sábado, 21 de agosto de 2010

HONÓRIO, O GURGEL – A BLITZ

A impressão hoje é que a rotina durou uma década, mas na verdade não chegou a completar dois anos. À meia-noite em ponto, ou alguns minutos antes dela, ou alguns minutos depois, o homem da madrugada adentrava no cubículo da escuta do saudoso Jornal do Brasil. Chegava como que do nada e aparecia na porta com seus quase 1,90m de altura, o corpo esguio, os cabelos grisalhos e a pele, negra, a exibir as rugas, nem tantas assim, de uma vida inteira atrás da notícia, e fugindo dela também, porque trabalhar de meia-noite às sete sem ao menos uma soneca no meio do expediente – ou um filme de três horas no vídeocassete – era, de fato, humanamente impossível.

Surgia com certa cara de sono, fazia a saudação habitual e a pergunta de todas as noites, à espera da resposta que em 99% dos casos era aquela que ele queria ouvir:

Tudo tranquilo.

Dito isso, eu e o co-piloto podíamos nos considerar livres, pendurar nossas bolsas a tiracolo e atravessar, de ponta a ponta, o lado maior do H da redação do JB na Avenida Brasil, 500, até o hall dos elevadores, dois de um lado, dois do outro, sem esquecer de dar boa noite ao boêmio alemão, que ficava ali no traço de ligação entre as duas retas do H, na primeira página, a exercer a função de secretário-gráfico, e que às vezes nos encontrava uma ou duas horas depois, no Lamas, ou no Cervantes, ou, mais provavelmente, no Bukowski.

Do elevador, no térreo, eram apenas mais alguns passos até o estacionamento, muito bem apelidado de Rock in Rio, onde Honório nos esperava em meio à terra batida, aos tufos esparsos de mato ralo e, não raramente, à lama. Toda noite era a mesma coisa. Honório nos atravessava para o outro lado do túnel Santa Bárbara, onde buscávamos no chope gelado (o co-piloto no Jack Daniel`s, quem diria) o merecido relaxamento após a bruta labuta noturna.

Naquela noite, porém, o co-piloto esqueceu o casaco, o que obrigou Honório a pegar o retorno para o jornal e dar de cara, bem embaixo da perimetral, com uma blitz da valorosa Polícia Militar do Rio de Janeiro. O PM fez sinal e eu, sem um documento sequer do carro que estivesse em dia, com um estepe que já havia ultrapassado em muito a condição de careca, encostei o Gurgel.

Para escapar, era preciso ser rápido, e antes que o digníssimo policial solicitasse a documentação do veículo, eu e o co-piloto sacamos de nossos crachás de prestadores de serviço do JB, ambos verdes, retangulares e vencidos, o dele há alguns meses, o meu há mais de um ano. E funcionou. Ao olhar a logomarca do JB, com o prédio da Av. Brasil praticamente à nossa frente, o gentil PM sensibilizou-se. Nos deixou seguir na direção do jornal, sem pedir um documento sequer, e ainda nos recomendou cautela com o estepe, que, guardado do lado de fora, na traseira do Gurgel, ostentava, numa superfície totalmente lisa, um tufo de borracha do tamanho de uma bola de sinuca, a sair do que parecia ser, sim, e era, um buraco.

Agradecemos a preocupação do guarda e seguimos viagem, sem um documento do carro sequer, salvos pelo JB, pelo saudoso JB da Avenida Brasil.

A matéria abaixo é bem típica do amor que o velho, aristocrático Jornal do Brasil nutria pelo Rio, sim, também, mas muito mais pela Zona Sul, Ipanema principalmente.

