quarta-feira, 14 de julho de 2010

O VELHO LOBO SE RETIRA

Zagallo marcou a entrevista no playground do prédio e na hora marcada estava lá, sentando numa cadeira de plástico, com algumas folhas de papel na mão. Era o currículo dele, disse, como se precisasse daquilo para se apresentar. Uns seis meses antes, o Brasil tinha conquistado sua quinta Copa do Mundo, na Coreia do Sul e no Japão. Foi a primeira e até agora única sem a participação de Zagallo, bicampeão em 1958 e 62 como jogador, tri como treinador em 70 e tetra como coordenador técnico em 1994, o que lhe valeu a honra de ser o único técnico da história da seleção brasileira a ganhar o direito de um jogo de despedida dirigindo o Brasil. A entrevista aconteceu menos de um mês depois desse jogo, quando o Velho Lobo já estava plenamente recuperado de uma embolia pulmonar adquirida nas quase 50 horas de voo para ir e voltar da Coreia do Sul, onde o Brasil venceu os anfitriões por 3 a 2. Bem ao seu estilo, Zagallo minimizou o problema de saúde. O importante, mesmo, foi a vitória na despedida definitiva dos gramados. Justa vitória.

Abaixo, a entrevista

Revista Istoé Gente, edição 176, de 16 de dezembro de 2002

"Estou com quatro conquistas nas costas e, se não fosse isso, o Brasil não seria penta. Me considero penta porque todo brasileiro é penta. Cada um de nós tem de botar banca, sim"

Nada melhor do que os números para apresentar Mário Jorge Lobo Zagallo. Aos 71 anos, único homem a ostentar quatro Copas do Mundo no currículo, o alagoano de Maceió que começou a jogar futebol aos 17, no América do Rio, não esconde uma preferência especial pelas estatísticas da sua passagem como técnico da Seleção. Em 154 partidas, Zagallo venceu 110, empatou 33 e perdeu apenas 11. “É difícil alcançar esses números”, diz, sem falsa modéstia. Campeão mundial como jogador em 1958 e 1962, como técnico em 1970 e como coordenador técnico em 1994, o velho Lobo, como é conhecido, deu adeus como técnico da Seleção no último dia 20, dirigindo o Brasil na vitória por 3 a 2 sobre a Coréia do Sul, em Seul. Largar o futebol, porém, ainda não está nos seus planos. “A paixão continua. O futebol é minha vida”, diz o marido da dona-de-casa Alcina de Castro Zagallo, pai de quatro filhos e avô quatro vezes.

Sentiu medo quando foi internado recentemente?
Não, porque tive uma embolia pulmonar em conseqüência do tempo em que fiquei sentado para ir e voltar de Seul. Um coágulo se deslocou da perna e se alojou no pulmão direito. Poderia ocorrer com qualquer um, de qualquer idade. Só senti uma dorzinha quando puxava o ar. Felizmente, tinha um check-up de rotina marcado logo depois e comentei essa dor com o médico. Ele disse que era normal, afinal foram quase 50 horas sentado, na ida, na volta e esperando nos aeroportos. Viajo desde 1950 e só foi acontecer isso agora. Graças a Deus foi tudo bem. Daqui a um mês estarei liberado para jogar meu tênis quatro vezes por semana.

O médico deu alguma outra recomendação?
Disseram-me que em viagem longa tem de andar no avião. Só que ali tem umas 400 pessoas. Já imaginou se todos resolvem andar, como o trânsito ia ficar interrompido? Tem que rir agora, porque o susto já foi embora.

Como foi se despedir da Seleção na Coréia?
O coração até que agüentou bem. Me sinto honrado porque nunca aconteceu uma despedida de técnico como essa no esporte brasileiro. Acabou sendo um evento mundial, porque foi na Coréia, passou no mundo inteiro e foi bom também o resultado positivo. Me despedi com uma vitória e é sempre importante, porque futebol brasileiro é sinônimo de vitória.

Teve medo de perder o jogo final?
Na palestra antes do jogo disse aos jogadores que festa é muito bonita, mas com vitória. Com derrota, não adiantava nada. Foi difícil porque viajamos direto para o jogo, sem tempo de nos acostumar com o fuso horário. Tivemos que correr contra tudo e ainda jogar na casa do adversário, quarto colocado na Copa. Felizmente as coisas não poderiam ter sido melhores. Comecei vencendo e terminei da mesma forma a carreira de técnico da seleção.

Como foi assistir ao Brasil ser campeão do mundo como torcedor?
Sempre disse que, quando ganhávamos a Copa, proporcionávamos um Carnaval em junho e julho aos brasileiros. Demorou mas acabei tendo a alegria de curtir cada vitória na Copa como torcedor, porque lá dentro é uma adrenalina só. Quando você está no comando a responsabilidade é tão grande que você só comemora alguma coisa quando tudo acaba.

O senhor se considera pentacampeão?
Estou com quatro conquistas nas costas e, se não fosse isso, o Brasil não seria penta. Me considero penta porque todo brasileiro é penta. Cada um de nós tem de botar banca, sim, porque quando estávamos mal nas eliminatórias a Argentina estava aí nos gozando. Tiveram de engolir, não é? Agora vamos para o hexa.

Como avalia o trabalho do técnico Luiz Felipe Scolari?
Ele ficou com um rabo de foguete tremendo nas eliminatórias e não podia ser diferente, porque pegou o time numa situação delicada. Mas classificou e depois prosseguiu. Fazia uma variação entre o 3-5-2 e o 4-4-2, escolheu o primeiro e foi feliz. Sempre disse que o técnico tem que escolher um esquema e ir com ele até o fim. Ficar variando de um para outro é querer mostrar que sabe mexer em sistema,
mas o futebol não é isso.

