sábado, 28 de novembro de 2009

O POETA

O poeta brasileiro concorre ao Nobel. Nas horas que antecedem o resultado, ninguém sai da frente da televisão ou do rádio, de Aquidauana a Bagé. A bandeira verde e amarela toma conta das janelas e as cornetas insuportáveis dão o ar de sua chatice a todo momento, no meio da rua ou no alto de um prédio. É o Brasil de novo na Suécia, abençoada terra gelada, para mostrar dessa vez a arte de sua literatura; e os publicitários, claro, não perdem essa oportunidade. Em quase todos os comerciais, daqueles com música de exaltação aos mais pretensamente sérios, com algum ator declamando um texto metido a literário, uma expressão se faz presente: O Nobel é nosso. O País vive em função da disputa na Suécia. De novo, a Suécia.

Ainda bem que nada disso aconteceu quando resolveram oficilizar a candidatura do Ferreira Gullar ao Nobel, mas pelo menos o poeta se divertiu. Entre uma caminhada e outra pelas calçadas de Copacabana, o autor de Poema Sujo recebeu o apoio de copacabanenses bem informados e pôde sentir um discreto clima de Copa do Mundo, por mais contraditório que seja botar as palavras discreto e Copa do Mundo na mesma frase. Não levou o Nobel, ainda, mas isso também não tem tanta importância assim.

Abaixo, a matéria:

Revista Istoé Gente, edição 141, de 15 de abril de 2002

"São as mesmas pessoas escrevendo há anos. Não há imaginação que agüente. Graciliano Ramos escreveu uns cinco romances, Flaubert fez quatro. Balzac escreveu muitos, mas nem ele daria conta do que a tevê pede para os autores."

As caminhadas pelas ruas de Copacabana nunca mais foram as mesmas para o poeta Ferreira Gullar, 71 anos. O maranhense que revolucionou a poesia brasileira com o concretismo de A Luta Corporal, em 1954, tem vivido experiências dignas dos maiores ídolos do esporte nacional. Parado pelos vizinhos do bairro, ouve incentivos e recebe apoio como se fosse disputar uma Copa do Mundo. O motivo é a candidatura do poeta ao Prêmio Nobel de Literatura, oficializada em janeiro, quando o catedrático de Literatura Brasileira Antônio Carlos Secchin foi à Suécia para entregar, na centenária Academia de Estocolmo, a defesa de Gullar.
Depois das tentativas de lançar os nomes de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado, essa foi a primeira vez em que as exigências burocráticas foram seguidas à risca para a candidatura de um brasileiro. “No caso do Jorge, foi enviado apenas um telegrama à academia sueca, assinado pela União Brasileira de Escritores. Quanto ao Drummond e Cabral, parece que a indicação nunca chegou a Estocolmo”, conta Secchin, representante do grupo de intelectuais que apóia Gullar.
Sem querer pensar muito no Nobel, cujo resultado sairá em outubro, o pai de três filhos e avô de oito netos prefere gastar o tempo livre curtindo as estripulias do único bisneto, Pedro, 5 anos. Viúvo da atriz Thereza Aragão, o ex-integrante do Partido Comunista vive hoje com a poetisa Cláudia Ahimsa, mas não mora com a mulher. Em casa, sua única companhia é o gato Gatinho, que inspirou um livro de poemas infantis. “A casa foi esvaziando e ficamos eu e o gato”, resume Gullar.

Como recebeu a candidatura para o Prêmio Nobel?
A princípio, tentei dissuadir o grupo que apresentou minha candidatura. Os prêmios Nobel são escritores por quem eu tenho muita admiração. Jamais imaginei ser um deles, seria petulância. Mas não vou brigar com quem quer me indicar, não sou maluco. Acho bastante difícil. Nunca fez parte do meu projeto de vida, mas se vier, será bem-vindo.

Sua rotina mudou depois disso?
As pessoas me encontram na rua e falam: “É o Brasil, vamos ganhar!”. Digo que só não quero que me transformem no Guga, porque quando ele perde querem acabar com ele. Não sou o primeiro do ranking, nem pretendo. Porque depois vão dizer “esse filho da mãe não correspondeu à nossa expectativa”. Mas tem um lado simpático.

Que lado é esse?
Tenho muito o sentido de herdeiro da cultura brasileira e me orgulho disso. Sou um poeta brasileiro, nasci da poesia brasileira. Costumo dizer que o sentido da vida são os outros e incluem, em primeiro plano, seu próprio país, língua, gente e cultura. Se o Nobel acontecer, o maior significado será esse. De ser a literatura brasileira. A senhora que me encontra na rua e diz “vamos lá, é o Brasil!” se sente representada e torce.

Acha que é a hora de um brasileiro levar o Nobel?
O prêmio do Saramago (o português José Saramago foi o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel, em 1998) teve um significado enorme e chamou a atenção para a literatura de língua portuguesa. Era um escândalo que nenhum escritor da nossa língua, um Fernando Pessoa, um Drummond, tivesse ganho. O João Cabral, sem dúvida, mereceria também. O Jorge Amado idem, é um nome mundial, traduzido em todas as línguas e com um prestígio maior fora do Brasil do que aqui.

O que pensa da intenção de Paulo Coelho de entrar para a Academia Brasileira de Letras?
É um escritor e qualidades ele tem, porque não existe mágica. Se não tivesse algo especial, que atraísse o interesse das pessoas, Paulo Coelho não teria esse êxito. Não é a literatura que me interessa, mas isso não quer dizer nada. Essa coisa do valor literário é relativa. Não existe um critério que estabeleça o que é literatura.

