhama no colo, e que cobravam para se deixarem fotografar pelos turistas, incentivados por pais certamente muito zelosos.

O garoto da Ilha do Sol não estava fantasiado. Vestia calça e camisa normais e um chapéu de pano, item obrigatório a três mil e oitocentos metros de altitude, o que só fui perceber quando meu nariz já estava bem mais vermelho do que o desejável. Ele também não pediu propina. Em vez disso, nos fez a tal oferta irrecusável.

Atrás do moleque de seis anos, partimos no trajeto até o ponto culminante da ilha, coisa pouca, nada a ver com a Cordilheira dos Andes. O ponto mais alto da Ilha do Sol é só um morro um pouco maior que os demais, chão de terra, sem neve. Pra subir foi tranqüilo, ainda mais aos vinte e sete anos. Paramos um pouco pra respirar durante a subida, umas duas ou três vezes, e chegamos ao topo sem maiores dramas, a não ser um ligeiro cansaço, óbvio.

E lá em cima, a poucos metros do garotinho sorridente, contemplei talvez a paisagem mais bonita que eu já vi. Descrever aqui, não dá. Só dá pra dizer que tinha o Lago Titicaca com água límpida, da cor da camisa da Itália de 82, tinha um céu liso, azul toda vida, e tinha a Cordilheira dos Andes, que em determinados pontos parecia pairar sobre umas nuvens rebaixadas, tipo um Olimpo do terceiro mundo. Num lugar daquele, acho que até Lênin pensaria em Deus.

Ficamos lá em cima por quase uma hora, até voltarmos atrás do pequeno boliviano, que, claro, queria alguma grana pelo serviço. Não tava ali à toa. Mas ao contrário de seus contemporâneos de Cusco e adjacências, o garoto da Ilha do Sol não nos abordou com o pedido imediato, e nem repetiu chorosamente a palavra “propina” dezenas de vezes sem parar. Ofereceu primeiro um serviço, no caso uma vista deslumbrante, inigualável, e depois foi pago.

Nos despedimos deixando com ele duas moedas de 1 Boliviano – o que na época deveria dar pra duas barras de chocolate, das grandes – e ainda conhecemos a irmã caçula dele, menina de uns quatro anos, também sorridente e também de chapéu.

E o moleque, que já tinha ganhado nossa simpatia de cara, só pelo contraste com o inca ameaçador do cemitério, subiu mais ainda no conceito quando, mal a irmã chegou ao lado dele, estendeu a ela uma das moedas. E a menininha saiu correndo, feliz, na direção da venda do tiozinho desolado.


Abaixo, o texto de abertura da matéria para o caderno Viagem, do JB. E a coordenada do Lago Titicaca:

Jornal do Brasil, edição de domingo, 16 de maio de 1999

Enquanto os astecas e maias se instalaram em regiões de vegetação plana do México e da América Central, os incas preferiram começar a viver às margens do Titicaca, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Com seus 8.300 quilômetros quadrados e situado a 3.810 metros de altitude, o Titicaca é o lago navegável mais alto do mundo. O ar rarefeito mantém a temperatura da água entre os 4 e 16 graus, o que impede o congelamento mesmo no inverno.

Mergulhar na cultura dos povos pré-colombianos sempre é uma viagem interessante, seja pelo aspecto histórico ou pelo esoterismo ligado a incas, astecas, maias, seus ancestrais e descendentes. Quando a tudo isso se une paisagens naturais deslumbrantes, a viagem se torna ainda mais irresistível. Nesse quesito, os maias e astecas que nos perdoem, mas os incas tiveram um bom gosto insuperável ao escolher os lugares onde viver.
Nada melhor para comprovar essa tese do que percorrer os centros arqueológicos do Peru e da Bolívia, passando por Cusco (a capital do Império Inca) e a badalada Machu Picchu, além das ilhas do Sol e da Lua, no lado boliviano do Lago Titicaca, considerado o berço da civilização que dominou a América do Sul durante 300 anos, até a chegada dos espanhóis.
Enquanto os astecas e maias se instalaram em regiões de vegetação plana do México e da América Central, os incas preferiram começar a viver às margens do Titicaca, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Com seus 8.300 quilômetros quadrados e situado a 3.810 metros de altitude, o Titicaca é o lago navegável mais alto do mundo. O ar rarefeito mantém a temperatura da água entre os 4 e 16 graus, o que impede o congelamento mesmo no inverno.
Não satisfeitos com a beleza do lago sagrado, os incas ocuparam ainda as regiões montanhosas do Peru. Em Cusco, a 3.399 metros de altitude, fundaram sua capital e, seguindo o fluxo do Rio Vilcanota – que serpenteia as montanhas da região até se transformar em Urubamba, para desaguar no Ucayuli, primeiro nome do nosso Amazonas –, chegaram ao local onde hoje se encontra Machu Picchu, a 2.350 metros de altitude. Complementando a paisagem deslumbrante, a Cordilheira dos Andes é o cenário de fundo perfeito, tanto na Bolívia quanto no Peru.
Para evitar problemas com a altitude, o mais aconselhável é que a ordem cronológica da criação do Império Inca seja deixada de lado, e que a viagem comece pelo Peru. Mesmo com seus quase 3.400 metros de altitude de altitude, Cusco é bem mais suportável do que La Paz, a capital e principal porta de entrada da Bolívia, cujo aeroporto (El Alto) fica a 4.100 metros acima do nível do mar. O modo mais fácil de iniciar a viagem é chegando de avião em La Paz. O melhor a fazer, porém, é seguir para Cusco no dia seguinte, também de avião, depois de uma noite regada a goles de chá de coca para diminuir a dor de cabeça, a tonteira e a falta de ar.
Ninguém precisa se assustar com o remédio usado contra a altitude. A única coisa em comum entre o chá e a cocaína é a polivalente folha de coca, que na Bolívia e no Peru é usada até para se ler a sorte, pelos bruxos locais. O chá de coca não é droga e, pelo menos na Bolívia, é quase tão presente quanto o nosso cafezinho.
Na chegada a Cusco, a tendência é que os efeitos da altitude não causem mais tanto mal-estar. Sem dor de cabeça e menos tonto, o turista pode aproveitar melhor os encantos da cidade que mistura a cultura inca com o estilo colonial de algumas de suas construções, erguidas pelos espanhóis. Perto dali, uma grande variedade de ruínas satisfaz os mais famintos por cultura e esoterismo.
Além de todo o valor histórico e cultural dos locais visitados, a paisagem é inesquecível. O trajeto que liga os centros arqueológicos passa por uma estrada à beira do Vale Sagrado dos Incas, o Ccorao. O cenário é composto por uma seqüência interminável de montanhas, inacreditavelmente verdes, que têm o Rio Urubamba a seus pés.
Na volta à Bolívia, o roteiro inclui passeios pelo Lago Titicaca, com direito a pernoite na Ilha do Sol, e uma passagem por Copacabana, uma minúscula cidade na margem do lago que se orgulha de ter dado origem ao nome do bairro da zona sul carioca.

