domingo, 6 de setembro de 2009

O AUTOR


Imagina ter que escrever uma história de cento e oitenta capítulos durante oito meses. Uma história cujo desenrolar será acompanhado por milhões de pessoas, diariamente, e que precisa agradar a toda essa gente. Uma trama com algumas dezenas de personagens, distribuídos em vários núcleos, que serão gradativamente esquecidos ou valorizados, na medida em que caiam, ou não, no gosto popular.

Imagina que para entregar o texto no prazo será preciso internar-se no trabalho em regime de dez, doze horas diárias; e que, em virtude disso, será no contínuo estado de sono interrompido que a mente terá de funcionar para garantir a sobrevida da história, sempre sob a pressão do ibope. Pra finalizar, imagina que o texto a ser escrito será exposto a todo o país, ainda durante o processo de criação, e que as críticas, positivas ou negativas, serão diárias.

A entrevista abaixo é com um sujeito que trabalha dessa maneira.

Revista Istoé Gente, edição número 245, de 19 de abril de 2004

"A um filme as pessoas reagem como se fossem críticos: “Esse roteiro é bom, a fotografia não sei quê”. Na novela, não. É: “A Bárbara tem que casar com o Paco, esse tem que namorar aquela”. É tudo direto, não uma coisa filtrada por uma crítica. Todo mundo que vai ao cinema é expert. Novela não tem isso, é muito mais visceral."

Desde que começou a escrever Da Cor do Pecado, João Emanuel Carneiro dorme às 8h, acorda às 14h e trabalha todo o resto do dia. O resultado da rotina estafante é medido pela audiência de 43 pontos, em média – índice que há oito anos não era atingido por nenhuma novela das sete – ou pelo pico de 48 pontos, esse o melhor desempenho do horário nos últimos 10 anos. É a primeira novela de João Emanuel, 34 anos, e essa foi uma espécie de reedição do que já conseguira no cinema quando assinou o roteiro de seu primeiro longa, Central do Brasil, junto com Marcos Bernstein. Solteiro, o autor mora num apartamento no Leblon e foi descoberto por Walter Salles graças a seu primeiro curta-metragem, Zero a Zero – que fez aos 19 anos, com os US$ 4 mil arrecadados com a venda de uma estátua egípcia que herdara. Apesar do começo “meio por acaso”, encara o sucesso como um veterano. “Penso sempre que o que estou fazendo vai ser extraordinário. Senão, é melhor nem fazer”, diz.

Por que a novela é um sucesso?
Quis fazer uma fábula tipo Alexandre Dumas, mas tocando em pontos da nossa realidade social, como o menino mulato que é neto do milionário, ou a negra que mora no Maranhão e namora o branco rico do Rio de Janeiro. Apontaria isso como motivo do sucesso e também o fato de a novela trazer de volta as relações humanas, de ternura, família. Às vezes você faz uma novela com muita ação, muito efeito, violência. Minha história tem isso também, mas tocando em sentimentos humanistas, como a relação do avô com o neto. Isso comove as pessoas.

Escreve pensando na audiência?
Fico ligado no Ibope, ele te dá a medida de muitas coisas.Se você finaliza um capítulo com um personagem que o povo não gosta tanto, no dia seguinte a audiência já começa mais baixa. A novela é uma amostra de situações cômicas e dramáticas. Claro que tem coisas que interessam mais ao público e outras, menos.

Teme não agradar o público?
Esse horário é complicado. As pessoas estão em casa mas também não estão. Alguns estão chegando, as crianças estão ali. Precisa de agilidade, de chamar a atenção do telespectador de alguma maneira. Fico tenso porque a novela no fundo é um jogo. Por mais que você faça por uma satisfação artística, pessoal, tem que jogar com essas milhões de pessoas que assistem, e são elas também que fazem a novela. Já aconteceu de me pedirem na rua para criar uma situação que eu já tinha escrito, só não tinha ido ao ar. Fico feliz, parece que o público está escrevendo comigo.

A primeira protagonista negra da Globo ajudou na audiência?
Na imprensa ajudou muito, em termos de divulgação, mas não acho que isso tenha sido um fator de alavancagem da audiência. É um factóide de imprensa, a primeira protagonista negra, e não tem como você fazer sucesso com um factóide. O sucesso é da história. Com factóide se faz um filme, um especial, mas não uma coisa tão longa quanto uma novela, porque são 180 capítulos.


Como é o ritmo de trabalho?
Animalizante (sic). Acho que as novelas eram menores antigamente. A Globo era hegemônica, então muitas novelas eram ótimas, mas tinham situações no meio que era a pessoa indo na feira saber o preço do peixe, e virava cena. Hoje é muito mais pesado, o Ibope exige mais. E o fato de fazerem novelas sempre tão longas é mortificante.