Acredita que os técnicos fazem isso por vaidade?
Acredito que sim. Não tem essa de variar de jogador dependendo do adversário, ou passar alguém da ponta para o meio. Você pode tentar tudo antes de montar o time,
como fiz em 1970, avançando o Tostão, recuando o Piazza e tirando o Rivelino e o Clodoaldo do banco. Mas fiquei dois meses trabalhando em cima da minha idéia antes da Copa. Depois que acertei, não mexi mais e fomos campeões. Futebol é simples. Se há craques no time, eles têm de saber desempenhar a função no esquema.

Hoje, quem é craque?
Temos jogadores que já mostraram que são craques e se firmaram com o tempo. O Roberto Carlos é o melhor na posição dele. O Ronaldinho Gaúcho também se firmou e se desenvolveu ainda mais indo para a França. Ronaldo é outro, um fenômeno.

A recuperação de Ronaldo o redime da decisão de ter confiado nele em 1998?
O meu problema, entre aspas, com o Ronaldo foi a doença dele, o estresse emocional, convulsão ou como queiram chamar. Depois do problema na concentração, ele não estava escalado. Quando voltou da clínica, disse que queria jogar. Não foi vetado pelos médicos e eu o coloquei para jogar. Esse ano o Felipão acreditou nele e eu, nas crônicas que escrevia, apoiei essa decisão. Felizmente, o Ronaldo chegou lá, mesmo sem estar 100%, porque é um artilheiro nato.

Arrepende-se de tê-lo escalado em 1998?
Em absoluto. A doença dele é que deixou a seleção apática. Se não jogasse, o time sentiria da mesma maneira. Se eu não o escalasse, seria o único culpado. Mas escalei
o melhor jogador do mundo, que não tinha sido vetado e disse que queria jogar.

Levaria Romário para a Copa de 2002?
Tenho uma ação na Justiça contra Romário porque, quando ele foi cortado em 1998, inaugurava o Café do Gol e me botou sentado na privada (uma das caricaturas pintadas nas portas dos banheiros da boate de Romário no Rio) e, do lado, o Zico com papel higiênico. Mas o chamaria para a Copa, porque não misturo vida pessoal com profissional. É meu ponto de vista e respeito o do Felipão. Deve ter havido problemas quando o Felipão estava no comando, mas quem tem de falar disso não sou eu.

Ficou magoado com Romário?
Sempre o convoquei, mas quando o cortei ele me detonou. Fiquei magoado porque ele quis desmoralizar a mim e ao Zico. Entrei com ação porque a imagem correu mundo, em jornal e televisão. Já estivemos juntos novamente, nos cumprimentamos, mas ele não me pediu desculpas.

É verdade que o senhor estava trabalhando no Maracanã na final da Copa de 1950?
Estava como soldado da Polícia do Exército. Não fui convocado só para a Seleção. Fui também para o Exército e para tirar madeira do Maracanã. Trabalhei uns três dias retirando as sobras da obra do estádio. Na final, vi o jogo da arquibancada, com a farda verde-oliva, fazendo a segurança. Mas ninguém me falou que tinha de ficar de costas para o campo, vigiando a torcida, e não fiquei. Não ia perder a final da Copa.

Já imaginava o que faria no futebol naquela época?
Fico até arrepiado pensando nisso. Nunca podia imaginar, apesar de já estar jogando nos juvenis do Flamengo em 1950, que um dia seria o único a ser quatro vezes campeão do mundo e uma vez vice. Muitos acham que não, mas chegar à final de uma Copa do Mundo é coisa à beça.

Pensa em continuar no futebol?
Não vou dizer que dessa água não beberei. Como técnico da Seleção, me despedi. Toparia trabalhar como coordenador técnico de clube ou da Seleção. Não quero mais é ficar dentro das quatro linhas, mas pode ser que me dê uma coceirazinha e eu aceite algum convite de clube. No brasileiro desse ano recebi quatro convites, do Inter, do Botafogo, do Palmeiras e do Atlético Paranaense. Quase aceitei o do Atlético, mas achei que não era o momento.

Sua vocação de técnico se manifestou quando?
Comecei na meia-esquerda do América, com 17 anos. Já acompanhava bem o futebol e, naquela idade, tive a intuição de mudar para a ponta-esquerda para, num futuro, chegar à Seleção. Passei a jogar ali pra fugir da concorrência no meio, que tinha gente demais. Em 1958, fui convocado para a Copa, mas todos achavam que ia ser cortado. O Vicente Feola (técnico da seleção de 1958) percebeu que eu fazia a dupla função, jogando na ponta e fechando o meio-campo, e me confirmou como titular. Fui muito criticado, mas o tempo me deu razão. Hoje quem não faz isso não joga, tirando as exceções.

O início de carreira foi difícil?
Meu pai (Aroldo Cardoso Zagallo) era contra, apesar de gostar de futebol e ir aos estádios aos domingos. Na época todos achavam que jogador de futebol era vagabundo. Depois ele acabou deixando e ia sempre me ver jogar. Meu pai morreu em 1958. Até hoje acho que foi por causa das emoções que ele viveu ouvindo os jogos da Copa. Fomos campeões em junho e ele morreu em setembro.

Qual seu time de coração?
Meus dois clubes foram o Flamengo e o Botafogo, onde ganhei os principais títulos. Se disser que sou um ou outro, magoaria os torcedores de um dos dois. Então digo que sou América. Não magôo ninguém e ainda faço justiça com o meu primeiro clube.