O Lago. A altitude pode até atrapalhar um pouco, mas os encantos da parte boliviana do Lago Titicaca compensam qualquer mal-estar. Brindados com as ilhas do Sol e da Lua, os bolivianos souberam muito bem explorar turisticamente os 45% que lhes cabem do lago (os outros 55% pertencem ao Peru). Um bom exemplo disso é o Inca Utama Hotel, que montou uma estrutura incluindo museus, as inevitáveis lhamas e até personagens reais da história local.
A beleza do Titicaca – com a Cordilheira dos Andes ao fundo –, por si só já seria suficiente para satisfazer qualquer um. As belas paisagens, porém, podem ser esquecidas por alguns instantes, pelo menos para breves mergulhos na cultura e na história locais. O Museu do Altiplano, no Inca Utama, resume a história dos povos da região, desde os Tiwanakus, que começaram a viver em 1.580 A. C., até os incas. Por ali mesmo, outro museu mostra todo o mundo místico dos kallawayas, povo andino especialista em medicina natural.
O museu também abriga os irmãos Demétrio e José Limachi, especialistas na construção das balsas de totora (a palha local). Os dois moram por ali e ganham a vida posando para turistas e vendendo miniaturas dos barcos que fabricam em tamanho natural. Foram esses barcos que serviram para expedições como a Ra II, de 1970, quando pesquisadores cruzaram o Oceano Atlântico, de Marrocos até Barbados, para provar que os polinésios eram capazes de viagens desse tipo há muito mais tempo que os europeus.
Legítimo representante dos Urus, povo que vive em ilhas flutuantes feitas de totora, no Titicaca, Demétrio Limachi se orgulha de seu feito. “Isso é bom para manter nossa cultura”, afirma. Além da Ra II, os irmãos Limachi construíram embarcações para outras três expedições..
Mas o melhor da Bolívia é mesmo o Titicaca, a Ilha da Lua e a Ilha do Sol. Saindo de Huatajata, a viagem pelo lago sagrado dura cerca de uma hora e meia. Habitada atualmente por cerca de 80 pessoas, a Ilha da Lua conserva ainda parte das ruínas de Aljjawasi, construída entre 1.300 e 1.400 D.C.
O lugar servia de claustro para jovens virgens incas, trazidas de diversas regiões para aprenderem as atividades femininas da época. Ao contrário de outras ruínas, esta não foi destruída pelos espanhóis, mas sim pelos próprios bolivianos, que em 1949 começaram a construir prisões (já desativadas) para presos políticos com as pedras incas.
Famosa por ser o local de nascimento da Civilização Inca, a Ilha do Sol também conserva ruínas, como a de Pilkokaina, conhecido popularmente como Palácio dos Incas. Segundo pesquisadores, o palácio era um lugar de trabalho e de moradia, acessível a poucos escolhidos. A Porta do Sol, na entrada da ilha, é outra atração local.
Tanto na Ilha do Sol quanto na da Lua, a população mantém uma prática que também é comum no Peru: em qualquer local de concentração de turistas, adultos e crianças desfilam vestidos a caráter, com todos os ponchos e gorros andinos a que têm direito, e cobram uma gorjeta para posar nas fotos.