Jornal do Brasil, edição de terça-feira, 8 de abril de 1997

"Não vou ficar correndo atrás da areia para achar meu ponto"

Nos últimos três meses, as areias que viram surgir a tanga, o fio dental, o apitaço e outros modismos deixaram de ser apenas cenário para participar ativamente do verão carioca. Sumindo do Arpoador, aumentando de tamanho no Leblon e saindo de fininho de Ipanema, o balanço da principal matéria-prima da mais badalada praia do país surpreendeu os mais experientes banhistas, virou atração para turistas e vem preocupando os freqüentadores da orla.
Nos últimos dois dias, a ressaca que atingiu a orla da Zona Sul deixou até os mais céticos moradores de Ipanema temerosos de que a praia, que já carregou as Dunas do Barato, tivesse o mesmo destino do Arpoador de hoje. Alheios às explicações de especialistas que se esforçam para tranqüilizá-los, esses freqüentadores não conseguem se acostumar com a nova ordem e temem perder o espaço que melhor traduz a irreverência e o bom humor de quem vive no Rio.
Para o estudante de Comunicação Social Júlio César Vasconcellos, de 23 anos, a ressaca dos dois últimos dias, que reduziu consideravelmente a faixa de areia de Ipanema, é motivo de alerta. "Parece que até a areia está desaparecendo. Só falta isso aqui ficar igual ao Arpoador; vai ser o caos", diz o estudante, alarmado com a possibilidade de perder sua principal área de lazer. "A praia é nossa ´nica diversão gratuita e vem agora a natureza querer tirar ela da gene. Isso não pode acontecer", completa o morador de Ipanema e freqüentador do Posto Nove.
O programador de computação Jeferson de Oliveira, de 20 anos, faz coro com Júlio César. "A prefeitura tinha de fazer em Ipanema o mesmo que foi feito no Leblon. Se deram um jeito lá também vão dar aqui", sugere. Já a professora de vôlei Tatiana Kelab, 19, tem outra solução para acabar com qualquer ameaça contra a praia. "Basta alargar os canais do Jardim de Alá e da Rua Visconde de Albuquerque", afirma.
Paulo César Rosman, professor de Engenharia Costeira e Oceanográfica da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ, vê na ressaca não uma ameaça, mas uma volta à dinâmica natural do litoral do Rio. Para ele, os fenômenos registrados nesse ano foram causados exatamente pela ausência de ressacas como a de domingo no ano passado e pela falta de chuvas em janeiro e fevereiro deste ano, que atrapalharam a migração natural das areias cariocas.
Longe de ser motivo de susto para quem mora na praia, o vaivém da areia faz parte do processo litorâneo normal. "Todo ano, uma quantidade equivalente a 50 mil caminhões de areia transita de um lado para o outro, levada pelas ondas. O problema é que não choveu o bastante em janeiro e fevereiro para que as ressacas, que também costumam ocorrer nessa época do ano, devolvessem a areia para o Arpoador. Essa última ressaca é um indício de que a situação começa a se normalizar", diz Paulo César.
Segundo Paulo César, a ressaca realmente levará de volta a areia ao Arpoador, deixando o Leblon de novo mais magro. "A chuva e o mau tempo geralmente trazem com eles o vento Sudoeste, que forma as ondas que levam a areia do Leblon ao Arpoador. Essa situação ocorre predominantemente entre os meses de abril e setembro. No resto do ano, o movimento do vento e das ondas costuma ser o inverso", explica o professor.
Toda a enorme faixa de areia que fez a festa dos moradores do Leblon no verã desapareceu durante a ressaca, mas o fenômeno registrado no domingo não é um sinal de que as 684 mil toneladas de areia despejadas pela prefeitura no bairro foram inúteis. "Quem diz isso está falando besteira. Da mesma forma que foi embora, a areia vai voltar", diz Paulo Cesar.
Há quem duvide. Impaciente, Júlio César não gosta da idéia de esperar a variação da maré ara ir à praia. "Não vou ficar correndo atrás da areia para achar meu ponto. E prefiro nem pensar na hipótese de ela desaparecer, apesar de ter me assustado com essa ressaca", conclui o estudante., traduzindo a inquietação de quem teme ficar sem praia no fim de semana que vem. E no outro...