terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SELVA NO APÊ

A primeira sensação, ao receber a pauta, foi de incredulidade. Será que tinha mesmo um cientista brasileiro que trabalhava num apartamento de dois quartos em Copacabana e podia ganhar o Nobel de Química? Tinha, mas ele próprio ironizava a tal candidatura ao Nobel, ainda que seu trabalho merecesse o prêmio, talvez mais do que qualquer outro.

Depois de chegar ao Brasil fugindo de um tal de Hitler, e de se embrenhar durante anos pelas matas nacionais, descobrindo remédios em mais de 20 mil plantinhas, todas catalogadas nas estantes que ocupavam quase todo o apartamento de dois quartos, Otto Gottlieb morreu no dia 19 de junho de 2011. Não ganhou o Nobel.

Abaixo, a matéria

Revista Istoé Gente, edição 47, de 26 de junho de 2000

“Somos mal financiados para ganhar um grande prêmio, como o Nobel. É necessário muito marketing”

Em meio à selva de pedra formada pelos edifícios de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, o químico Otto Richard Gottlieb, 79 anos, preserva uma floresta particular. Em vez de árvores, o paraíso de Gottlieb tem estantes, que tomam conta de seu apartamento de dois quartos. São cerca de 20 mil fichas, referentes às substâncias que podem ser encontradas em 270 famílias de plantas espalhadas pelo Brasil. A selva de papel do químico é fruto de sua tentativa de entender a linguagem das plantas, um trabalho pioneiro iniciado em 1944, que permite prever o valor medicinal das espécies. Esse sacerdócio já lhe rendeu três indicações (1998, 1999 e 2000) para o Prêmio Nobel.
Nascido na cidade de Brno, na República Tcheca, e naturalizado brasileiro desde os 21 anos, Gottlieb começou a se interessar pela flora nacional graças ao pai, o também químico Adolf Gottlieb. Assim que se estabeleceu no Rio de Janeiro, Adolf montou uma fábrica que transformava óleos da Amazônia em produtos químicos. “Era evidente que continuaria nesse meio”, diz, ainda com sotaque. “Meu avô paterno era químico e meu filho primogênito, Hugo, também optou pela química”, diz Gottlieb, casado com a professora de matemática Franca e pai de outros dois filhos, Marcel e Raul, ambos engenheiros.
Hoje, depois de assinar 642 publicações sobre o tema, entre livros e artigos, Gottlieb tem a convicção de que a vegetação brasileira faz parte de uma rede que liga todas as regiões do País, desde a Amazônia até os pampas, no extremo sul. E faz um alerta: “Isso é muito bonito, até o ponto em que se compreende que arruinar uma região significa machucar a outra”, afirma. Se atualmente divide o seu tempo entre o apartamento de Copacabana e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde também desenvolve suas pesquisas, ele já passou boa parte da vida viajando por regiões inóspitas, em busca de matéria-prima para seus estudos.
O professor continua viajando para participar de palestras e congressos. Em setembro, presidirá o 22º Simpósio Internacional de Química de Produtos Naturais, que pela primeira vez será realizado no Brasil, em São Carlos (SP). A idade avançada, no entanto, não o impede de voltar à mata. No ano passado, ele enfrentou tranqüilamente 40 minutos de avião de Belém até Breves, no interior do Pará, e outras 13 horas de barco até a reserva ecológica de Caxiuanã. “Encontrei uma mulher numa choupana que quase caiu para trás quando eu disse minha idade”, conta. “Ela nunca tinha visto alguém tão velho por ali”, completa.
Os anos de observação não se resumiram às plantas. O comportamento dos índios e até de macacos já foi estudado por Gottlieb, que conseguiu encontrar semelhanças entre homens e primatas no consumo de alimentos vegetais e até na utilização de plantas medicinais. “Resta saber quem imitou quem”, brinca. Substâncias descobertas por ele já estão sendo estudadas em laboratórios como o da Fiocruz, no Rio. É lá que pesquisadores trabalham no combate à doença de Chagas com a burcherina, planta da planície amazônica catalogada e estudada por Gottlieb. Outra planta catalogada pelo cientista, a porosina, originária da Região Sul, vem sendo testada na fabricação de antiinflamatórios.
Indicado para o Prêmio Nobel de Química três vezes, o cientista brasileiro não vê a mais remota possibilidade de ser agraciado, e culpa a falta de incentivo do governo pelo seu pessimismo. “Somos mal financiados para ganhar um grande prêmio, como o Nobel. É necessário muito marketing”, diz. Ganhador de 21 prêmios, entre eles o da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, em 1991, Gottlieb trabalha com a ajuda da também química Maria Renata Borin, sua ex-aluna. “Como nós dois vamos competir com institutos que têm verbas milionárias?”, questiona o químico.
A originalidade do trabalho de Gottlieb é outro empecilho para que sua atividade ganhe um Nobel de Química. “Estamos desenvolvendo uma disciplina nova, que chamamos de químico-biologia”, explica. Longe de mostrar a sisudez esperada em cientistas, o químico brasileiro até se diverte com algumas bobagens escritas sobre seu trabalho. “Um repórter chegou a escrever o hífen por extenso quando eu disse o nome da disciplina”, conta. “Com as notícias que lemos nos jornais, onde estaríamos se não houvesse alguém para nos fazer rir escrevendo hífen por extenso? As bobagens são essenciais.” Gottlieb só perde o bom humor ao comentar a violência urbana. Acostumado a se embrenhar na mata, o cientista foi obrigado a antecipar das 18 horas para as 16 horas a caminhada diária no calçadão de Copacabana depois que foi assaltado. O químico das selvas acha muito perigoso andar na cidade depois do pôr-do-sol.