segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

BAIXO ASTRAL

A matéria teve fotos de 16 personagens e histórias de 31. Duas com destaque de manchete, sete também com certo espaço, de umas vinte linhas, e o resto resumido em até cinco, no máximo. Em perfis mais ou menos detalhados, estavam lá, entre outros, o estudante de 13 anos, a costureira de 52, o auxiliar de escritório de 23, o aposentado de 61 e a professora de 42. Todos mortos pelas chamadas balas perdidas, aquelas que pipocam de um tiroteio qualquer e atingem quem não tem nada a ver com a história.

O gancho da matéria partiu de uma história absurda, de uma menina linda de 14 anos, filha única, de classe média, superprotegida pelos pais, que por isso vibrou de alegria quando, por telefone, a mãe deixou que ela pegasse o metrô sozinha numa estação e saltasse na seguinte para encontrá-la, tudo no bairro onde morava. E graças ao retardamento psicológico de quem resolve assaltar uma estação de metrô e à estupidez de dois policiais trapalhões, que resolveram reagir sem condição mental para isso, a menina, Gabriela, foi atingida por um tiro quando descia a escada do metrô. Morreu a caminho do hospital.

A idéia era reunir os casos fatais de bala perdida no estado e chegou-se ao número de 45 mortos entre maio de 2002 e maio de 2003, 31 deles na mui amada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A estatística era da Secretaria de Segurança e só tinha isso mesmo: números de casos divididos por meses. Nada de nomes, nem endereços.

Foi preciso uma pesquisa daquelas bem chatas, em jornais populares, para conseguir identificar as 31 vítimas, e como também tinha que marcar entrevista, foto, ir entrevistar, tirar foto de pelo menos sete personagens, a matéria demorou um pouco pra ficar pronta. Tanto que o gancho mudou.

Quarenta e um dias depois da morte de Gabriela no metrô, outra menina, essa de 19 anos, conversava com colegas no pátio da faculdade onde estudava, num intervalo entre as aulas. Sentada num banco, a menina, Luciana, estava encostada na parede, e assim foi atingida por um tiro na altura da mandíbula que a deixou tetraplégica. Não morreu, e por isso não constou das estatísticas da Secretaria de Segurança, que naquela época só contava as mortes, sem nomes, a maioria aqui na nossa cidade maravilhosa, do balconista de lanchonete de 24 anos, da dona-de-casa de 64, do subgerente de supermercado de 40, da vendedora de 25, do motorista de 27...

Essa matéria ficou bem grande, dois textos principais, da Luciana e da Gabriela, e seis coordenadas com mortos e feridos, além de 27 microtextos das outras vítimas fatais. Botar tudo aqui seria desnecessário. Vai abaixo só uma das coordenadas, que é mais do que o suficiente.

Revista Istoé Gente, edição 198, de 19 de maio de 2003

No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar.

Na véspera da festa de amigo oculto que seria realizada na sexta-feira 6 de dezembro, na Escola Municipal Pernambuco, próxima à favela do Jacarezinho, na zona norte, a aluna da 1a série do ensino fundamental, Jéssica de Jesus Teixeira, de 8 anos, conseguiu R$ 0,50 do pai, o entregador Hélio de Jesus Teixeira. Com o dinheiro, comprou um pacote de elásticos para cabelo, embrulhou-o com o papel arrancado de um livro de figuras e mostrou ao pai, orgulhosa do presente que não chegou a ser dado.
No dia seguinte, a menina brincava no pátio da escola quando foi baleada na cabeça. Segundo o depoimento de uma colega, Jéssica ainda disse que a cabeça doía e pediu socorro antes de desmaiar. Levada para o Hospital Salgado Filho, morreu dois dias depois.
Atualmente desempregado, O pai vive com a mulher, Cláudia Maria de Paula, e os outros quatro filhos – Paulo Sérgio, 10, Jennifer, 4, Joice, 3, e Pablo, 8 meses – em uma casa de três cômodos no Jacarezinho. Ele ainda procura entender o que aconteceu. “A perícia diz que o tiro partiu de dentro da escola, mas ninguém ouviu nem viu nada, O município diz que bala perdida é de responsabilidade do estado, e o estado diz que não é com ele porque aconteceu numa escola do município”, conta Hélio, que processa a Prefeitura e tirou o filho mais velho da mesma escola.
Nada que reduza a dor pela perda da filha que sonhava em ser bailarina. “Ela tinha passado num teste para fazer aula de dança e queria que eu a levasse ao curso da Vila Olímpica da Mangueira”, lembra o entregador, que ainda tem de arranjar forças para combater a depressão da mulher e a tristeza dos filhos, principalmente de Jennifer, que tem tido febre quase toda noite. “Prefiro acreditar que a Jéssica não morreu. Ela está viva em algum lugar”, diz.