
O barulho seguinte é de maçarico, quando você faz a curva para a esquerda e atravessa o viaduto por baixo, e o som já parece de aparelho de dentista quando você percebe como é difícil manter o gurgel em linha reta, e como é quase impossível virar pra direita, pra onde ele tá adernado. Pára, sai, deita no asfalto e descobre que o eixo, aquele ferro que liga o pneu ao resto do carro, não tá ligado à roda. Tá balançando perto dela, tocando o pneu de vez em quando, mas ligado à roda, não tá não. O que a segura é, de um lado, o próprio eixo, que não deixa ela cair pra trás; e do outro o pára-lama rebaixado, que tira faísca do chão nas pontas.
Você está parado às três e pouca da matina numa área da cidade que um jornal já chamou um dia de vale das balas perdidas. E como conseguiu andar uns cinqüenta metros naquelas condições, pensa mui sensatamente: por que não sair de lá, atravessar o Santa Bárbara e deixar o gurgel são e salvo em frente à oficina do lado de casa?
Os amigos vão na frente em outro carro, devagar, para o caso de uma desistência no caminho, mas curva pra direita, em todo o trajeto, só tem duas. E a primeira, de acesso ao túnel, é ultrapassada sem problemas, graças à pista vazia em frente ao Frei Caneca, que permite uma linha reta em diagonal, pra dar as melhores condições à roda boa, da esquerda, de fazer a curva sozinha.

Na manhã seguinte, a glória. Seu Raimundo coça os cabelos brancos, ajeita os óculos, olha a roda com cara de tragédia e, do alto da experiência de anos e anos consertando carro velho, pergunta, sem acreditar:
Você trouxe esse carro assim?