A crítica não gosta de quem vira best-seller?
Há essa tendência. Mas é claro que existe um tipo de arte, em todos os gêneros, que por ser menos inovadora ou inquietante atinge uma faixa muito maior de pessoas. Uma literatura mais crítica, profunda, não oferece solução fácil para os problemas e não atinge tanta gente. Como a novela de televisão. Do ponto de vista estético, é a linguagem fácil, aceita sem inquietação. Quase tudo ali são falsas soluções, muitas vezes falsos sentimentos. Mas você não vai pretender fazer uma literatura televisiva para atingir milhões de pessoas se não for assim.

Como vê a qualidade das novelas hoje?
Está mais baixa, e não é culpa dos autores. São as mesmas pessoas escrevendo há anos. Não há imaginação que agüente. Graciliano Ramos escreveu uns cinco romances, Flaubert fez quatro. Balzac escreveu muitos, mas nem ele daria conta do que a tevê pede para os autores. Então esgota. O cara não tem mais o que contar.

Qual a solução?
Como a novela é a espinha dorsal da tevê, está criado um conluio estranho. A tevê não pode dispensar a novela e o autor está cansado mas não pode deixar de escrever, porque também ganha um belo salário. A televisão bota no ar o que é escrito, e o cara escreve sabendo que não está tão bom. Não sei como sair disso.

O que acha das adaptações da literatura para a televisão?
Acho válido, sabendo que é outra coisa. Por exemplo, Dona Flor e Seus Dois Maridos tem umas 500 páginas, mas deu um filme de uma hora e meia. E está tudo lá. Quando a Globo encomendou, para o Dias Gomes e para mim, a adaptação de Dona Flor para uma minissérie de 36 capítulos eu disse, tô fora. A história é muito curta e a tevê tem de fazer muitos capítulos para compensar os custos.

O que aconteceu então?
Dos 36 capítulos iniciais passamos para 24. No capítulo 15 Dona Flor se encontrava com Vadinho. Como se conta uma história em que os protagonistas só se encontram no capítulo 15? Quando chamaram o Guel Arraes para dirigir, ele leu e falou que daquele jeito não dava. Eu disse: “Então vai lá e diz pro Boni, porque já conseguimos passar de 36 pra 24”. Negociamos e foi ao ar com 12 capítulos.

Como avalia sua experiência na Globo?
Fiquei 22 anos. Comecei em 1978, convidado pelo Dias Gomes, e fiquei até 2000. Tinha voltado do exílio em 1977, desempregado, e só tinha feito teatro. O Dias me deu as dicas e fiquei trabalhando, mas não queria me transformar em autor de novela. Não estou subestimando, é que não é a minha. Não tenho vocação para isso.

Como o poeta de vanguarda se adaptou à tevê?
Sempre separei as coisas. A televisão era algo profissional. Até porque só um louco diz “agora vou escrever uma novela de 180 capítulos” sem ninguém pedir. Na tevê só se faz o que é encomendado. Tive sorte de trabalhar 90% do tempo com o Dias, que tinha uma qualidade excepcional. Trabalhar com ele me protegia, porque o Dias tinha prestígio na Globo, não precisava seguir as mesmas exigências, que obrigam muitas vezes o autor a se submeter a determinadas coisas.

Voltaria a trabalhar em televisão?
Jamais. A melhor coisa que me aconteceu foi sair da Globo. Não tenho queixa de lá, mas há algo angustiante, que é essa coisa do público e da própria emissora. O contrato em suspenso como uma espada na cabeça do cara, que não sabe se vai ser contratado. Um clima terrorífico, que leva todo o pessoal para a ponte de safena. O dia em que saí de lá fui jantar com minha mulher para comemorar, junto com meus 70 anos.

Como vê o cenário político atual?
Foi dado um passo para um país mais organizado com o Fernando Henrique, temos de reconhecer isso. Quero saber quem vai dar o passo adiante sem destruir o que foi feito, quem vai começar a governar para os 50 milhões que não têm nada.

Que candidato tem condições de fazer isso?
Ainda não sei. Estou observando. O quadro está aí, as pedras estão sendo lançadas ainda.

O que acha de Roseana Sarney, sua conterrânea?
Ela pelo menos não dizia que ia para trás, dizia que ia continuar as coisas. O governo dela no Maranhão não é pra trás. Ela acabou com as secretarias e criou gerências. Fez isso porque cada secretário criava um pequeno governo e gastava à toa. Agora o cara é gerente, não faz mais isso. Parece que tem uma série de coisas que ela fez que são certas.

O escândalo envolvendo o marido de Roseana atrapalha a candidatura dela?
É um golpe forte. Acho difícil que ela consiga ir adiante. Não estou a par dos bastidores da política, mas até agora a responsabilidade pessoal dela no caso ainda não foi apurada. Lamento porque de fato tenho carinho por Roseana, mas é um caso grave e tem de ser apurado. Não acho que aquilo tudo foi fruto de conspiração.

Ainda acredita no socialismo?
É evidente que o socialismo acabou, o que não significa que o capitalismo é bom. É fecundo, cruel e injusto como a natureza, porque a natureza não tem sentido de Justiça. Ela cria milhões de bichos, depois inunda e mata tudo. Como o capitalismo é injusto, tem de ser mudado, se não for com o socialismo será de outra forma. As pessoas não continuam brigando, protestando? Então, a luta continua.