quinta-feira, 14 de março de 2013

ROMANCE DE UM CAMPEONATO


Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco empatava em 0 a 0 com o River Plate e tornava-se, para todo o sempre, o primeiro clube campeão continental da história do futebol. Numa dessas raras partidas que podem receber a denominação de lendária, contra aquele que é até hoje considerado o maior time argentino de todos os tempos, tirando seleções, o Expresso da Vitória de Barbosa, Augusto e Wilson, depois Rafagneli; Eli, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Friaça, antes o Ademir, Lelé e Chico ganhou de 1 a 0, mas teve seu gol legal anulado absurdamente. O jogo terminou 0 a 0, o que era suficiente. Vasco campeão invicto, o primeiro, pra sempre.
Nesse último post da série em homenagem à maior das conquistas do Vasco, o Relatos pega emprestado o título da série de reportagens da revista O Cruzeiro e reproduz a primeira delas sobre a campanha no Chile, feita pelo Hélio Fernandes. A matéria vai abaixo.

Revista O Cruzeiro, edição 24, de 03 de abril de 1948

“...para que todos os brasileiros saibam os obstáculos que teve de enfrentar a heróica rapaziada vascaína para trazer para o Brasil o mais importante título já conquistado por qualquer clube em qualquer época”.

Hélio Fernandes

Tanta coisa já se escreveu sobre o Torneio dos Campeões que quase não adiantaria voltar ao assunto. Durante quarenta dias a marcha do campeonato monopolizou a atenção do país inteiro, dominando as seções esportivas dos jornais que enviaram correspondentes e também dos que apenas possuíam serviço especial. Quase tudo já se disse sobre a memorável campanha. As vitórias vascaínas já foram contadas de tantas maneiras que nem nos atrevemos mais a abordá-las. Faremos apenas uma ligeira série de reportagens focalizando aspectos desconhecidos ou quase desconhecidos da campanha do Chile, para que todos os brasileiros saibam os obstáculos que teve de enfrentar a heróica rapaziada vascaína para trazer para o Brasil o mais importante título já conquistado por qualquer clube em qualquer época.

Aparentemente a campanha do Vasco no Chile pode ser comparada à vida dos homens felizes e das mulheres honradas: não tem história. Chegou, viu e venceu, com a mesma tranqüilidade com que enfrentaria um clube de subúrbio na inauguração de um estádio proletário qualquer, com a mesma segurança que exibiria um professor de Sorbonne ao fazer um exame de primeiras letras num ministro do Estado Novo ou num político do PTB.

Mas essa tranqüilidade foi só aparente. Porque, no momento em que sessenta mil pessoas, de pé, em impressionante silêncio, assistiam o hasteamento da bandeira brasileira no mastro principal do estádio ao som do hino nacional, terminava uma das mais difíceis e trabalhosas campanhas que um clube brasileiro teve que enfrentar no estrangeiro. Tudo fizeram para prejudicar-nos. Todos os obstáculos foram colocados no caminho brasileiro para que o título de campeão dos campeões não viesse repousar doce e gloriosamente nesta parte do continente.

Assim que chegamos a Santiago pudemos notar, pelo tratamento que nos dispensaram os dirigentes chilenos e pela pressa com que programaram os nossos jogos um em cima dos outros, que não éramos considerados estrelas. Éramos apenas olhados como comparsas de um drama em poucos atos, cujos papéis principais de há muito já estavam distribuídos.

Faríamos apenas o papel da cantora de província que é convidada por um empresário galante para uma temporada na cidade, mas que depois é embarcada de volta a toda pressa, quando sua presença só pode trazer aborrecimentos. Esse o papel que estava destinado ao Vasco.

As estrelas da companhia nem precisaria citar: River e Nacional. Enquanto o Colo Colo, com as credenciais de clube local, reservara para si o papel de vilão com boa pinta que a qualquer momento pode substituir o mocinho da companhia sem prejudicar o espetáculo.

Mas logo no segundo dia os dirigentes locais compreenderam que a companhia não estava bem afinada e que precisavam urgentemente modificar o elenco se quisessem salvar-se da ruína total. O Galã vindo especialmente de Montevidéu levara um tombo espetacular em cena aberta e já não conseguia entusiasmar a multidão, enquanto o vilão local mostrava que era apenas um vilão de anedota que não atemorizava ninguém. Começaram então os manejos dos potentados locais com ameaças e advertências visando obter nossa permanência por mais uns dez dias em Santiago, com o conseqüente recuo de todos os compromissos.

Mas como os dirigentes da delegação não queriam concordar com o adiamento, os dirigentes chilenos, com o sórdido senhor Robinson Marin à frente, lançaram mão de todos os recursos para conseguir nossa permanência. Sua voz nesses dias conheceu todas as tonalidades e escalas. Passou do lamento à ameaça. Da ameaça à promessa. Da promessa ao desespero. Lamentou-se, martirizou-se, desesperou-se, arrancou os cabelos de raiva mas não sossegou. E enquanto não conseguiu a palavra definitiva dos delegados tudo foi feito para nos prejudicar. Juízes foram comprados, a torcida foi estimulada pela mais tremenda guerra de nervos a que já assistimos, levando o público ao máximo de intranqüilidade. Tudo valia para o Sr. Marin e sua camarilha. Nessa emergência só uma solução era aconselhada: ficar. Se o Vasco não tivesse concordado em permanecer mais oito dias em Santiago não ganharia o campeonato de jeito nenhum.

Como o presidente Marin comprou o juiz Paredes por dez mil pesos para não deixar a nossa linha atacante penetrar na área do Colo Colo, compraria também os outros. O que ele queria era dinheiro. E no dia do banquete final, num assomo de sinceridade, confessou a mim, Cozzi, Serran e Paulo Medeiros que pelo êxito do certame seria capaz até de meter a mão no bolso dos outros.

A cada jogo que passava as nossas dificuldades aumentavam não só pela qualidade dos adversários, mas principalmente pelas manobras escusas que eram praticadas contra nós. E finalmente chegamos ao dia do compromisso com o Colo Colo, em que, em vez do campeão local, fomos obrigados a enfrentar o selecionado chileno. Cinco elementos de outros clubes foram arrebanhados para reforçar o quadro local numa violação flagrante do contrato, que estipulava que nenhum clube poderia apresentar-se reforçado de mais de três elementos.

Até o último momento tudo foi feito para nos prejudicar. E quando terminado o jogo com o River o Sr. Robinson Marin ocupou o microfone para declarar o Vasco campeão dos campeões, podia-se notar na sua voz a amargura do sujeito que não conseguiu atingir seus fins, embora tivesse usado todos os meios. Ele era nesse momento um sujeito vencido, fracassado, que tinha que proclamar, contra a sua vontade, o representante do Brasil vencedor do Torneio.