A duração deveria ser menor?
Novela de longa duração, com esse tamanho de oito meses, é um problema. Escrevo com o auxílio de uma equipe, mas faço a novela muito sozinho no sentido de que eu conduzo toda a história. É muito pesado narrar 180 capítulos, 40 cenas por dia. Se fossem 150, daria facilmente. Esses 30 a mais fazem a diferença porque não seriam oito meses que ficaria internado, mas cinco. É uma coisa física, humana. Não sei como a Glória Perez ou o Benedito Ruy Barbosa fazem, mas estou quase caindo pelas tabelas.

A escolha de Taís Araújo para viver a Preta foi imediata?
O elenco foi feito por mim, pelo Silvio de Abreu e pela Denise Saraceni (diretora da novela). O que um dos três não queria, dançava. A Taís era a primeira opção dos três. Ela tem a jovialidade que eu via na Preta, essa coisa alegre, carismática. Não podia ser uma bonita triste para fazer esse papel.

Quem escalou Reynaldo Gianecchini para dois papéis (Paco e Apolo)?
A escolha foi minha, pela cara dele. Acho que o Gianecchini tem gente ali dentro. Tem alguma coisa ali. É um homem bonito, mas tem um mistério, uma indagação atrás dele. Como um galã de filme do Hitchcock, um James Stewart.

Já disse que não queria discutir racismo na novela, que escolheu a protagonista negra só para realçar o contraste social dos personagens. Por que incluiu cenas de racismo envolvendo o Raí (filho de Taís Araújo na trama)?
Quando chegou o avô rico (Afonso, vivido por Lima Duarte) com o neto mulato (Raí, interpretado por Sérgio Malheiros) a coisa veio mais forte. No romance você entra pelo sexo, mas muda no momento que tem o filho. É diferente você ter um caso com uma negra e ter um filho, uma família com uma negra. Aí o preconceito passa a abranger a família inteira. Mas acho que o que agrada as pessoas é que a novela tem a discussão desses temas polêmicos dentro de um contexto de fábula. Você não aprofunda isso como aprofundaria numa novela das oito, com uma discussão mais didática do problema. O racismo está dentro da leveza da fábula.

Por que alguém que escreveu Central do Brasil migrou do cinema para a televisão?
Fiz 12 filmes depois do Central do Brasil e sempre tive vontade de fazer novela. É mais estimulante você falar com o povo que assiste tevê do que com a elite que vai ao cinema. A um filme as pessoas reagem como se fossem críticos: “Esse roteiro é bom, a fotografia não sei quê”. Na novela, não. É: “A Bárbara tem que casar com o Paco, esse tem que namorar aquela”. É tudo direto, não uma coisa filtrada por uma crítica. Todo mundo que vai ao cinema é expert. Novela não tem isso, é muito mais visceral.

Há preconceito contra a tevê?
As pessoas acham que desprezando a televisão estão se valorizando. É um erro. A novela é o primeiro prato do consumo cultural do Brasil. Venho do cinema. Minha mãe (Lélia Coelho Frota) é crítica de arte. Fui filho dessa elite cultural, educado no Moma (principal museu de Nova York), no Louvre (maior museu de Paris). Venho desse mundo que nega um pouco a novela e vim trabalhar com isso.

Abriu caminho para uma renovação dos novelistas?
Não sei. É uma honra pertencer a esse time, conseguir fazer uma novela. Fazer 180 capítulos e sobreviver já é um talento extraordinário. Essa novela é tão absorvente
que não tenho mais projetos para o futuro. Só de vida, como poder dormir. Quero sobreviver a isso, aí vou poder ir à praia, tomar um suco...

Voltará a fazer cinema?
Poderia fazer outro filme com Walter Salles. Foi minha experiência mais feliz no cinema, por poder contar uma história junto com uma pessoa em sintonia com você. E contar uma história original, que é o que falta no cinema nacional, pois o que se vê é adaptação de um livro ou uma biografia. Enquanto a tevê se aplicou em encontrar seus narradores, o cinema encontra sempre diretores, com raras exceções. E o cinema nunca será a indústria que pretende ser enquanto não contar histórias originais.

Walter Salles é uma exceção?
Walter é um gênio que tem dedicação total ao trabalho. Também é um narrador. Filmou três histórias originais (Terra Estrangeira, Central do Brasil e O Primeiro Dia). Outras exceções são o Beto Brant, em parceria com Marçal Aquino, o Jorge Furtado, a Sandra Werneck. Já é um caminho.